A bicicleta na cidade saudável e fisicamente activa

20/03/2017 07:45 - Público - Portugal

LISBOA - Muitas das crianças deixaram de brincar na rua por falta de espaço seguro para o fazer. Esta situação deve-se ao aumento da população urbana na Europa (de 90% entre 1950 e 2009), que se fez à custa da redução da densidade e aumento da extensão e do espaço consumido. Este crescimento das cidades, considerado descontínuo e extensivo, foi promovido e acompanhado pelo investimento em maior número de infraestruturas viárias o que, por sua vez, levou a um aumento das distâncias entre a residência, local de trabalho e centros de compras e/ou lazeres. Toda a deslocação pendular entre estes três centros de vida passou a ser feito preferencialmente de automóvel.

Este modelo de mobilidade assente no automóvel privado tem acarretado um custo elevado para o ambiente e para a saúde, uma vez que aumentou muito a poluição das cidades e reduziu a actividade física nas deslocações diárias. Contudo, a maior parte das cidades está a alterar o design do seu espaço de modo a resolver estes problemas. Promover a mobilidade activa, andar a pé e de bicicleta, está agora na lista das prioridade das Grandes Opções do Plano e é uma proposta central nos Planos de Acção de Mobilidade Urbana Sustentável (PAMUS). É também uma das prioridades das políticas de promoção da actividade física. 

Para conseguir aumentar o número de utilizadores de bicicleta, cidades como Paris, Londres e Nova Iorque seguiram uma estratégia concertada de medidas: 1. Delimitação de áreas 30 km/h – nomeadamente em bairros residenciais; 2. Definição de uma rede ciclável segura, bem sinalizada e que dá vantagem à deslocação de bicicleta; 3. Criação de um sistema de bicicletas partilhadas. 

O sistema de bicicletas partilhado (SBP) tem uma história peculiar com crescimento exponencial nos últimos anos. Existe em 1200 cidades de todo o mundo e conta já com quase 3 milhões de bicicletas partilhadas. A Europa tem o maior número de cidades com SBP (524) mas a China é a grande líder do número de bicicletas partilhadas (1.900.000). O conceito é simples: ter bicicletas em vários pontos da cidade que podem ser levadas do ponto A e deixadas no ponto B, ou C ou D. Em todos estes pontos há uma estação que tem um sistema de docas onde as bicicletas encaixam e de onde só voltam a sair se forem activadas por um código ou por um cartão. A vantagem é poder deslocar-se rapidamente na cidade aumentando, em simultâneo, o nível de actividade física diário e melhorando a qualidade de vida individual, bem como a sustentabilidade da própria cidade.

Lisboa não é excepção e, a partir de Setembro, a EMEL irá gerir este sistema que, numa primeira fase, terá 140 estações com 1410 bicicletas (970 das quais eléctricas). Em breve, nas ruas da capital teremos mais de 2000 bicicletas em circulação, contando com o número daqueles que já são utilizadores e, ainda, com as 440 bicicletas do projecto UBike relativo ao aluguer de longa duração entre os estudantes universitários. Para além de Lisboa, o Bike-sharing World Map referencia Braga, Lagoa, Oliveira d’Azeméis, Paredes, Santarém, Serpa, Torres Vedras, Vila do Conde e Vilamoura. Casos mais recentes, como o de Cascais, ainda não constam. No país, o concelho mais parecido com uma vila holandesa é a Murtosa, onde 90% da população escolar se desloca de bicicleta. Curiosamente, Portugal é um dos três maiores fabricantes de bicicletas e foi a Órbita quem forneceu as bicicletas para o sistema de Lisboa e de Paris.

Quando tem pressa, Ricardo nem pensa em usar as ciclovias

O fundamentalismo não fala aqui. Há espaço para todos. “Os peões hão-de se habituar”, como os automobilistas já o têm vindo a fazer. Ricardo Ferreira e um amigo comentam a “extraordinária” viagem que ambos fizeram na Avenida Almirante Reis, ele a descer, o amigo a subir: não houve razias, quase todos os carros mudaram de faixa para os ultrapassar. Não ouviram buzinas a reclamar.

“É óbvio que não é assim em toda a cidade, nem todos os dias”, faz o reparo. Ricardo, web designer de 44 anos, é voluntário da associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) desde a sua fundação, em 2009. Vive em Oeiras e durante anos deslocou-se para o trabalho, em Lisboa, de bicicleta. Não tem carro. “Nem sinto falta”.

Ricardo acha que a cidade vive o melhor momento para circular de bicicleta. Como meio de transporte alternativo aos carros? “Para lá caminhamos”. Ainda há muito a fazer. Um passeio pelo centro da cidade ilustra-o.

Nota que existe um esforço para controlar o trânsito. Há vias em que, pelo reduzido tamanho das faixas, os automobilistas são obrigados a abrandar. Só a presença de ciclistas ali ao lado os faz ter tento no acelerador. Mas nem todos sabem ultrapassar, abrandando e deixando uma distância lateral mínima de 1,5 metros.

Ainda assim “diria que a maior parte dos condutores são pessoas cuidadosas. Pelo menos não querem problemas”. Um dos turistas com quem fez um passeio de bicicleta pela capital disse-lhe mesmo: “Drivers are very gentlemen” (inglês para “os condutores são muito cavalheiros”). O principal problema está no estacionamento.

É difícil encontrar fórmulas perfeitas: se as ciclovias desniveladas são “presas fáceis” do estacionamento (como acontece na Avenida Fontes Pereira de Melo), as vias ao nível do passeio são terreno fértil para peões (exemplo da Avenida Duque de Ávila). A 21 de Fevereiro, foi aprovada por unanimidade em Assembleia Municipal a recomendação do Bloco de Esquerda que pedia o estudo e implementação de soluções para garantir “melhores condições de segurança para os troços de ciclovia contíguos ao estacionamento de viaturas”.

Na Avenida da República, Ricardo olha para a distância entre o estacionamento e a ciclovia e não tem dúvidas que está nos conformes da lei. Mas volta a mesma história: quando estacionados depois do limite do lugar de estacionamento, as portas abertas chegam à ciclovia, correndo o risco de abalroar um ciclista.

Segundo os últimos dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, de Janeiro a Julho de 2016, 1029 ciclistas ficaram feridos (62 graves) e 23 pessoas morreram na sequência de acidentes, em todo o país. Uma média de quase seis acidentados por dia.

“Não são raras as histórias de ciclistas que sofrem acidentes porque os carros estão na ciclovia. Se há esse risco, muita gente prefere a estrada”, diz Ricardo. Ele próprio o prefere.

Ciclovias estreitas

A ciclovia da Avenida do Brasil é, para o ciclista, o pior exemplo da cidade: é “estreitíssima, está no passeio e é continuamente interrompida”. “As melhorias são evidentes” nas novas construções, como a do Eixo Central. Ver um pai e um filho na Avenida da República, como vê agora, era “um cenário impensável há meia dúzia de meses”. Mas “há erros crassos que persistem, porque quem as faz não sabe o que é andar de bicicleta na cidade todos os dias”.

A largura das ciclovias é um problema que identifica constantemente: são tão estreitas que comprometem, ou impedem mesmo, a ultrapassagem de bicicletas.

No Eixo Central, os mais de 2,5 quilómetros inaugurados em Janeiro, ilustram a “inabalável questão de não querer reduzir o estacionamento”. E isso é feito à custa de ciclovias estreitas, “sacrificando a segurança e o conforto dos ciclistas”, nas palavras de Ricardo.

Ao longo da Avenida da República, sempre que existe uma paragem de autocarro, a ciclovia é interrompida. Segundo o código, os ciclistas deviam desmontar e levar a bicicleta à mão naqueles poucos metros. “Obrigaria a desmontar de dez em dez metros”. Ninguém o faz.

Noutros casos, os intervalos nas ciclovias obrigam os ciclistas a parar e procurar a continuação, nem sempre óbvia. Conhecer os percursos, criar hábitos, é a chave: “Não é assim tão mau, se soubermos o que fazer. Faço sempre o mesmo caminho”.

Por isso é que diz que estes percursos não são pensados para quem faz a vida de bicicleta. “É difícil encontrar um caso mais gritante” que na Avenida da República, a chegar a Entrecampos. A pista é ladeada por jardim. “É bonito. É pensado para passear. Não para quem quer ir às compras nos eixos laterais ou ir aos serviços - como é que sai daqui?”

Os próprios raios de curvatura impedem grandes velocidades. Em alguns casos não dão margem de manobra para fazer a curva sem entrar no passeio ou entrar na via em sentido contrário. “Somos forçados a travar bastante”, o que muitas vezes não acontece no outro lado da estrada. Ricardo nota o “perigo” de alguns cruzamentos no Eixo Central, em que as curvas possibilitam uma entrada rápida dos carros noutra via. “Entram, nas nossas costas, a uma velocidade muito superior àquela a que nós circulamos.”

“Quando tenho pressa, nunca vou pelas ciclovias”, confessa o ciclista. “Se andar a 25 quilómetros por hora é um perigo vir por aqui”. As pessoas metem-se na via. “Só o tempo que ficamos a fazer ligações entre vias cicláveis, parados em paragens que os carros não têm… Vamos pela estrada.” As alterações de 2014 ao Código da Estrada equiparam os velocípedes aos automóveis e motociclos.

O voluntário da MUBi acha que as soluções são simples: mais educação, mais sinalização. “Bom senso, acima de tudo. Há problemas sim, mas “seriam facilmente ultrapassáveis se as pessoas cumprissem o código da estrada”, acredita.