16/03/2014 08:19 - O Estado de SP
Pedra por pedra. É assim que está sendo pavimentada a
estrada que liga a cidade de Cunha, em São Paulo, a Paraty, no litoral do Rio,
pela mata do Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB). De trilha indígena dos
séculos 16 e 17, depois precário caminho de mulas e escravos nos ciclos do ouro
e do café até o século 19, a estrada embargada em 1986 por questões ambientais,
a Cunha-Paraty teve partes destruídas por um temporal em 2009. O trânsito por
ela, então, voltou a ser uma aventura. Agora, o trecho de 9,36 km no costão da
Serra do Mar está se transformando na Estrada Parque, uma pista que mais parece
calçadão.
Ecologicamente planejada, com liberação de órgãos
ambientais, a estrada tem 9 metros de largura. Na semana passada, já alcançava
cerca de dois quilômetros de piso zerado, a partir da divisa dos Estados de São
Paulo e Rio. A pista de rodagem, de 6 metros, ladeada por uma calçada de um
metro e mais uma calha lateral de 50 centímetros, é trabalhada no bloquete de
concreto. O piso especial foi exigência do Ibama e do Instituto Chico Mendes
(ICMBio) para que o ruído dos pneus iniba a travessia dos bichos e evite
atropelamentos e a rodovia deve ficar pronta no segundo semestre de 2015. Mas a
obra, executada pelo Consórcio Serra da Bocaina e orçada em R$ 84 milhões, já
mudou a rotina.
E não são somente as suçuaranas, os macacos e as aves raras
da Bocaina que se espantam com o barulho de tratores, caminhões e dos cerca de
200 trabalhadores que roncam, gritam e martelam pelas encostas da selva,
cruzando o Rio do Sertão, no Estado do Rio. Os moradores das duas cidades,
Cunha e Paraty, também vivem dias de expectativas, receios e preocupação.
Por um lado, embora sem se dar conta do tamanho da mudança
vindoura, o pessoal da bucólica cidade serrana paulista já festeja o acesso que
terá à aprazível Paraty e seus cultos ao livro, ao cinema, ao jazz - e ao bem
viver. O charme de Paraty, com seu mar e arquitetura colonial, logo estará a
meia hora de carro do alto da serra e a cerca de 3 horas de São Paulo - no
trajeto pela Dutra até Guaratinguetá, por onde se poderá seguir por Cunha ao
litoral.
"Essa ligação com Paraty é um sonho de muitos anos”, diz o
empresário João Mendes, ex-prefeito de Cunha, em entrevista no posto de
gasolina que administra na entrada da cidade. Entusiasmado com o início da
obra, defensor ferrenho do projeto de recuperação do caminho que já foi
conhecido como Estrada Real, cujos marcos de pedra podem ser encontrados à
beira do trajeto, Mendes considera a travessia um avanço regional. "É um fator
de desenvolvimento para as duas cidades e para a região. Vai atender a 168
cidades, 1,8 milhão de pessoas”, declara o engenheiro, que também é
proprietário de uma pousada, a Vista Verde, na área urbana de Cunha.
No Spani Atacadista, um grande supermercado à beira da
Rodovia Paulo Virgínio, em Guaratinguetá, há expectativa de aumento nos
negócios. "O movimento antes de a estrada ficar ruim era muito bom”, diz o
gerente Adriano, por telefone. "Nossos clientes são donos de pousadas, hotéis,
restaurantes, que sobem aqui porque nosso preço compensa”, explica. "Com a
construção da estrada, isso vai voltar a acontecer.”
Sossego ameaçado.Por outro, há cunhenses de vida pacata e comerciantes da tranquilidade rural,
como donos de hotéis-fazenda e pousadas localizados à beira do asfalto, que
ainda se encolhem só de pensar no aumento do tráfego na SP-171, que leva até
eles o turismo do sossego a partir da BR-116, a Via Dutra, em Guaratinguetá.
"As estimativas do DER do Rio giram em torno de 120 mil veículos por ano na
estrada”, afirma o chefe do parque, Francisco Livino. Mas, quando ficar pronta,
a passagem será limitada. "Só serão permitidos veículos de passeio, até vans.
Não será permitida a passagem de veículos de grande porte, tampouco veículos
transportando cargas perigosas”, explica o urbanista e arquiteto que dirige a
unidade de conservação, área de preservação de 104 mil hectares de florestas.
De acordo com Livino, o trânsito na área do PNSB será
somente durante o dia e com velocidade máxima de 30 km/h. Essa medida, segundo
ele, vai reduzir os "riscos de atropelamentos de animais silvestres”. As duas
pontas da estrada "serão guarnecidas por guaritas de controle de acessos”,
acrescenta. Haverá ainda a cobrança de pedágio, que Livino chama de "ingresso
no parque”, de valor ainda não fixado.
O aumento no fluxo de carros na área preocupa também Marcos
Santilli, proprietário da Pousada dos Anjos, no km 58 da rodovia, a 33
quilômetros de Paraty. "Vai haver um forte aumento no movimento e a SP-171 é
muito insegura, com curvas, e sem acostamento”, diz Santilli, ex-diretor do
Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo. "Não somos contra a estrada”, esclarece.
"Mas a cidade não está preparada para a súbita alteração que a ligação com
Paraty vai provocar”, argumenta.
Para o agricultor Roberto Monteiro, morador da área rural de Rio Abaixo, a cerca de 10 quilômetros de Cunha, a preocupação de moradores da região não é somente com o impacto direto da estrada na serra íngreme. "Isso aqui já é perigoso”, disse ele, na quarta-feira, caminhando sobre o asfalto da SP-171, e reclamando da ausência de acostamento na estrada asfaltada, cheia de curvas fechadas no sobe e desce nas montanhas. "Para nós que vivemos aqui, a estrada da praia não muda nada. O que muda é o movimento que vai ter por aqui, que já é muito perigoso”, afirma.
Cidade teme 'turismo
de massa' com criação de estrada-parque
Enquanto na obra operários das Construtora Metropolitana e
Geomecânica Engenharia, do Rio, assentam manualmente os bloquetes, preparam
amparos em encostas e constroem vãos subterrâneos para circulação de animais,
na entrada de Paraty a apreensão de moradores e comerciantes é evidente.
"Não somos contra a estrada", declara Norival Carneiro, proprietário
do Alambique Engenho D'Ouro, no km 8 da RJ-165, no pé da serra. "Mas
estamos receosos com o fluxo de trânsito que virá do Vale do Paraíba, de
Minas."
Dono da pousada Villa Harmonia, no bairro Caborê, a 700
metros do famoso centro histórico da cidade, o empresário Álvaro Volpe Bacelar
discorda. "Não vejo problema da turma descer, ao contrário. Será bom para
as duas cidades." De acordo com ele, o assunto tem sido discutido no
Convention Bureau de Paraty, entidade de promoção do turismo. O Paraty CVB já
atua com órgãos oficiais para tentar limitar o acesso de ônibus no que chama de
"turismo de massa".
Para Sebastian Buffa, diretor executivo do Paraty CVB, a
abertura da Estrada Parque não é problema. "O que tem de haver é um
ordenamento do turismo que queremos", defende. "A cidade não tem
vocação para turismo de massa. E isso já está acontecendo aqui, sem a Estrada
Parque", afirma. Segundo Buffa, o caminho da serra será positivo porque
vai encurtar o tempo de viagem e facilitar o acesso de turistas de São Paulo.
No limite. Buffa argumenta, porém, que Paraty tem ambiente voltado para história, natureza, cultura, e já está no limite do bom serviço. "Temos é de discutir o número máximo de pousadas, a legalização dessa atividade, o controle dos passeios de escuna, a abertura de restaurantes", declara. "Sobre a estrada, estamos tranquilos. Ela vai fechar à noite e não terá tráfego de ônibus."