13/06/2022 05:28 - O Globo
Vale o que está escrito? No caso das vans do Rio, esse princípio não pode ser aplicado sequer a veículos licitados, que compõem o Serviço de Transporte Público Urbano Local (STPL), e possuem validadores integrados ao sistema do Bilhete Único Carioca e monitorados por GPS. Numa amostragem, mapas obtidos com exclusividade pelo GLOBO revelam que todos os 30 carros pesquisados, licenciados pela prefeitura, funcionaram irregularmente nos dias 26 de maio e 6 de junho. Registros de satélite dos locais de entrada de passageiros que pagaram com cartão constatam que as viagens desobedeceram o itinerário. Em nove delas, 100% dos embarques ocorreram fora da rota determinada.
O que se vê nos mapas é observado também nas ruas, apesar de a maioria dos trajetos ser monitorada — das 2.003 vans licitadas, pouco mais de 10% (252) estão sem transmitir sinal, segundo a Secretaria municipal de Transportes (SMTR). Apesar de essas vans terem GPS desde a instalação dos validadores, a partir de 2013, só no último dia 6, o equipamento começou a ser usado pela Secretaria Especial de Ordem Pública (Seop) para autuar carros que realizam percursos diferentes dos autorizados.
Multas, no entanto, não têm colocado esses veículos no rumo certo. De todos os meios de transporte públicos municipais são, justamente, as vans licitadas que levam mais tempo para quitar débitos por infrações flagradas: em média, 408 dias. Das 1.394 multas aplicadas em 2021, por infringir o código disciplinar do STPL, 76,9%, já vencidas, não foram pagas.
Um dos mapas obtidos pelo GLOBO constata, por exemplo, que uma van da linha Gardênia Azul- Taquara, que passa por Rio das Pedras, muda o trajeto, seguindo pela Estrada do Itanhangá, para embarcar e desembarcar passageiros que vivem nas comunidades da região. Também é fácil flagrar vans licenciadas junto à estação do metrô do Jardim Oceânico e ao longo da Avenida das Américas, na Barra, apesar de, nessa autoestrada, a circulação ficar restrita ao Recreio.
Já na Ilha do Governador, um veículo, que deveria fazer a linha Ribeira-Cacuia, no dia 6, pegou passageiros nos Bancários, no Jardim Guanabara e no Galeão. Na Zona Sul, as duas únicas linhas autorizadas (São Conrado-Jardim de Alah, via Rocinha e Avenida Niemeyer) estendem seus percursos, sendo que várias colocaram o nome Copacabana na carroceria. Não é raro encontrá-las no Posto 3, circulando pelos principais corredores do bairro: avenidas Atlântica e Nossa Senhora de Copacabana e Rua Barata Ribeiro. Mas o GPS de uma delas mostrou que é possível ir além: passageiros validaram o bilhete em bairros mais distantes, como Laranjeiras, Catete e Centro. É o grito do cobrador que indica aos usuários o destino dos carros.
O fato é que as chamadas vans legalizadas, assim como as piratas, que somam cerca de 10 mil veículos, conforme levantamento feito por consórcios de ônibus no ano passado, operam sem freios, especialmente nas zonas Norte e Oeste. Porta-voz do Rio Ônibus — sindicato que representa as empresas —, Paulo Valente diz que o setor acredita que as vans já sejam o principal sistema de transportes sobre rodas do Rio, levando até 60 milhões de passageiros por mês:
— As vans transportam hoje mais de 50% dos passageiros que anteriormente eram transportados pelos ônibus. Essa realidade afeta diretamente o equilíbrio econômico-financeiro do sistema, prejudicando ainda a mobilidade urbana, já que há casos de ônibus impedidos de circular em certas regiões da cidade.
Itinerários à parte, não é raro encontrá-las circulando por faixas exclusivas de ônibus e táxis (BRSs), com passageiros em pé e de porta aberta. De janeiro a maio deste ano, a central 1.746, da prefeitura, registrou 395 reclamações, contra 275 em igual período do ano passado. Lideram as queixas a circulação em local não autorizado/parar em ponto irregular; a conduta de motoristas; a não aceitação do Riocard e da gratuidade; e a prática do transporte clandestino.
— Depois das 22h, a qualidade dos carros cai bastante. Praticamente não há fiscalização diminui, e os veículos piratas tomam conta. Esse é justamente um horário que em você tem muito pouco ônibus. Não dá para ficar parado num ponto esperando um ônibus que não se sabe se vai passar — diz o estudante Pedro Matos, de 22 anos, morador de Maria da Graça.
Já um motorista de Rio das Pedras cita o lado perverso do controle de vans por grupos criminosos. Segundo ele, o “pedágio” semanal cobrado por milicianos da comunidade, para que possam parar na comunidade, varia conforme o tipo de veículo e o destino:
— A milícia cobra R$ 190 dos carros com licença que vão para a Freguesia; dos que passam pelo Itanhangá, Jardim Oceânico e Barrashopping, R$ 210, e dos que chegam à Gávea, R$ 250.
Os piratas, que operam mais à noite e nos fins de semana, diz ele, precisariam desembolsar R$ 180 para a milícia de Rio das Pedras. E se quiserem pegar passageiros na Rocinha, acrescenta, seriam mais R$ 250 de “pedágio” para PMs. Por e-mail, a Secretaria de Policia Militar informa que “o comando da corporação pune com rigor possíveis desvios de conduta” e que a denúncia está sendo encaminhadas à corregedoria da corporação.
É preciso pagar ainda, afirma o motorista, R$ 50 semanais para “batedores” em motocicletas, que acompanham carros de agentes, repassando informações aos motoristas. De acordo com a Seop, tais “olheiros” criam dificuldades para a ação da fiscalização.
“Batedores” dão o alerta
No estado, é na cidade do Rio que concentram mais relatos ao Disque Denúncia envolvendo o transporte alternativo. Das 46 denúncias, feitas entre janeiro e 6 de junho, 26 se referiam à capital. Uma delas, encaminhada à polícia para que seja investigada, dá conta de que um ponto de kombi clandestino na Rua Jordão, na Taquara, é controlado por um miliciano, preso recentemente, de dentro do presídio. Lá, o preço da passagem custaria R$ 4 ou R$ 8, conforme o destino do passageiro. Outro relato informa que, numa praça do Caju, funcionaria o Caju Vip Car, ponto de transporte irregular operado pelo tráfico local. Conforme mais um denunciante, na Rua Sargento de Milícias, na Pavuna, funcionaria uma oficina de vans roubadas, usadas pelo transporte alternativo.
A prefeitura começou a licitar as vans em 2009, mas o processo ainda não se encerrou. Além dos 2.003 veículos litados, outras 1.096 vans estão autorizadas a circular sem trajeto definido e só na Zona Oeste, amparadas por uma lei de 2002. A secretária municipal de Transportes, Maína Celidonio afirma que a intenção é concluir o processo licitatório das vans no mais tarde em 2023. Ela ressalta, porém, que o mais adequado neste momento é a regularização das linhas de ônibus para que o município “possa modelar e entender qual é o papel complementar das vans”.
— Por definição, a van é um modal complementar. Ela alimenta o ônibus, um modal com maior capacidade. Com a falta de ônibus nas ruas, o complementar acabou virando o transporte principal.
Para o diretor da FGV Transportes, Marcos Quintella, o impacto dos veículos ilegais e seu crescimento refletem a ineficiência do transporte público urbano regulado:
— Além da péssima qualidade dos veículos que atendem, sobretudo as zonas Norte e Oeste, existe ainda uma questão fundamental que é a capilaridade. Ou seja, a malha atual não cobre todo o território.