A logística brasileira e o reino de Nárnia, por Guilherme N. de Lacerda e Roberto Garibe

20/04/2022 09:00 - Valor Econômico

Em meio à notória ineficiência do atual governo, foi sendo urdida a imagem de uma ilha de prosperidade na gestão da infraestrutura. O titular da pasta apareceu como um craque em um time de várzea e, como tal, merecia alçar voos maiores para demonstrar a sua destreza.

À primeira vista, parece que tudo entrou nos eixos e a logística nacional vai de vento em popa, com soluções para velhos problemas em todas as áreas e quadrantes. Porém, quando se examina a crueza dos números, a revelação da realidade se impõe. Esse fosso entre o que é irradiado sem pejo e o real remete-nos ao descortino do reino de Nárnia, aquele universo especialíssimo, criado pelo escritor irlandês, Clive S. Lewis, que, em sua singular coletânea de contos juvenis, descreve um lugar paralelo e paradisíaco, povoado por criaturas mitológicas. Todavia, nada do multiverso onde se propaga o discurso do governo federal corresponde à árida dimensão do mundo em que vivemos. Assim sendo, vamos aos fatos.

No triênio 2019/2021, sequer a soma dos recursos orçamentários destinados à infraestrutura atinge o investido em um único ano entre 2010 e 2015, período mais maduro do PAC. Esse mesmo comportamento pode ser notado em relação às ferrovias, área que mereceu atenção publicitária do governo, pois a soma referente ao mesmo triênio não alcançou a metade do investimento médio, em um único ano do PAC, entre 2010 e 2015.

Um estudo produzido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) demonstra que o investimento em rodovias diminuiu de forma constante e, em 2021, a soma do que foi aportado pelo setor público e privado representa menos da metade (44%) do total de 2014. Isso explica as frequentes reportagens sobre a péssima situação das estradas. Se tomarmos apenas o Orçamento da União, o investido no ano passado não é suficiente nem para a manutenção regular das rodovias federais. E o valor aplicado em rodovias corresponde a quase 60% do total investido em infraestrutura.

O exercício comparativo com as diversas áreas da infraestrutura revela essa mesma ordem de grandeza e não se notou esforço algum para reverter tal tendência ao longo dos anos. Os investimentos governamentais vêm caindo sistematicamente desde 2016, atingindo o menor patamar no ano passado.

Os argumentos de que este é o “novo normal” e de que o relevante foi a expansão da participação do setor privado são fantasiosos por duas razões: tais investimentos não aumentaram e não há como tratar a diversidade das carências do país exclusivamente com recursos privados.

Se não há esforço por parte da União em relação ao investimento direto, nota-se uma tentativa difusa de se estimular a participação privada a qualquer preço. Nos portos houve, de fato, um conjunto de concessões de Terminais de Uso Privativo (TUPs), a partir da base legal aprovada em 2013 (Lei 12.815), que estabeleceu as diretrizes para o desenvolvimento portuário. Porém, o Ministério da Infraestrutura optou por uma irrefletida privatização das funções públicas.

A concessão a um agente privado de todas as funções regulatórias e da gestão dos portos organizados não tem referência exitosa em outros países. Na Austrália, único país onde tal modelo foi posto em prática, os resultados são reconhecidamente débeis. Recentemente, o governo federal alienou o Porto de Vitória, tendo saído vencedor um gestor financeiro, especializado em “créditos ilíquidos” e sem qualquer experiência na gestão de infraestrutura. O mais preocupante é que, mesmo sem avaliar o novo modelo, houve o anúncio de expandi-lo para outros portos, notadamente Santos, o que parece pouco provável de ocorrer.

Já as concessões rodoviárias se concentraram em poucos projetos palatáveis ao mercado, como a renovação da Dutra. No caso da BR 262/381 (trecho ES-MG), houve tentativas frustradas de se efetuar o leilão, o que indica as limitações do modelo e as dificuldades financeiras de empresas do setor. Nesse caso, fica evidente a opção por não se enfrentar o desafio em conceder rodovias que atraem menor atenção do mercado.

Por fim, é no setor ferroviário que se encontram as maiores demonstrações de fuga da realidade. A difusão para a sociedade de que as Autorizações Ferroviárias - inseridas na Lei 12.473/2021, tida como o novo marco ferroviário - resolverão todos os gargalos logísticos em médias e longas distâncias no país chega a ser irresponsável. Das 79 solicitações de autorização divulgadas pelo governo, são poucas as que podem sair do papel. Os projetos com alguma chance são as short lines ou aqueles conectados a núcleos de produção e que precisam superar gargalos de integração com linhas troncais.

Projetos ferroviários requerem capex (capital expenditure) elevado e, consequentemente, a viabilidade econômica depende de uma geração de caixa também elevada. Não é o caso de 90% dos projetos divulgados. A história das ferrovias no mundo comprova que não há sustentação econômica sem a participação do Estado na construção ou no financiamento dos projetos.

A superação da deficiência crônica de investimentos em infraestrutura passa pelo abandono de um discurso de fantasia e por enfrentar a dura herança dos últimos anos. É indispensável dar um passo por vez. O primeiro é compreender os efeitos do desmonte das empresas nacionais de engenharia sobre a qualidade dos projetos. Depois, é preciso endereçar soluções para os projetos menos atrativos aos olhos do mercado, avaliando as alternativas disponíveis. Por último, é imprescindível retomar a capacidade do Estado em investir em infraestrutura. Nem tudo poderá ser solucionado por concessões.

Discursos vazios e foguetórios não resolvem. Muito menos números e soluções narnianas lançadas sem rubor e sem comprovação técnica. O que precisamos é de diálogo aberto, de forma a se construir um ambiente propício para a retomada dos investimentos públicos e privados no país. A articulação de um Estado capaz e de um setor privado realmente empreendedor é a única solução ao desafio de retomar o caminho do desenvolvimento.

Guilherme Narciso de Lacerda, doutor em Economia pela Unicamp, é professor do Departamento de Economia da UFES. Foi diretor do BNDES (2012-2015).

Roberto Garibe é economista e mestre em Administração Pública pela FGV. Foi diretor de Infraestrutura Logística e Energética do PAC e secretário de Infraestrutura Urbana na gestão do prefeito Fernando Haddad.