A nova viagem dos bondes pelo cenário carioca

15/05/2016 08:47 - O Globo

De volta à paisagem carioca, os bondes avançam rumo ao futuro da cidade. Nos áureos tempos, quando ainda predominavam nas ruas e eram o principal meio de transporte, seus trilhos se espalhavam por 448 quilômetros (bem mais que os atuais 270 usados por trens e 42 por onde corre o metrô). Em 1950, chegaram a transportar 644 milhões de passageiros, segundo um anuário da Light, que administrou o serviço de 1907 a 1965. No entanto, com exceção de dois bondes que ainda trafegam timidamente por Santa Teresa, o sistema foi aposentado em 1967, quando a última linha no Alto da Boa Vista parou de circular. Considerados obsoletos na época, foram sendo gradualmente substituídos por lotações e ônibus (incluindo os elétricos, apelidados de chifrudos). No próximo domingo, no entanto, com o início da operação do veículo leve sobre trilhos (VLT), um novo capítulo na história dos transportes do Rio começa a ser escrito.

Modernidade. O VLT passa pela Praça Mauá revitalizada: com o novo bonde, a cidade retoma um meio de transporte que por décadas interligou os diferentes bairros, até ser aposentado em 1967, cedendo espaço nas ruas para os ônibus

Para especialistas, será a hora de mostrar como os bondes, antes vistos como ultrapassados, podem ser modernos, confortáveis e ambientalmente sustentáveis.

— Quando os bondes foram tirados das ruas, havia duas desculpas. Uma delas era a instabilidade de energia. Os bondes paravam e atravancavam as ruas, porque ficavam todos em fila. Outra foi a influência do modelo rodoviarista. Aconteceu naquele momento um erro, uma falta de visão de política de transporte e de continuidade de planejamento. Talvez o Brasil tenha sido o único país que praticamente extinguiu esse meio de transporte. As linhas não precisavam ter acabado. Os trajetos poderiam ter sido modernizados. O VLT nada mais é do que o bonde moderno, com mais conforto, além de tecnologia, operação, segurança e sinalização bem mais avançadas — diz Ronaldo Balassiano, professor de engenharia de transportes da Coppe/UFRJ.

SISTEMA AJUDOU A CONSOLIDAR BAIRROS

Por onde passaram, os bondes elétricos abriram caminhos, interligaram bairros, fizeram história. Suas linhas foram as principais responsáveis pela consolidação de bairros como Jardim Botânico, Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon e Vila Isabel, permitindo o deslocamento de populações do velho e abarrotado Centro.

A primeira linha de tração elétrica foi inaugurada em 8 de outubro de 1892. O bonde, sob os aplausos do povo, saiu da Rua do Passeio e seguiu até a Rua Dois de Dezembro, no Flamengo. Uma semana depois, o escritor Machado de Assis relatou suas impressões: “Admirei a marcha serena do bonde, deslizando como os barcos dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga”. A partir da década de 50, no entanto, Recordação. O bonde da linha Avenida Rodrigues Alves circula lotado em 1924: sistema ampliou os limites da cidade os trilhos foram sendo cobertos pelo asfalto.

Segundo Roberto Schaeffer, professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ, o Rio segue uma tendência mundial. Ele diz que, no futuro, os corredores expressos dos BRTs poderão dar lugar ao VLT.

—Em termos de transportepú bli co,é oque há demais moderno. Tem avantagem de ser movido por energia elétrica, sendo bem superior aos ônibus do ponto de vista ambiental. Não polui nada — afirma Schaeffer, ressaltando a necessidade de uma orientação maior à população. — Como ele é muito silencioso, o risco de atropelam en toé alto. Achoque poderemos ter muitos acidentes no começo. As pessoas vão precisar se acostumar.

O engenheiro Willian de Aquino, coordenador regional da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), cita o título do filme “De volt apara o futuro” ao comentara retomadado bonde. Segundo ele, cadaVLT equivale a 280 carros ou sete ônibus amenos nas ruas.

—É o início de uma grande mudançan amobilidade. O grande legado das Olimpíadas— comemora Aquino.

Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ), o arquiteto e urbanista Pedro da Luz afirma que os bondes serão mais um atrativo para a expansão imobiliária no Centro e no Porto.

— Eles poderão consolidar uma área da cidade que tem boa infraestrutura. A prefeitura poderia aproveita ressa mudança para incentivara presença de moradias na região, queéal goa inda tímido.

Pesquisador ferroviário, o engenheiro Helio Suêvo Rodriguez lamentou o fim dos bondes, mas agora comemora a retomada do meio de transporte.

— Será uma mudança radical na mobilidade urbana. As pessoas terão que se acostumar, não ir mais de carro para o Centro. O tempo se encarregará de ajustar as coisas. O bonde foi um dos principais sistemas de transporte do Rio. Praticamente todos os bairros cariocas eram ligados por ele. Eu ia de bonde para a escola quando era criança. Ele foi abandonado por uma questão de governo e até de pressão da entrada automobilística no país.

Em 1898, Rui Barbosa chamou o Rio de “pátria adotiva dos bondes”. “O bonde foi até certo ponto a salvação da cidade. Foi o grande instrumento, o agente incomparável do seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona urbana, que arejou a cidade, desaglomerando a população, que tornou possível a moradia fora da região central, onde até então todos nos apinhávamos sem luz, sem ar, sem espaço. (...) O Rio é realmente a pátria adotiva do bonde, a sua pátria de eleição”, declarou.

Essa vocação perdida no tempo poderá, agora, ser retomada. 

NA WEB: Veja mais fotos dos bondes que circulavam pela cidade

NO INÍCIO, HORÁRIO REDUZIDO E TRAJETO MENOR

Comportamento de pedestres preocupa consórcio e secretário

O VLT começará a circular no próximo domingo, entre a Praça Mauá e o Aeroporto Santos Dumont. Do meio-dia às 15h, dois trens farão o percurso em intervalos de meia hora. Os passageiros poderão viajar de graça até 30 de junho, mas, a partir de 1º de julho, terão de pagar tarifa de R$ 3,80 (a mesma dos ônibus). O sistema de validação dos tíquetes (Bilhete Único e cartão VLT) deverá ser feito voluntariamente, já que não haverá cobradores. Não será possível fazer o pagamento em dinheiro dentro do VLT, somente em máquinas automáticas localizadas nas estações.

Os horários de funcionamento e o trajeto até a Rodoviária Novo Rio serão ampliados a cada semana, em oito etapas. De acordo com o planejamento da prefeitura, em agosto, durante os Jogos Olímpicos, a primeira linha funcionará das 6h à meia-noite, inclusive nos fins de semana, com oito VLTs, que circularão em intervalos de 15 minutos.

Em 2017, quando o sistema estiver operando a plena capacidade, com três linhas, 32 trens e 32 estações ao longo de 28 quilômetros de trilhos, o VLT terá capacidade de transportar 300 mil passageiros/dia. Como a circulação será feita em áreas com grande movimento de pedestres, como a Praça Mauá e as avenidas Rio Branco e Rodrigues Alves, a segurança é uma das preocupações do consórcio responsável pela operação, formado por empresas que também administram o metrô, os trens, as barcas e os ônibus.

— Durante a fase de testes, percebemos que o comportamento da população muita vezes não foi aquele que recomendamos. Vimos pessoas parando em frente aos bondes para tirar foto, o que representa um risco — comenta o secretário municipal de Transportes, Rafael Picciani.

Com o novo modal, o Rio será a segunda cidade fora da Europa a usar a tecnologia Alimentação Elétrica pelo Solo (APS), que dispensa totalmente cabos aéreos. Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, foi a primeira utilizar esse modelo, em novembro de 2014, com uma rede menor que a futura malha carioca. Lá, são transportados, em média, dez mil passageiros por dia, ao longo de 11 quilômetros de trilhos, em um sistema que conta com 11 estações e 11 trens.

BOM DESEMPENHO EM DUBAI

Por e-mail, o diretor-geral da Autoridade de Estradas e Transportes de Dubai (RTA, na sigla em inglês), Mattar Al Tayer, disse que um estudo mostrou que a densidade populacional na região onde o VLT foi implementado será, em alguns anos, bem maior que a média na cidade. Para evitar congestionamentos no futuro, foi preciso, segundo ele, construir uma rede de transportes integrada — o VLT de Dubai tem conexões com o metrô e o monotrilho.

“Durante o primeiro ano de operação, o chamado Dubai Tram alcançou índices extremamente elevados de desempenho. O indicador de pontualidade dos trens chegou a 96,4%. Já a satisfação dos passageiros ficou em 98%. O Dubai Tram foi implementado para melhorar a mobilidade dentro da cidade, cobrindo áreas turísticas e de grande importância econômica. Também contribuiu para a formação de um sistema de transporte de massa integrado e para a redução das emissões de carbono, proporcionando mais qualidade de vida”, escreveu Al Tayer.

No entanto, ocorreram acidentes em Dubai. Colisões entre carros e bondes levaram o governo a fechar alguns cruzamentos.

Do carnaval à literatura

Bonde esteve presente não só nas ruas, como em crônicas, sambas e expressões populares

Além de cortar a cidade com seu charme particular, o bonde serviu de assunto para crônicas e romances de consagrados escritores. No carnaval, participava das festas, levando foliões fantasiados para os diversos pontos da cidade. Tornou-se ainda tema de sambas e marchinhas.

— Era um transporte democrático, com gente de todas as idades. E sempre havia música dentro. O bonde foi um elemento muito divertido da cidade — lembra a historiadora Elisabeth von der Weid, resgatando expressões de época relacionadas ao transporte e que resistem ao tempo. — Uma coisa muito grande era do “tamanho de um bonde”. Em Santa Teresa, até pouco tempo, ainda se ouvia “pegar um bonde” ou “me dá um bonde” no sentido de me dá uma carona.

Em 1883, Machado de Assis, com sua fina ironia, escreveu um manual de “Como comportar-se no bonde” — na época, o meio de transporte era puxado a burro. “Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência se ele é assaz cristão e resignado”, sugeriu Machado.

Já o escritor Olavo Bilac exaltou o novo sistema como palco de relações sociais. “Na roça, é tomando café que se estabelecem e estreitam as relações; na cidade, é viajando no mesmo bonde que se consegue isso. O bonde é um criador de relações de amizade ... e de amor”, escreveu.

DEZ PERGUNTAS SOBRE VLT 

Como comprar a passagem?

Nas primeiras quatro semanas de operação, os passageiros poderão andar de VLT gratuitamente. No dia 1º de julho, começará a cobrança da passagem. Em cada uma das estações, haverá máquinas para aquisição do Bilhete Único Carioca, Bilhete Único Intermunicipal e cartão VLT, únicas formas de pagamento. Pelos equipamentos no lado de fora das estações, serão aceitos dinheiro e cartão de débito. Dentro do VLT, de forma voluntária, os passageiros terão que validar o cartão em máquinas semelhantes às já existentes nos ônibus municipais. Não haverá roletas, mas fiscais e guardas municipais vão monitorar o pagamento e poderão intervir em quem tentar burlar o sistema de validação.

Qual será o valor da tarifa?

A tarifa custará R$ 3,80, o mesmo valor dos ônibus municipais, que serão integrados ao novo sistema. Pelo Bilhete Único Carioca, será possível fazer duas viagens ao custo de uma só. Caso o VLT seja usado numa terceira viagem, o passageiro pagará mais R$ 2,10. A integração tarifária com trens, metrô e barcas ainda está sendo negociada pela Secretaria estadual de Transportes.

Como será feita a fiscalização?

A fiscalização será feita por meio de agentes da concessionária que circularão uniformizados nos trens, junto a equipes da Guarda Municipal. A fiscalização se dará por amostragem, com um equipamento similar a máquinas de cartão de crédito que indicará se a validação foi ou não realizada no VLT.

Os trilhos podem dar choque?

O sistema de alimentação elétrica do VLT é dotado de um mecanismo de segurança que impede que o trilho condutor de energia permaneça energizado fora da área de captação de energia do trem, eliminando o risco de choque elétrico mesmo em caso de trilhos molhados. O abastecimento de energia será feito pelo sistema APS (alimentação pelo solo), que é uma espécie de terceiro trilho, já implantado com sucesso em diversas cidades europeias. Na prática, trata-se de um princípio de alimentação de energia pelo solo combinado com um supercapacitor (uma fonte de energia embarcada).

O que acontece se faltar luz?

O sistema de alimentação é conectado a dois pontos de fornecimento da concessionária de energia elétrica. Em caso de falha de um dos dois, o circuito continuará sendo alimentado, mas de forma parcial – intervalos maiores, velocidades reduzidas ou operação somente em alguns trechos das linhas. O Centro de Comando e Controle (CCO) do VLT faz o monitoramento permanente do sistema e será responsável pela avaliação técnica, tomada de decisão e controle do sistema.

O VLT vai parar em sinais, como os carros?

O VLT vai dispor de sinalização própria, com prioridade de circulação e alinhada à semaforização de veículos e pedestres.

Em cruzamentos, operadores vão segurar o trânsito?

Para garantir a segurança enquanto a população se acostuma a conviver com o VLT, operadores de trânsito vão auxiliar a operação nos cruzamentos para garantir a fluidez tanto ao VLT quanto ao trânsito.

Se chover, o VLT vai diminuir a velocidade?

A chuva não interfere na circulação do veículo, pois ele opera com baixas velocidades. Existe o controle absoluto para evitar escorregamentos, mesmo com trilhos molhados. Caso as chuvas torrenciais provoquem alagamento momentâneo em determinadas áreas de circulação do VLT, o sistema de energia será desligado por segurança. Isso irá provocar a paralisação do veículo nas áreas afetadas.

O que acontece se alguém passar na frente do VLT?

Em caso de obstrução na via por pessoas ou objetos, o condutor irá imediatamente interromper o percurso e entrar em contato com o Centro de Comando e Controle (CCO) para avaliar se a questão pode ser resolvida diretamente ou se haverá necessidade de alguma intervenção.

Em caso de acidentes, o que deverá ser feito?

O VLT conta com equipe e procedimentos específicos para situações de emergência, com profissionais prontos para atendimento a partir de pontos estratégicos do trajeto. Em caso de incidente, há a possibilidade de reboque por outra composição vazia do VLT até o ponto adequado para a manutenção. Outra alternativa é o veículo de reboque, com condições de circulação tanto pelos trilhos quanto pelas ruas, para transportar a composição até o local de reparo.