23/10/2015 09:00 - Valor Econômico
A empresa digital de transporte Uber já enfrentou barricadas
em chamas que bloquearam o acesso ao aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, e
ameaça de multas que podem chegar a € 200 mil. Em seis anos desde sua criação,
no entanto, nenhuma reação ameaça tanto o futuro da empresa quanto as primeiras
ações judiciais surgidas no seu berço californiano que questionam o status dos
motoristas cadastrados no seu aplicativo. "Parceiros" pelos contratos
firmados num clique, os motoristas pagam 20% do que faturam em corridas à
empresa e são responsáveis por todos os custos - do combustível ao seguro do
passageiro - de um carro que não pode ter mais de cinco anos de uso.
No mês passado, a Justiça californiana aceitou como
"trabalhista" a ação coletiva movida por três motoristas contra a
empresa. O julgamento põe em risco o modelo de negócios de uma empresa criada
por dois engenheiros mal entrados nos 30 anos que se conheceram em San
Francisco, que já vale US$ 50 bilhões e virou a estrela do mercado de serviços
acionados pelo celular.
Se as ações tiverem curso, a Uber pode vir a ser obrigada a
pagar os direitos trabalhistas dos motoristas cadastrados em seus aplicativos.
Nessas representações, que já se multiplicam em outras cidades americanas, os
motoristas reportam ganhos médios de US$ 15 por hora e em alguns Estados o
apurado não passa de US$ 7,5, equivalente ao mais baixo salário mínimo adotado
no país, sem os direitos de quem trabalha, por exemplo, num fast-food.
As condições de trabalho geradas pelos negócios incubados no
Vale do Silício viraram tema da campanha presidencial. Ao expor seu programa de
governo numa universidade em Nova York, a ex-secretária de Estado Hillary
Clinton reconheceu o potencial criativo e inovador desses serviços prestados
sob demanda digital, mas, sem nominar o Uber, alvejou-o: "[as empresas]
levantam questões difíceis sobre a proteção do trabalho e o que vai ser um bom
emprego no futuro".
Na página que mantém na internet, a Uber registra atuação em
344 cidades de 60 países nos seis continentes. Ao celebrar o quinto aniversário
da empresa no ano passado, seu fundador, Tavis Kalanick, pincelou o número de
motoristas cadastrados no aplicativo. A lista é liderada por Nova York, onde
Uber virou verbo, com 26 mil motoristas e é seguida pelos 22 mil em San
Francisco, 20 mil em Chengdu, 15 mil em Londres e 10 mil em Paris.
Bombardeada por uma democrata, a Uber tem como principal
estrategista um dos formuladores da campanha eleitoral do presidente Barack Obama.
A política da empresa passa por pagar as multas devidas, manter os motoristas
na praça e insistir na reabertura de negociações com governos na expectativa de
que o tempo e a opinião pública joguem a seu favor.
Numa operação em que, da seleção de motoristas à verificação
das condições de segurança do carro, tudo é terceirizado, a empresa custa a
operar com um padrão mundial de qualidade infenso às vicissitudes locais. No
ano passado, a companhia municipal de transportes de Nova Déli baniu a Uber
depois que uma passageira disse ter sido estuprada por um de seus motoristas.
Os carros da empresa foram obrigados a instalar botões de pânico para continuar
operando na cidade.
Na China, a Uber não tardou a ser copiada. Surgiram vários
competidores locais para o serviço. Disputam, na clandestinidade, um mercado
que a Dow Jones estima em 700 milhões de potenciais clientes. Depois de
sucessivos conflitos entre taxistas e motoristas dos novos serviços, o governo
chinês abriu consulta pública para regulamentá-los. Quer levar a Uber e seus
concorrentes a adotar regras que contrariam a política da empresa, como a
obrigatoriedade de contratos de trabalho para seus motoristas.
Em nenhum canto do mundo, no entanto, a resistência foi tão
disseminada quanto na Europa. À exceção do Reino Unido, a empresa é banida de
quase todo o continente. Em Londres, depois que 12 mil tradicionais minivans
pretas se enfileiraram na Trafalgar square no ano passado, o prefeito Ben
Johnson foi obrigado a exigir que os motoristas da Uber se submetessem aos
mesmos testes que condicionam o alvará dos taxistas.
Dois meses depois, Berlim proibiu o serviço e levou a Uber a
reagir informando o crescimento exponencial no número de acessos ao seu
aplicativo. "Não se pode colocar freios ao progresso", disse um
executivo da empresa ao "The Guardian". A estratégia de enfrentamento
no coração da União Europeia foi distinta da que seria adotada na Espanha em
dezembro. Depois da decisão de um tribunal de Madri, a empresa acabaria
deixando o país.
Na América do Sul, além do Brasil, a Uber chegou a Colômbia,
Peru e Chile. Das quatro praças brasileiras onde o Uber opera há mais de um
ano, o Distrito Federal é a única onde o Executivo local ainda não proibiu seu
funcionamento. A resistência, que se espraia pelas três maiores capitais do
país (São Paulo, Rio e Belo Horizonte), sela a entrada do Brasil na polêmica
mundial em torno do serviço de transporte com todos os ingredientes de uma
conjuntura em que desemprego, corporativismo e precarização do trabalho sitiam
a capacidade de regulação do Estado.
No mês passado, a pretexto de explicar o compartilhamento de
carros oficiais depois do corte promovido na frota da Esplanada, a presidente
Dilma Rousseff disse que a Uber tira o emprego de muitas pessoas, mas evitou se
posicionar contra o serviço que usara como inspiração para o enxugamento de
regalias. Foi buscar no avô paterno, Stefan Russev, que fabricava artigos de
couro e tinha loja no centro de Gabrovo, na Bulgária, a referência para o que
chamou de "destruição criadora": "Meu avô era seleiro, fazia
sela de cavalo. Vocês imaginam o que aconteceu com o emprego dele quando
apareceram os carros".
A presidente parecia aliviada por não ter que se meter no
imbróglio que disse não ser de competência da União. O tema, no entanto,
acabará no seu alambrado. O veto imposto nas principais capitais ao serviço
jogou-o na clandestinidade, mas não foi suficiente para tirar os carros de
circulação. O embate arregimentou seus lobbies no Congresso. A brecha para a
intromissão federal é uma lei de mobilidade urbana, de 2012, que prevê a
regulamentação do transporte privado individual em contraposição ao táxi, que é
uma concessão pública.
A proximidade das eleições municipais esquentou o debate na
Câmara dos Deputados. Os sinais parecem invertidos. Os jovens e antenados
defensores da Uber se apresentam como porta-vozes dos usuários e enfrentam
bancadas raivosas, como a dos radialistas, que, na atual legislatura, têm um
representante na presidência da Casa.
No mês passado, durante uma audiência pública, o
representante do Cade, que recebeu duas representações sobre a concorrência no
setor desde a entrada da Uber, disse estar convencido das evidências econômicas
da liberação do serviço. Hostilizado por taxistas que lotaram a comissão, disse
ser favorável a uma regulamentação que equalizasse as condições de competição
da Uber com o táxi tradicional.
O representante da empresa, um articulado doutor em direito
pela USP, tentou sensibilizar sua audiência buscando pontos de convergência com
cada um dos inflamados parlamentares a partir de um discurso que podia
facilmente ser confundido com o de um ativista social: "Se a Uber tem um
inimigo, é o carro particular. Nosso negócio é privilegiar o acesso em
detrimento da posse".
Aparteado aos gritos, o advogado não teve oportunidade de
explicar como uma pessoa sem posses pode pagar uma corrida que, no Brasil,
custa em média 5% acima da tarifa de táxi. Foi secundado, na comissão, pelo
presidente de uma associação de taxistas de São Paulo que fez ameaças nada
veladas caso prosseguisse a tentativa de regulamentação do tema: "Não
temos como conter a categoria, vai ter morte".
O deputado federal Celso Russomano, pré-candidato do PRB à
Prefeitura de São Paulo, é a principal estrela da bancada contrária à
regulamentação da Uber. Com o polo que fincou na disputa, moveu o prefeito
Fernando Haddad para o centro. Com o discurso de que o Estado não abria mão de
regulamentar o setor, o prefeito criou uma nova concessão pública, com cinco
mil vagas, para os táxis pretos.
Com a proposta, Haddad saiu à frente do prefeito do Rio,
Eduardo Paes, que foi pioneiro na proibição. O projeto areja o mercado com
metade das licenças reservadas a motoristas que hoje alugam alvarás e cota para
mulheres, mas está longe de propostas como a Kutsuplus, uma parceria da
prefeitura de Helsinque e uma empresa chamada Ajelo, que dá carona a
passageiros em busca de trajetos semelhantes e os conecta com o transporte
público.
O projeto de Haddad, que mantém a Uber proibida, ainda deixa
intocada uma lei de 1969, arcabouço das máfias que atuam no maior mercado de
táxi do país. O texto, sancionado pelo então prefeito Paulo Maluf e inspiradora
de leis de outras capitais, deixa brechas ao aluguel de alvarás e faz que uma
grande parte dos motoristas trabalhe pelo menos 14 horas por dia para poder
remunerar proprietários que chegam a ter 300 licenças na cidade.
A maioria adotou os aplicativos que se disseminaram nos
últimos anos no mercado para poder alcançar o número de corridas que permita
remunerar o alvará e pagar a manutenção do carro. Assim como os motoristas da
Uber que começam a acionar a empresa na Justiça americana, não podem ser
considerados parceiros dos proprietários dos alvarás, mas não usufruem direitos
trabalhistas.
O avanço da regulamentação federal vai determinar, em grande
parte, o ritmo da Uber no Brasil. Os percalços podem minar a liberdade de quem
vê uma revolução a galope no mercado de consumo, mas em nada impedem que a
promessa de futuro embutida na precarização de direitos mantenha o Brasil,
desde sempre, na vanguarda.
Maria Cristina Fernandes,
jornalista do Valor