Abandono marca antigas estações ferroviárias no interior de São Paulo

02/04/2017 09:30 - Folha de SP

MARCELO TOLEDO

Construída há 140 anos, a estação ferroviária de Cordeirópolis (SP), uma das mais antigas do Estado, não lembra nada o que já foi um dia. Fechada, com o telhado destruído e sinais de ferrugem, conserva dos áureos tempos ferroviários apenas os trilhos –que, no entanto, não transportam mais passageiros.

O cenário na estação e em seu entorno é igual ao de outras cidades que no passado se desenvolveram economicamente a partir das ferrovias, especialmente entre as décadas finais do século 19 e as primeiras do século passado.

A Folha percorreu mais de 1.500 km em rodovias e estradas de terra e constatou o abandono de antigas estações ferroviárias que foram importantes para o desenvolvimento do interior paulista. Esse cenário de abandono é registrado num momento em que o Estado anuncia o projeto de uma linha de trem de passageiros e carga que ligará São Paulo a Campinas e Americana, além de cidades no Vale do Paraíba e litoral. No total, o Trem Intercidades deverá ter um trajeto de 135 km e nove estações.

As antigas estações, quando ainda existem, já que dezenas foram demolidas, estão desabando, abandonadas ou sem uso. A presença de trilhos é ainda mais rara. Em Vinhedo, que, a exemplo de Cordeirópolis, integrava a malha ferroviária da Companhia Paulista, três vagões queimados estão próximos à estação que, cercada por tapumes, foi invadida, pichada, e abriga lixo, barras de ferro retorcidas e vidros quebrados.

A partir de Campinas, interior adentro, 7 das 20 primeiras estações não existem mais e três estão em mau estado. Outras viraram depósito ou moradia e só quatro estão em bom estado e são usadas realmente como estações.

Onde os trilhos não existem mais (foram retirados em massa na década de 80) a situação é ainda pior, pois as estações perderam sua função. São os casos das estações Visconde de Parnaíba (Jardinópolis), Corredeira (Cajuru), Nhumirim (Santa Rosa de Viterbo) e Jaguara, em Sacramento (MG), que encerrava a Linha do Rio Grande e começava a Linha do Catalão.

A Corredeira perdeu telhado, não tem mais portas e foi tomada pelo mato. A Jaguara perdeu a conexão com o lado paulista da Companhia Mogiana na década de 70, quando a criação da represa da hidrelétrica de Jaguara deixou os trilhos submersos.

"Das que ainda estão de pé, muitas foram invadidas ou estão abandonadas, em processo de destruição. Todas deveriam ser preservadas, independentemente de serem ou não importantes historicamente, porque são prédios úteis à sociedade", diz o pesquisador Ralph Giesbrecht.

A responsabilidade sobre a gestão dos prédios antigos virou um imbróglio, na avaliação de Denis Esteves, presidente do Instituto História do Trem, o que dificulta a manutenção das estações. "Há quem cuide de locais operacionais, enquanto os não operacionais são de responsabilidade de outro órgão. Alguns têm importância histórica e poderiam ser ligados ao Iphan [instituto de patrimônio histórico], mas não são. Elas [estações] viraram, na maioria, terra de ninguém. O resultado é o que a gente vê, abandono completo."

Para ele, além de terem passado a pertencer a estatais no passado, as estações chegaram a essa situação devido à falta de cultura preservacionista no país e aos entraves burocráticos para o uso delas. "Quando as ferrovias foram concedidas, nos anos 90, o governo errou ao não exigir como contrapartida a preservação do patrimônio. Não apenas no aspecto histórico, mas como bem da União. Enquanto alguns prédios foram convenientes, eles foram usados. Depois, foram esquecidos."

Há em São Paulo 41 bens ferroviários tombados pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), entre eles a estação ferroviária de Vinhedo. Segundo o órgão, entre os critérios básicos para abrir um estudo de tombamento de bens ferroviários estão a localização do conjunto em estâncias turísticas, o contexto histórico, se são projetados por arquitetos ou engenheiros renomados, se têm arquitetura diferenciada ou se são marcos zeros ou pontos terminais de linhas.

A conservação e manutenção de uma estação tombada são de responsabilidade do proprietário do imóvel. O último tombamento ligado à memória ferroviária ocorreu em junho, com o complexo de Sorocaba, que engloba oficinas, estação, casas, armazéns e pátio de manobras, entre outros edifícios. É um conjunto remanescente da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, assim como a estação de Iperó, que passa atualmente por restauro.

CESSÃO DE USO

O Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) informou, por meio de sua assessoria, que tem buscado estabelecer parcerias com prefeituras de cidades por onde passam as vias férreas e entidades da sociedade para resguardar o patrimônio e preservar a história dos municípios.

De acordo com o departamento, já foram disponibilizados 466 imóveis nos 17 Estados em que o Dnit atua, com a assinatura de 175 termos de cessão de uso a prefeituras ou entidades interessadas em manter estações. A Prefeitura de Cordeirópolis disse que há um projeto de revitalização para a estação da cidade, com a criação de um centro cultural, não iniciado por não haver recursos para a sua efetivação.

ESTAÇÃO DE IPERÓ

O cenário era desolador. Centenas de vagões abandonados estragavam a paisagem de um bairro, e vizinhos da estação conviviam diariamente com medo, já que o local poderia servir de abrigos a assaltantes e era frequentado por usuários de drogas.

Hoje tudo está mudado. Apesar de a principal estação de Iperó –das cinco que o município já teve– ainda ter muito mato no entorno, os vagões abandonados não fazem mais parte da paisagem como antes, e a estação, na Vila Santo Antônio, passa por um processo de restauração. Para ampliar a segurança, foram instaladas câmeras de monitoramento, além de uma base da Guarda Municipal.

Morador há 27 anos do bairro, o vigia José Cosmo, 58, ex-funcionário da extinta Estrada de Ferro Sorocabana, disse que tinha medo todos os dias ao passar pelo local, rota que faz para chegar ao seu atual emprego. "O abandono era total. Era muito perigoso passar por aqui sozinho, principalmente para mulheres e crianças", disse.

A estação, que integrava a malha da Sorocabana, foi inaugurada em 1928, mas só em 1949 recebeu o nome Iperó, que, de distrito, virou município na década de 60, tendo seu desenvolvimento atrelado à história da ferrovia. O tráfego de passageiros na cidade foi interrompido pela primeira vez nos anos 70, quando a Sorocabana já pertencia à Fepasa (extinta estatal ferroviária paulista).

Em 1997, uma linha de passageiros entre Sorocaba e Apiaí chegou a ser inaugurada e motivou amantes da ferrovia a sonhar com a volta do trem a Iperó, mas a linha durou apenas até 2001. Os anos 2000 marcaram a consolidação da decadência do espaço em Iperó, até a atual década, quando o restauro teve início. O cenário atual contempla, além da base da Guarda e das câmeras, instalação de lixeiras e a pintura do prédio. O mato alto ainda está lá, assim como ferros retorcidos, mas em volume inferior ao de anos atrás.

Os trens –apenas de carga– utilizam uma das quatro linhas férreas que foram preservadas no local. Segundo a Prefeitura de Iperó, todo o complexo ferroviário está passando por revitalização e os prédios abrigam projeto de combate às drogas, escola de artes e centro de convivência de idosos.

Na estação, onde as obras foram iniciadas há dois anos, a intenção é instalar um centro cultural. O telhado e o piso foram recuperados, assim como as redes hidráulica e elétrica. A cobertura da plataforma também foi trocada. As obras já custaram R$ 100 mil.

Um total de 314 vagões abandonados no pátio ferroviário da cidade foram retirados a partir de 2014, e ainda restam 60 no bairro George Oetterer –onde também já funcionou uma estação de embarque de passageiros. No local, o cenário de pichação e de ferrugem ainda faz parte da rotina dos vizinhos.

"Lembro com muita saudade de tudo. Era limpo, não havia mato, as pessoas viajavam muito para São Paulo ou Sorocaba, bem vestidas. Isso não voltará, por mais que se restaure", disse Cosmo.