Autocrítica da velocidade - Washington Fajardo

20/01/2018 08:30 - O Globo

Planejava escrever sobre outro assunto hoje, 20 de Janeiro, dia do padroeiro da cidade do Rio, São Sebastião, mas a fatalidade ocorrida na quinta-feira à noite, em Copacabana, na Avenida Atlântica, me obriga a mudar de tema. Quero voltar a algo que tenho procurado afirmar repetidamente na minha escrita como arquiteto e urbanista sobre a necessidade de repensarmos as lógicas modernistas que imperam sobre as cidades brasileiras.

Importante dizer que repousa sobre o motorista a responsabilidade sobre o ocorrido, e que todas as investigações precisam ocorrer de modo racional e rigoroso. A Justiça é a única paz possível de ser ofertada às vítimas e seus parentes.

Não pretendo aqui relativizar os atos do indivíduo, procedimento tão comum quando acidentes acontecem, e buscamos sempre no estado ou nos governos a culpa por irresponsabilidades cometidas por pessoas, no isolamento inquebrantável do seu discernimento ou do seu contexto, mesmo que não intencionalmente.

Deste modo, assim como a serenidade das investigações e inquéritos são fundamentais para averiguar o erro e punir responsáveis, avaliar o sistema onde ocorre a problema me parece também lúcido e pertinente.

Este é um preâmbulo necessário para afirmar que as velocidades nas ruas da cidade são excessivas e que há risco para a segurança viária. Mas que isso não ocorre por um problema gerencial de trânsito, mas sim por uma motivação conceitual, filosófica, arraigada no modo como nós, sociedade, compreendemos a ideia de fluxo no território urbano.

E que essa compreensão também se conecta a outros campos, como a economia, as ciências sociais, a política, os hábitos, os prazeres, a cultura. Talvez até exista uma dimensão psicológica, mas não tenho competência nessa área.

Nós somos uma sociedade veloz. Desejamos o consumo imediato do tempo e nos regozijamos com a possível efetividade, em pouquíssimo tempo, dos nossos sonhos. Somos ultra americanos. Somos superlativos em relação aos nossos irmãos do Norte, pois não visamos a construção de um bem comum, uma união mais que perfeita, mas sim o afastamento do passado, de nós mesmos, e da nossa vergonha colonial. Queremos nos distanciar da escravidão, da pobreza, do agrário, do degredo, da comunhão.

A modernidade nos apresentou essa possibilidade e a abraçamos como ninguém no planeta. Fizemos capital nova, empreendemos 50 anos em 5, nos lançamos na utopia por meio das cidades. Não bastando o eldorado urbano no Planalto Central, de vias rápidas e sem intersecções, fizemos, no Rio, a Barra da Tijuca. Antes, já havíamos convertido a highway do Aterro em uma parkway: o Parque do Flamengo seria a demonstração cabal.

Em 1969, quando o mundo já questionava o planejamento urbano modernista, antecedendo a crise do petróleo de 1973, nós fazíamos o plano urbano da Barra, repetindo o receituário das vias expressas e da aceleração geográfica como prática estética. Quem “nós” se a concepção é de Lucio Costa? Nós, porque estava e está ainda amparado no consenso da sociedade, celebrando continuamente a vitória civilizacional da passagem sobre o lugar. Do transitório sobre o orgânico. Do torpor sobre a introspecção.

SOMOS VICIADOS EM VELOCIDADE

A monumentalidade deste modo de nos concebermos “modernos" implica na brutalidade da imposição do futuro contra o presente. Do carro contra o corpo. Da renda contra a produção.

O desenvolvimentismo dos anos recentes só reafirmou a velocidade como modo político. De tal maneira que exauriu-se em si mesmo.

Se parece macro, é também micro. Seja na bala perdida, na ultrapassagem do sinal vermelho, no espaço público desordenado, na agressividade do trânsito.

E morrem bebês. Morre Arthur no ventre da mãe, morre Maria Louise no calçadão de Copacabana. Na pressa pelo futuro, o matamos.

Acuso o que já escrevi no GLOBO em “Andabilidade”, em 24/1/2015; em “Departamento de Pedestres”, em 14/5/2016; em “Travessias”, em 30/12/2017. Ou no El País, em “Cidades Lentas”, em 30/9/2015. Não há novidade na defesa por cidades organizadas para os pedestres e com lógicas mais humanas. São críticas dos anos 1960, 1970, 1980. Assim esperneava Jane Jacobs, assim defendia Carlos Nelson Ferreira dos Santos, assim dizia Luiz Paulo Conde.

Precisamos não apenas redesenhar o espaço público, mas fazer a autocrítica da velocidade e da modernidade que a alimenta.

A velocidade máxima na Avenida Atlântica é de 70km/h. O mesmo na Lagoa Rodrigo de Freitas ou na Avenida das Américas, na pista lateral. Na pista central de 80km/h. Na Avenida Dom Hélder Câmara, 60km/h, na Conde de Bonfim, 50km/h. No Aterro, 90km/h.

Essas velocidades são definidas por normas técnicas de engenharia de trânsito, que lidam com a capacidade hierárquica das vias. Ou seja, vias locais alimentam coletoras que alimentam arteriais. E, deste modo, a fluidez.

Entretanto, a concepção de um sistema apartado do espaço público é o erro original, que repetimos à exaustão. Erro moderno. Está nos consumindo. Atropelamos nossa viabilidade como cidade generosa. Calçadas e pedestres vivos são a base da reinvenção do Rio.

Washington Fajardo