Biometano e a redução das emissões do transporte urbano - Marco Tsuyama Cardoso

24/01/2018 07:22 - Valor Econômico

No último dia 14 de dezembro, a Câmara Municipal de São Paulo estabeleceu novas metas para a redução de emissões de poluentes de transporte público na cidade de São Paulo. Essa decisão veio após grandes disputas e a necessidade de alteração de uma lei de quase dez anos. A Política Municipal de Mudanças Climáticas, de 2009, havia estabelecido que, já em 2018, a cidade de São Paulo teria que ter 100% de ônibus não poluentes.

Diante da inação das autoridades municipais durante todo o período, o atendimento da meta ficou impossível já que, em 2017, dos 14.500 ônibus da cidade, menos de 2% atendem aos requisitos. Em função disso, foi necessário alterar a lei para possibilitar novas licitações de serviços de ônibus da capital já que os contratos precisam atender a legislação.

A nova lei propõe uma redução das emissões a 50% de Gás Carbônico (CO2), 80% de Óxido de Nitrogênio (NOX) e 90% de Materiais Particulados (MP) em 10 anos. Em 20 anos, os limites crescem para 100% de CO2, 95% de NOx e 95% de MP. Um comitê com participação de membros da sociedade civil monitorará essa transição.

Uma tecnologia extremamente comum na Europa e ainda mais na Suécia é o gás renovável. Toda matéria orgânica na ausência de oxigênio gera um gás renovável chamado biogás. Este, quando tratado, pode alcançar níveis de pureza de gás natural (fóssil) passando a ser chamado de biometano. Tendo as mesmas propriedades do gás fóssil, o biometano pode ser usado para o transporte ou para todas as formas de utilização do gás natural.

Frente ao diesel, o seu uso reduz em 85% as emissões de CO2, 86% as emissões de NOX, 90% as emissões de MP. Além das reduções de outros poluentes locais como Monóxido de Carbono (90%), NMHC (98%), CH4 (84%) e NH3 (71%). Além de reduzir as emissões resultantes da combustão, o processo de sua produção reduz consideravelmente o volume de todo o tipo de resíduo orgânico.

Na Suécia, por exemplo, a digestão anaeróbica - que hoje produz o biogás - foi usada inicialmente apenas para redução de volume de lodo de tratamento de esgotos nos anos 1950. À época, o biogás era simplesmente desperdiçado, queimado em flares, sem aproveitamento energético algum.

Durante as crises do petróleo, na década de 1970, ficou claro que o país, então altamente dependente de petróleo, precisava buscar alternativas energéticas. A questão das emissões de poluentes locais também se tornara um problema. Por isso, já na década de 1980, iniciaram-se estudos para uso de biogás em transporte para reduzir a poluição de algumas cidades como Linköping e Uppsala. Na década de 1990, a questão climática entrara na pauta e, em 1991, o país estabeleceu um imposto sobre emissões de carbono que deu muita competitividade ao biometano frente aos combustíveis fósseis. Em 1992, foram feitos os primeiros testes com ônibus em Linköping e em 1996 começou-se a usar comercialmente o gás como combustível na cidade. Em 1998, foi fundada em Gotemburgo, a Fordongas, especializada no abastecimento de veículos com gás.

Na década seguinte, o biometano para transporte já avançava por todo o país, em especial na região da Escânia, ao sul do país. Já em 2010, cerca de 40% da frota de ônibus da província, com 1,34 milhões de habitantes e abrange as cidades de Malmö e Helsingborg, já era movida a biometano.

A forte presença do combustível renovável facilitou que a arrojada meta de ter um sistema de ônibus livre dos fósseis na província já fosse alcançada em 2015. Ou seja, não há mais ônibus urbano na Escânia que use diesel, gás natural ou qualquer outro combustível fóssil.

A evolução não se limitou à Escânia. Praticamente todas as cidades suecas têm ônibus movido a biometano. Com isso, o país conseguiu resolver dois problemas de uma vez: de um lado reduzia as emissões do setor de transporte, um dos mais difíceis de se substituir, de outro criou uma nova cadeia de valor a partir do que antes era aterrado.

Tal estratégia foi essencial para a descarbonização das últimas duas décadas: desde 1990, o PIB do país cresceu 69%, tendo reduzido as emissões de dióxido de carbono em 25%. Enquanto isso, o Brasil aumentou quase 12% as emissões no período, havendo um aumento de 150% do setor de energia (que inclui transporte) no período. Só de 2000 a 2015, o aumento de emissões do setor de transporte de passageiros cresceu 53%.

Isso traz outras consequências. Segundo pesquisa recente, uma pessoa que fique duas horas no trânsito paulistano aspira o equivalente a um cigarro em substâncias tóxicas. O impacto disso nas contas públicas e privadas de saúde deveria ser considerado. A simples troca de ônibus a diesel por ônibus a gás, mesmo sendo fóssil, já seria um passo considerável. A troca já atingiria a meta de redução de NOX e MP prevista para dez anos. Restaria apenas a redução adicional de CO2, já que o gás natural fóssil reduz cerca de 25% das emissões do diesel, o que seria apenas a metade do necessário.

Essa diferença, entretanto, poderia ir sendo suprimida pela injeção do biometano, que reduz 85% das emissões, ao longo do tempo. Afinal, são combustíveis que, embora de origem diferente, têm as mesmas propriedades e que, portanto, podem ser usados juntos sem necessidade de qualquer adaptação.

Com isso, a cidade daria conta da redução de emissões e criaria uma cadeia de valor para resíduos orgânicos que - na melhor das hipóteses - são aterrados. Tudo isso com uma tecnologia já plenamente consolidada e adequada para as distâncias paulistanas.

Existe uma previsão de injeção de uma quota obrigatória de biometano na rede de gás canalizado no Estado de São Paulo estabelecida pelo Programa Paulista de Biogás, mas enquanto tal quota não é regulamentada e caso a quota não alcance níveis significativos que possibilitem a redução legal das emissões, as companhias de ônibus (que passam a serem multadas se não alcançarem a meta) podem recorrer à compra de biometano no mercado livre que já está prevista em regulamentação da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp).

Marco Tsuyama Cardoso é pesquisador do Instituto de Energia em Ambiente da USP, especialista em Regulação na Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) e ex-secretário executivo do Fórum Capixaba de Mudanças Climáticas.