Caminhar é preciso

01/07/2017 09:30 - O Tempo - BH

ALEX BESSAS

No cotidiano da estudante Bruna Camila, 17, a rua não é propriamente um espaço para estar. No máximo, é lugar para passar. E, de preferência, em um carro. Para ela, caminhar pelas vias públicas é exceção à regra. A começar pelo trajeto que faz entre a casa e a escola: embora sejam apenas cerca de cinco minutos, ela, que está no segundo ano do ensino médio, nunca havia ido à pé para o Estadual Central, onde estuda. “Eu sempre vou de carro, geralmente com meu pai ou algum responsável”, explica a adolescente.

Casa, carro e escola são os lugares que Bruna mais frequenta durante a semana. Nos sábados e domingos, “eu já saio mais de casa, eu passeio mais”, diz. Shopping, eventos voltados à cultura japonesa, a casa de colegas. Mas, para chegar a esses destinos, se não for no carro da família, Bruna opta por serviços de transporte individual, na maioria das vezes, o Uber.

Seja pelas facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias, pelo medo de assédio e violência ou acolhidos por um sentimento de proteção de seus pais, fato é que, assim como Bruna, há uma geração de crianças, adolescentes e até adultos que não sabem ou não desenvolveram o hábito de andar pela cidade. As consequências desse costume tanto para o indivíduo quanto para a urbe têm sido estudadas por especialistas.

Para além das questões da saúde, o mau hábito reflete também na construção da própria ideia de cidadania, segundo a arquiteta e urbanista Irene Quintáns. Coletivamente, o esvaziamento dos centros urbanos destrói o conceito de cidade, acredita o sociólogo Rudá Ricci. Pode até mesmo aumentar a sensação de insegurança, analisa, por sua vez, o arquiteto e urbanista Sérgio Myssior.

Fato é que explorar a diversidade de pessoas, as velocidades, as cores e os cheiros das ruas e dos encontros possíveis (em esquinas, praças, jardins), enfim, experimentar os espaços públicos da cidade pode ser bem mais benéfico, inspirador e interessante do que muitos imaginam. No caso específico de Bruna Camila, a estudante relata que, desde que era mais nova, o pai, por um instinto compreensível de proteção, e como tantos outros genitores, preferiu o deslocamento por quatro rodas.

Instigada a pensar em seu cotidiano fora de um carro, Bruna titubeia. “Andar a pé? Eu acho que, por algumas regiões, seria bom, para conhecer... E também por conta do meio ambiente”, diz a garota.

A convite do Pampulha, a belo-horizontina aceitou realizar, pela primeira vez, o trajeto até a escola a pé, acompanhada pela irmã mais velha. E o experimento acabou despertando sensibilidades. “A vista se torna mais ampla, percebe-se mais lugares em volta”, surpreendeu-se. Além disso, “você se sente mais disposto a começar o dia pela caminhada, além de conhecer melhor o seu trajeto”, entusiasma-se, já pensando em repetir a experiência.

Cidade condomínio

Bruna, na verdade, é exemplo de uma história notoriamente comum. Tanto que há muito tempo se pensa essa nova forma de lidar com o meio urbano. O sociólogo Rudá Ricci, por exemplo, cita o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) para dizer do entendimento do percurso para o homem moderno. “Ele já examinava que, em um trajeto em um carro, ônibus ou metrô, nós estamos atentos apenas ao ponto de chegada, sem experimentarmos as paisagens, os encontros”.

O sociólogo vai além. Para ele, “a cidade acaba quando o lugar de encontro vira apenas a escola, o trabalho e a família”. Do ponto de vista urbanístico, Ricci acredita que “é o desenho da cidade que nos define, não o contrário”. Em certo momento, lembra o escritor italiano Italo Calvino (1923-1985), para quem a história das cidades está nas calçadas, que trazem em si a marca das pessoas que por ali transitam. Partindo deste pressuposto, elabora que, inicialmente, há de se acreditar na humanização dos centros urbanos, mas, por outro lado, há um fenômeno social que inverte tal lógica. “A arquitetura funcional das cidades coisificou a gente”, afirma, em referência a departamentalização dos espaços. “Ando todos os dias e noto que mesmo quem faz uma caminhada, faz apenas em um espaço específico, como se só aquele lugar servisse para este fim”. Ele lembra também a divisão de classe social ou mesmo de estilo. “Esta tudo esquadrinhado”, critica.

“Ao optar pelo shopping, o que essas pessoas estão fazendo é escolher um lugar onde se sentem confortáveis, sentem que este é o território deles”, diz. “Essa é a base da mentalidade que nos impede de entender o espaço público como nosso”, propõe. “A cidade está deixando de ser pública nas nossas cabeças”.

Sérgio Myssior acredita que iniciativas abertas em espaços públicos podem fortalecer a vitalidade das ruas. “Esses momentos de eventos como Carnaval de rua convidam as pessoas a descerem dos prédios para circular pelas ruas… Há outros exemplos, como o fechamento de algumas ruas nos domingos, ações do Museu Abílio Barreto, assim como do Conjunto Moderno da Pampulha... Esses momentos são muito ricos para resgatar a vida em comunidade!”.

A rua também é lugar de criança

O vídeo “Caminhando com Tim Tim” é um delicado viral no YouTube. Publicado em 2014, narra a pequena saga de Valentim, que, nas duas quadras entre a casa de seus pais e a casa da avó, explora cada pedrinha, árvore e desfruta de encontros cotidianos – com um flanelinha, um guardador de carros, com o dono de um mercadinho e seu gato e senhores do almoxarifado de um hospital. Genifer Gerhardt, mãe de Tim Tim, que narra e acompanha o filho, afirma que, com o pequeno, aprendeu que “o chegar não é mais valioso que a andança”.

O pequeno fragmento do cotidiano de mãe e filho é citado pela urbanista espanhola Irene Quintáns, que considera o vídeo um alento. Ela, diga-se, levanta a bandeira de que lugar de criança também é na rua. “Este é o caminho possível para o desenvolvimento de sentimento de cidadania nos pequenos”, frisa.

“As crianças precisam usufruir e vivenciar as cidades”, diz, lembrando que isso não acontece se elas são transportadas de carro para a escola, shopping ou parque. “Alheia à cidade, a criança não sabe que precisa cuidar do meio em que vive... Se só se relaciona com os amiguinhos do condomínio, não vai conhecer a diversidade”, indica. Por tudo isso, “elas deixam de aprender coisas muito básicas sobre a sua relação com o outro e também com a cidade”, diz.

Vivendo em São Paulo desde 2011, ela cita uma vivência sua. Irene recorda que, em uma caminhada com seu filho, ele sorriu para uma pessoa em situação de rua. “A criança não pensa que o morador de rua é menos que ela. Vai ter curiosidade... Mas não vai ter preconceito”. Portanto, “vivenciar a cidade também combate muitos preconceitos”, estabelece.

Além disso, ela sustenta que esta é uma questão de saúde. “Uma criança que anda pouco acumula fatores de risco: má alimentação, sedentarismo, sobrepeso, pouco contato com a luz solar”. Tudo isso, pode levar a situações críticas. “Diabetes, pressão alta, colesterol: as crianças estão desenvolvendo doenças de adultos”, critica.

Flâneurs de Belo Horizonte

Era 1910 quando o cronista João do Rio (1881- 1921) emprestava características humanas para as ruas da então capital brasileira, o Rio de Janeiro, na publicação “A Alma Encantadora das Ruas”. No livro, o autor se identifica como flâneur. “Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir”, escreve. Afinal, para ele, “ora, a rua é um fator de vida nas cidades, a rua tem alma!”, decreta com lirismo particular. Ainda hoje, diga-se, há quem, como João, se identifique com a arte de flanar.

Vindo de Lagoa da Prata, interior de Minas, Gustavo Gontijo mora em Belo Horizonte há sete anos. “É curioso como meu olhar mudou nesse tempo”, reflete. Ele veio à cidade para cursar publicidade, hoje, sua profissão de formação. “Eu demorei muito a aprender a andar por BH”, diz, completando que as dimensões da capital o assustavam, ao mesmo tempo que “sentia vontade de conhecer tudo”.

Especificamente em relação à região central, ele se viu fascinado. Pessoas, estilos, grafites e arquitetura chamavam sua atenção nas caminhadas rotineiras que passou a fazer. Hoje, andar a pé é um hábito. “Tanto que vim até aqui, para essa conversa, assim, caminhando”, diz. Ao se lançar à deriva na cidade, Gontijo acredita que está experimentando o meio em que vive de maneira especial. Vale dizer, principalmente aos fins de semana, quando, às 9h, começa sua “via sacra”, como costuma chamar. Em um sábado, ele percorre pelo menos seis bairros de BH, parando ocasionalmente em eventos ou para fotografar paisagens que descobre em suas andanças.

Não tardou para que essas observações aportassem em seu trabalho com colagens, arte que domina. “Comecei a fotografar, depois recortava as imagens e inseria em minha estética”, explica. Qual a surpresa ao descobrir nesse fazer artístico “um manifesto por novas formas de ver a cidade”. “Notei que, por mais que passasse por aquele lugar, muitos não notavam a cidade à sua volta... Ao ver as fotos ou colagens, essas pessoas começavam a se permitir mais”.

Outro que viu sua sensibilidade se transformar ao mudar a forma como andava pela cidade foi Sylvio Coutinho, que expõe uma série de fotos e vídeos, resultado dessa mudança, até 30 de julho na Casa Fiat de Cultura.

Acontece que, para o tratamento de uma lesão, Coutinho se viu obrigado a pedalar por BH. “Sempre andei olhando tudo à minha volta, mas fazia isso de carro... De bicicleta, minha percepção mudou”. Se antes se rendia aos encantos de uma praça ou prédio, “agora vejo as pessoas que passam por ali, sinto os cheiros dos jardins e esgotos”, indica.

Ruas vibrantes

As observações de Gontijo e Coutinho em muito se conectam às análises do arquiteto e urbanista Sérgio Myssior. Assim como Rudá Ricci, o membro do movimento “BH Que Queremos” é critico à departamentalização da cidade. Ele cita o livro “Morte e Vida de Grandes Cidades” (1961), da escritora norte-americana Jane Jacobs (1916-2006), para criticar a segmentação territorial típica das cidades de desenho modernistas, como Brasília.

Myssior acredita que para que as ruas voltem a ter vigor, é preciso pensar na “diversidade de uso dos dispositivos públicos”, afinal, “um lugar que concilie cultura, esporte, áreas verdes e comércio tem maior possibilidade de ocupação”. Outro aspecto importante, é “a diversidade de renda”. “A cidade precisa ser mais inclusiva”, defende.

Com equipamentos relativamente próximos e democraticamente ocupados, o urbanista destaca que “a rua voltará a ter sua importância, porque vai virar um lugar de encontro”. E, bem, “conhecimento e inovação estão ligados ao encontro de pessoas e ideias nos espaços de convívio”. É assim, diz, que “surge toda vitalidade da cidade”.

O urbanista lembra, ainda, que “o próprio comércio floresce nesse ambiente”. “Ao pensar nosso tecido urbano para criar essa inclusão, temos uma resposta com novas ideias, uma economia mais vibrante”, decreta. Do contrário, “nesse processo muito intenso que BH – e todo Brasil – tem vivido, onde usa-se cada vez mais espaços privados, segregados, a rua vira só lugar de passagem”. A consequência é que o ambiente se torna mais inóspito e perigoso.

A cidadania ativa, frisa Myssior, é outro aspecto que acompanha o andar a pé pela cidade. “Usando a calçada, o cidadão vai querer preservá-la”, exemplifica. O urbanista acredita que devolver vitalidade às ruas está ligado a um exercício constante e duradouro que passa não só por gestão e planejamento, mas também por gentileza.

Saudável e desafiador

Desafios. A urbanista Irene Quintáns brinca que quando a questão é pensar formas de viabilizar maior adesão ao transporte não-motorizado, a resposta vale R$ 1 milhão. Outro urbanista, Sérgio Myssior tem sugestões. Para ele, é preciso encarar os trajetos não como um ligar dois pontos, mas como percurso. Além disso, é necessário incluir pontos de parada, lugares para descanso e para se relacionar, como os parklets espalhados pela cidade. Por outro lado, Irene lembra que calçadas danificadas, falta de sinalização e faixa de pedestres e a insegurança são fatores que tornam a adesão à mobilidade ativa (a pé ou de bicicleta) mais difícil. Mas, para ela, trazer informações acerca dos prejuízos de só transitar em veículos motorizados para a saúde individual e coletiva pode ajudar a mudar este quadro.

Saúde. Além de contribuir para o desenvolvimento da cidadania, caminhar pelas ruas da cidade pode trazer mais benefícios que correr numa esteira na academia. Professor de escola de educação física, fisioterapia e terapia ocupacional da UFMG, Anderson Aurélio lembra que a caminhada ao ar livre é a mais saudável das opções. “Como a digital, cada um de nós tem uma pisada diferente. A esteira força um pisar específico, que pode trazer consequências para nossa estrutura músculo esquelética”, informa. Aurélio argumenta que corrida e caminhada ao ar livre são atividades aeróbicas que trazem vários benefícios como, por exemplo, ao sistema cardiovascular, e também reduz o estresse ao permitir ao caminhante experiências mais dinâmicas que apenas o exercício em si.