Cinto de segurança em ônibus é item ignorado de passageiros a governos

19/06/2016 09:18 - Folha de SP

Incrementar a fiscalização e a conscientização dos usuários é tarefa que volta a ser debatida, mesmo que timidamente, após outra tragédia.

Há 11 dias, 18 pessoas morreram em um acidente com ônibus de estudantes na rodovia Mogi-Bertioga, em São Paulo -muitos dos passageiros viajavam sem o cinto.

A legislação é clara: o Código de Trânsito Brasileiro estabelece que todos os passageiros e o condutor de qualquer veículo, com exceção de ônibus que permitem o transporte de pessoas em pé, precisam usar o cinto. O descumprimento da lei é infração grave, com multa de R$ 127,69 e autuação de cinco pontos na carteira do motorista.

Além disso, uma resolução da ANTT (agência que regula o transporte interestadual rodoviário) determina que os condutores de ônibus precisam informar aos passageiros, antes do início de qualquer viagem, sobre a obrigatoriedade do uso do equipamento. Se não o fizerem, as empresas estão sujeitas a multa de R$ 1.528,72.

Levantamento feito pela Folha a partir de dados disponibilizados pela ANTT mostra, no entanto, o quanto essa fiscalização, sob responsabilidade de técnicos da agência e da Polícia Rodoviária Federal, é tímida no país: em mais de 1,2 milhão de viagens nos primeiros três meses do ano, apenas 194 multas foram aplicadas, 0,016% do total de deslocamentos.

Somados os últimos quatro anos, foram somente 1.261 multas desse tipo no país.

A reportagem entrou em um ônibus que partia de São Paulo para Piracicaba e constatou que, de 26 passageiros, 7 estavam sem cinto. "Trabalho com ônibus desde 1978 e nunca vi alguém ser multado por cinto. A fiscalização é muito fraca. O motorista não pode exigir que as pessoas usem, então vai da consciência de cada um", afirmou o inspetor Saturnino Francisco, 57, que trabalha para a empresa Cometa na rodoviária do Tietê.

Para Rodolfo Rizzotto, coordenador do programa SOS Estradas, não basta a legislação punir apenas motoristas.

"É preciso que a lei mude e o próprio usuário seja multado por seu comportamento, que põe em risco a vida de outras pessoas", afirma. Ele também defende que passageiros sejam retirados do veículo se não usarem o cinto.

Sob a legislação atual e com fraca vigilância, os passageiros também não fazem sua parte para aumentar a segurança de suas viagens.

Levantamento da Artesp (agência de transportes de SP) em 174 viagens no fim do ano passado mostrou que mais de 60% dos usuários de viagens intermunicipais ignoram o cinto de segurança.

A analista de finanças Isabela da Silva Koki, 25, utiliza ônibus fretados diariamente nos 40 km entre Mairiporã e São Paulo, onde trabalha.

"Tem cinto no ônibus, mas não uso. Vi o caso dos universitários em Mogi, mas nem pensei em acidente, continuo sem colocar o cinto. Os motoristas não avisam", afirma.

Segundo pesquisa de 2015, também feita pela Artesp, o desrespeito à lei é muito menor em outras categorias: só 9% dos motoristas de carro dirigem sem cinto; entre os caronas, 11%, e entre ocupantes de banco traseiro, 38%.

INEFICAZ

Não há dúvidas de que o uso do cinto de segurança em ônibus reduz o risco de lesões graves e de mortes em acidentes. Mas especialistas ouvidos pela Folha alertam que os modelos atuais disponíveis oferecem proteção insuficiente para os passageiros.

Enquanto os cintos de três pontos são obrigatórios em carros e caminhões, uma resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) autoriza que assentos de ônibus tenham apenas o equipamento de dois pontos, também chamado de abdominal.

"Instalar cintos de segurança de três pontos para todos os passageiros nos ônibus é uma absoluta necessidade", afirma Dirceu Rodrigues, chefe do departamento de medicina de tráfego da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego).

Rodrigues afirma que o cinto abdominal protege integralmente apenas o quadril dos viajantes -e nada mais.

"Cabeça, coluna cervical, tórax e abdômen continuam totalmente expostos a lesões em frenagens bruscas ou colisões frontais, por exemplo", diz o membro da Abramet.

O especialista prossegue na comparação: "Um cinto de três pontos oferece proteção de 70% para a coluna, de 56% para cabeça e tórax, e 45% para o abdômen -enquanto para o cinto de dois pontos esses índices são nulos".

A projeção do tronco sobre as coxas em um acidente gera o que os médicos chamam de "síndrome da tesoura", acarretando lesões graves e gravíssimas que não são perceptíveis na hora, como hemorragias internas.

"Se a cabeça for projetada, ainda que o quadril esteja fixo ao banco, pode ocorrer até mesmo traumatismo craniano", declara Rodrigues.

Estudos da própria Abramet mostram que o uso do cinto de segurança de três pontos reduz em até 75% o risco de morte em um acidente para passageiros no banco traseiro de um veículo e em até 45% para quem está no banco dianteiro.

Apesar da comprovada importância desse equipamento, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados arquivou projeto de lei que tramitava desde 2012 e tornava obrigatório o uso do cinto de três pontos também nos ônibus.

Responsável pelo parecer que levou ao arquivamento do projeto, o deputado Marcelo Matos (PHS-RJ) apontou "inviabilidade técnica da medida" e seu "forte impacto na indústria, que teria investimentos altos com pesquisa, tecnologia, maquinário e linhas de produção".

"Infelizmente o lobby das empresas fabricantes e montadoras de ônibus no país fez com que o projeto fosse abandonado", diz Rodrigues, da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego.

A legislação da Austrália, por exemplo, obriga que ônibus ofereçam os cintos de três pontos desde 1994. Para Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, "esse é o futuro no Brasil".

No ano passado, de acordo com dados da Polícia Rodoviária Federal, o país registrou 7.165 acidentes com ônibus em rodovias federais. Em 430 desses casos houve vítimas fatais. 

Casal sobrevivente de tragédia narra busca alucinada por cinto de segurança

Quarta-feira, 8 de junho, 23h, rodovia Mogi-Bertioga, início do trecho de serra. Um ônibus lotado de estudantes parece desgovernado e começa a ziguezaguear na pista.

Leandro se apressa e ajuda a colocar o cinto de segurança na namorada, Aline, sentada ao seu lado. O equipamento está preso debaixo da poltrona, mas ele o alcança.

Enquanto isso, no banco da frente, Carol grita angustiada que a fivela de seu cinto não fecha. Naqueles segundos de pavor, Aline insiste com a amiga para mudar de lugar. As duas costumavam viajar lado a lado no trajeto diário de ida e volta entre São Sebastião, no litoral paulista, e a universidade de Mogi das Cruzes, na Grande SP.

Carol salta para outra poltrona, mas não se sabe se enfim conseguiu colocar o cinto.

No banco de trás, ainda desprotegido, Leandro segue tateando em busca da fivela. Mas já não há mais tempo. Ele sente o ônibus tombar e, num reflexo, abraça a namorada, pouco antes de o veículo se chocar contra uma rocha e se arrastar de lado por metros.

Os três estudantes de psicologia estavam no ônibus acidentado que deixou um saldo de 18 mortos, entre eles o motorista -as causas ainda estão sendo investigadas.

Aline de Jesus dos Santos, 20, teve traumatismo craniano e sobreviveu. O namorado, Leandro Amorim, 22, teve uma vértebra quebrada, traumatismo craniano e uma fratura exposta no braço, mas passa bem. A Carol -Ana Carolina da Cruz Veloso, 21- morreu a caminho do hospital.

FORA DE CONTROLE

O ônibus fretado pela Prefeitura de São Sebastião saiu de Mogi por volta das 22h10, com 34 estudantes. Menos de uma hora depois, Aline e Leandro dormiam, quando foram acordados pelos berros dos colegas, que pediam para o motorista parar o veículo.

Amiga do casal e uma das sobreviventes, a estudante de engenharia Gabriela Leite, 18, foi quem deu o alerta: "Coloca o cinto, galera!". O grito desencadeou a busca desesperada pelas fivelas.

Leandro se lembra que, naquele momento, o ônibus estava fora de controle. Primeiro, ficou apoiado somente nas rodas da direita. Depois, passou para as da esquerda e virou, batendo na rocha e caindo em uma vala.

Com o impacto, o casal apagou.

Quando abriu os olhos, Leandro estava com as pernas dentro do ônibus e o tronco do lado de fora. Reparou também que, sob o seu corpo, estava o de sua amiga, Estefani Santos, 19 -a estudante foi resgatada e levada para um hospital, onde seguia internada até sexta-feira (17).

Leandro não conseguia se levantar, mas viu os amigos que estavam em um ônibus logo atrás socorrendo os colegas feridos. Pediu ajuda.

Foi retirado do veículo pelos estudantes, passando de braço em braço, em uma corrente humana. Deitado no asfalto, Leandro perguntava pela namorada e pelos amigos.

"Sentia dor no pescoço e no braço, mas vi que conseguia mover os pés. Então fiquei preocupado com os outros. Escutei as pessoas dizendo que 'tinha óbito', e não conseguia virar a cabeça", contou à Folha na última quarta (15), dia em que recebeu alta.

Ele só sossegou quando o amigo trouxe a notícia: Aline estava bem e tinha saído do ônibus andando, sozinha.

Não que Aline se lembre disso. Ela perdeu a memória de certas partes do desastre. Mas o que ela se recorda é revivido todas as noites. "Não tenho conseguido dormir, tenho pesadelos e acordo assustada. Vejo tudo acontecer."

Na primeira lembrança de Aline após o impacto, ela está sentada no asfalto, com a cabeça ensanguentada.

No hospital, tiveram que amarrar seus pulsos. Estava em choque e não queria que ninguém a tocasse. A atitude lhe rendeu o apelido de "rebelde" entre as enfermeiras. Saiu do hospital dois dias depois, com 13 pontos e uma cicatriz de cerca de dez centímetros, que lhe corta a testa.

"Não estou me sentindo bem com isso", diz, com vergonha da marca. Desde o acidente, só saiu de casa para ir ao posto de saúde e buscar seus pertences na delegacia. Tem sentido muitas dores, que tenta combater incessantemente com remédios, chá de camomila e maracujá.

Aline mora com a família em uma casa espaçosa, porém simples, em uma rua de barro, no pé de um morro, em Juquehy, São Sebastião.

A construção, de tijolo sem reboco e telhas de zinco, por pouco não foi totalmente destruída em fevereiro por um deslizamento de terra. O buraco que se abriu na montanha, bem como as árvores caídas -que atingiram
parcialmente a casa- ainda assustam a família, aconselhada pelas autoridades locais a permanecer "em alerta".

REENCONTRO

No dia em que a Folha visitou Aline, Leandro havia saído do hospital. Quando soube que o namorado estava em casa, a estudante decidiu ir ao salão de beleza. Queria se preparar para o reencontro. Cortou uma franja, que escondeu a cicatriz na testa.

O dois começaram a namorar há pouco mais de seis meses, mas são amigos desde o colégio. Na faculdade, acabaram fazendo o mesmo curso.

Leandro, que trabalha como porteiro, escolheu psicologia "para ajudar as pessoas". Aline, porque conhecia uma psicóloga e gostava da profissão. A tragédia não deixou apenas marcas nos corpos de Aline e Leandro.

Ambos querem retomar os estudos e iniciar um novo hábito: o uso do cinto de segurança.