Combustível encarece a vida porque usamos muito caminhão? E se fosse trem?

20/08/2017 09:30 - Folha de SP

Ricardo Marchesan - UOL, em São Paulo

Quando o preço dos combustíveis aumenta, como aconteceu recentemente com a alta de impostos decretada pelo governo, a avaliação de economistas é que o efeito é sentido em outros produtos também, em cascata, por causa do transporte.

Atualmente, a maior parte das cargas no Brasil é levada em caminhões, consequência de uma opção feita pelo governo brasileiro na década de 1950, que incentivou o transporte por automóveis, deixando de lado os trens.

Bruno Batista, diretor-executivo da CNT (Confederação Nacional do Transporte), estima que atualmente 62% a 65% do transporte de cargas no Brasil é rodoviário, e 20% a 23% é ferroviário.

Mas se a proporção fosse diferente, quais seriam os efeitos da alta de combustíveis?

Especialistas ouvidos pelo UOL defendem maior investimento em trens, cuja eficiência no consumo de combustível é maior do que a de caminhões. Isso, porém, impactaria mais os produtos exportados pelo país, e nem tanto os preços no mercado nacional.

Trem x Caminhão

O transporte ferroviário é, de fato, mais eficiente em relação ao consumo de combustível (no caso, diesel), do que o rodoviário, segundo Bruno Batista. Ele diz que, em termos energéticos, o trem fica entre o caminhão (menos eficiente) e o navio (mais eficiente).

Fabiano Mezadre Pompermayer, coordenador de estudos sobre infraestrutura econômica do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), diz que o consumo de combustível do trem equivale a 30% do gasto do caminhão por quilômetro a cada tonelada transportada.

Alta não afeta todos os preços

Mesmo com essa eficiência, apenas trocar o transporte rodoviário pelo ferroviário não levaria a uma diminuição intensa e generalizada dos preços dos produtos nas prateleiras dos mercados brasileiros, a ponto de ser significativamente sentida pelos consumidores, segundo Pompermayer.

Isso porque o custo do transporte não é tão grande, proporcionalmente, no preço final de produtos industrializados, que são mais caros. Ele só representa uma fatia significativa do preço final de produtos de baixo valor agregado, como agrícolas e minerais, que em geral são exportados.

O coordenador do Ipea dá como exemplo a soja. Após percorrer 1.000 km (uma distância média no Brasil) de caminhão, 30% do preço final da tonelada é o diesel gasto. Comparativamente, em um bem de consumo industrializado, como um alimento congelado ou um xampu, o custo do transporte representa 2% do preço final, segundo ele.

É por isso também que, independentemente do tipo de transporte usado, a alta dos combustíveis não tem todo esse impacto direto no bolso do consumidor, como grande parte da população acredita, afirma Pompermayer.

"O peso (do aumento de combustíveis) mesmo é para quem usa carro todo dia", diz. "O impacto vai ser basicamente em produtos de baixo valor agregado." Como essa produção do Brasil é para vender para fora, "quem vai pagar a conta (do aumento do combustível) é o exportador", de acordo com ele.

Pompermayer diz, também, que os transportadores não estão conseguindo repassar a atual alta do combustível para o produto final, por causa da crise econômica.

Com a política econômica de incentivo de compra de caminhões, iniciada em 2010, atualmente há mais veículos disponíveis do que produtos a serem transportados, forçando para baixo o preço do frete e dificultando o repasse do aumento do diesel.

Mais trens, sim

Isso não quer dizer que o Brasil não precise de mais trens, segundo os especialistas.

A professora Liedi Bernucci, coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Pavimentação da Escola Politécnica da USP, diz que a opção de países com grandes extensões foi priorizar os trens, como EUA e Austrália.

"Transportar por rodovia é um custo alto", afirma. "Se fosse baixo, nos Estados Unidos, [o transporte] seria rodoviário. Não é. É ferroviário, eminentemente."

Ela defende que esse tipo de transporte aumentaria a competitividade dos produtos brasileiros exportados, com preços mais baixos.

O melhor uso das ferrovias também levaria a um desenvolvimento econômico e aumento de renda da população brasileira que depende das atividades que usam os trens, direta e indiretamente, afirma Pompermayer.

Distância precisa ser longa

A opção pela ferrovia também não significaria o abandono das rodovias. Primeiro porque as estradas chegam a lugares que a ferrovia não alcança. São necessárias estradas para ligar fábricas e fazendas às estações de trem, por exemplo.

Outro fator que determina a eficiência da ferrovia é a distância. Para começar a valer a pena transportar o produto por trem, a distância total tem de ser maior do que 600 km, segundo o coordenador do Ipea. No caso da navegação, essa distância tem que ser maior do que 1.000 km.

"Isso para começar a fazer a conta. Senão nem faz. Coloca no caminhão e vai embora", afirma.

Ou seja, para o transporte de produtos dentro do país, que chegam às prateleiras dos mercados, muitas vezes o rodoviário é o mais vantajoso mesmo, a não ser que tenha que atravessar regiões, indo do Sul ao Nordeste, por exemplo.

Mesmo assim, como o Brasil tem uma grande concentração de cidades e população na região litorânea, a navegação seria a melhor opção para transporte dentro do país em muitos casos, de acordo com ele.

Para itens que serão exportados (por navio) e são produzidos longe do litoral, o trem costuma ser mais vantajoso. Por exemplo, a soja do Centro-oeste e que vai para um porto, de onde segue para outros países.

Menos trem para vender mais carro

A opção pelo investimento no transporte rodoviário aconteceu na década de 1950, principalmente no governo do presidente Juscelino Kubitschek. O objetivo era atrair a indústria automobilística, o que não foi errado, na opinião dos especialistas consultados pelo UOL.

"Não é um erro, foi bom, porque traz produto, mão de obra, gera emprego, riqueza", afirma a professora Liedi Bernucci. Ela diz, porém, que houve um problema estratégico no investimento em infraestrutura.

"Começou a se negligenciar o transporte ferroviário para poder dar valor ao transporte rodoviário, achando que assim se dava valor à indústria automobilística", diz a professora.

"Essa maior dinâmica do rodoviário para integrar o país teve seu papel, e foi importante", diz Bruno Batista. "O grande problema é que foi feito investimento em uma modalidade em detrimento de outra."

Em 1953, o Brasil tinha 1.300 km de rodovias pavimentadas e 36 mil km de ferrovias, segundo Liedi Bernucci. Hoje, são 22 mil km de rodovias, e 30 mil km de ferrovias.

Os investimentos em trens só retornaram nos anos 1990, com a política de privatizações e concessões. Ainda assim, esse investimento foi mais voltado para melhorar a malha atual do que para expandi-la.

E o futuro?

De acordo com dados da CNT, o setor público investiu R$ 12,93 bilhões em ferrovias entre 2006 e 2014, média de R$ 1,44 bilhão ao ano. No mesmo período, o investimento privado foi de R$ 33,51 bilhões.

Em 2014, a CNT estimou que seriam necessários, ao todo, R$ 281,7 bilhões de investimentos em 213 obras ferroviárias para o Brasil chegar ao cenário ideal de transporte de cargas por trem.

Com o agravamento da crise econômica, porém, o investimento foi muito afetado

A previsão do diretor da CNT é que essa dificuldade de investimentos deve se prolongar por quatro ou cinco anos, até que o Brasil volte a crescer mais intensamente, e por anos seguidos.

De acordo com a professora Bernucci, a previsão do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), criado no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, era de que em 2025 houvesse uma inversão na matriz de transportes, ou seja, o Brasil passaria a ter mais transporte ferroviário do que rodoviário.

"Isso não vamos conseguir (dentro do prazo planejado)", afirma.