15/11/2014 09:00 - O Globo
RIO - Umelina Gomes Pereira, de 94 anos, faz parte do
primeiro grupo a chegar ao Conjunto Residencial de Paquetá, em 1952. Ela morava
com o marido, servidor da Prefeitura do então Distrito Federal, e os filhos no
Morro Dois Irmãos. Eles tiveram o direito de ocupar uma das casas construídas
para abrigar os funcionários que moravam e trabalhavam na ilha e sofriam com as
péssimas condições de moradia. Um projeto representativo da arquitetura moderna
brasileira, assinado por Francisco Bolonha e praticamente desconhecido, o
conjunto é dissecado no terceiro volume da obra monumental "Os pioneiros da
habitação social” (Editora Unesp/Edições SESC), organizada pelos arquitetos e
professores Nabil Bonduki e Ana Paula Koury.
Fruto de uma pesquisa coletiva que durou de 1997 a 2013, o
trabalho recém-lançado traça uma radiografia da habitação social no Brasil: no
primeiro volume, são analisadas as políticas públicas desenvolvidas desde fins
do século XIX até 2010, incluindo o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e
o Minha Casa, Minha Vida (MCMV). No segundo, é realizado um inventário de todos
os projetos executados no país entre 1930 e 1964. Já no terceiro e último, são
apresentados em detalhes a concepção, o desenho e a história de onze conjuntos,
sendo sete no Rio de Janeiro, incluindo o de Paquetá.
Bolonha desenhou Paquetá em 1949. O arquiteto trabalhava no
Departamento de Habitação Popular (DHP) do Rio comandado por Affonso Eduardo
Reidy e Carmen Portinho entre 1946 e 1958. O órgão tinha como principal
objetivo projetar e executar conjuntos habitacionais conectados a serviços
coletivos, cujas unidades deveriam ser alugadas por um valor acessível aos
funcionários municipais. Reidy e Carmen foram responsáveis por edifícios
icônicos da arquitetura moderna brasileira, como o conjunto do Pedregulho, em São
Cristóvão, e o Marquês de São Vicente, na Gávea.
Não à toa as décadas de 1940 e 1950 foram consideradas a Era
de Ouro da arquitetura moderna brasileira. Nabil Bonduki explica que a
habitação era um tema central da cidade moderna e dos arquitetos em geral. A
preocupação com o alto nível dos projetos e a socialização da terra, a partir
da valorização do espaço público nos conjuntos, são algumas das principais
características das iniciativas, além da utilização de técnicas como a
pré-fabricação. O DHP também tinha algumas particularidades.
— Nos projetos do DHP estão presentes equipamentos sociais
que, de certa forma, poderiam representar a substituição de espaços internos
por outros coletivos, que serviriam às famílias. O Pedregulho é o exemplo mais
bem acabado. Você tem a escola, o posto de saúde, o centro comercial e uma
lavanderia coletiva, algo muito característico. Em outras iniciativas existia
até uma cozinha coletiva. A ideia era retirar do âmbito da unidade habitacional
privada atividades domésticas. A Carmen Portinho estava ligada à luta
feminista. Esta seria uma forma de desonerar a mulher — explica o professor,
ressaltando que isso não ocorre em Paquetá, onde cada unidade tem sua própria
área de serviço.
A qualidade arquitetônica e de construção dos projetos é
notória. Por isso mesmo chama atenção o contraste com os atuais edifícios
construídos pelo programa Minha Casa, Minha Vida, cujos problemas foram
apontados em um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) em abril deste
ano. Numa pesquisa com coordenadores e assistentes da Caixa Econômica Federal
(CEF), 75% relataram ter recebido queixas dos moradores sobre vazamentos e
infiltrações. Já problemas com fissuras foram apontados por 61,5% dos
entrevistados. A localização dos empreendimentos também foi alvo de críticas do
TCU.
O professor elenca algumas razões para as diferenças. Nos
anos 1940 e 1950, os conjuntos não eram vendidos, mas alugados. Muitos dos
projetos —como os de Realengo, da Penha (ambos do IAPI), de Olaria (IAPC) e a
Casa da Bancária (IAPB) — eram construídos pelos institutos dos aposentados de
cada categoria (industriários, comerciários, bancários), que sofreram uma fusão
em 1966 para criar o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Os
apartamentos eram um investimento dos institutos, remunerados pelos aluguéis.
Os órgãos também eram os responsáveis pela manutenção das áreas comuns. Logo,
por se tratar de um patrimônio, a qualidade estava acima da preocupação com os
custos. A lógica do chamado teto de valores e do financiamento surgiram a
partir de 1964, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). A
localização dos empreendimentos do MCMV é outro problema.
— Hoje há uma limitação grande do teto de valor e uma
presença forte do setor privado. É preciso respeitar elementos mínimos, mas a
qualidade não faz parte da avaliação. Em busca do lucro, é praticado o máximo
aproveitamento do terreno para as unidades. As cidades dos anos 1940 tinham
mais espaços disponíveis, o que não ocorre hoje. Mesmo assim havia uma lógica
de articulação com o sistema de transporte público, como é o caso dos conjuntos
construídos próximos à linha férrea e à Avenida Brasil, no Rio. Em São Paulo,
uma das diretrizes do novo Plano Diretor, recém-aprovado, é o adensamento do
entorno das estações de metrô e trem — afirma o arquiteto, que é vereador pelo
PT na capital paulista.
Os conjuntos foram sofrendo modificações ao longo dos anos,
com a lógica do espaço público sendo substituída pela dos condomínios fechados.
O de Paquetá, para onde Dona Umelina se mudou com a família há mais de seis
décadas, perdeu muito da sua concepção original. Os cobogós continuam lá, assim
como os dois blocos perpendiculares, um com dezesseis e outro com onze casas,
ambos virados de frente para a área de lazer. No entanto, o agora condomínio
foi gradeado, o corredor comum de cada bloco foi fechado por paredes, janelas e
portões de alumínio foram instalados. Sentada numa cadeira na entrada de casa,
ela relembra satisfeita a vida no conjunto. Só lamenta o descaso com a ilha.
— Quando chegamos já estava tudo pronto e a gente foi
vivendo. Eu gosto muito daqui, não tenho o que reclamar de ninguém. Precisava é
dar uma levantada na ilha, antigamente tinha o serviço de conservação. Paquetá
precisava de uma levantada — conta Dona Umelina, a única moradora viva dos
primeiros a chegar.