Em trem lotado, paulistano define: ‘aqui é Esparta, mano!’

15/09/2014 09:39 - Terra

ANA LIS SOARES

A proposta era dar meu ponto de vista como mulher e usuária do metrô e trem em São Paulo. Afinal, várias de nós são, no mínimo, perturbadas por provocações machistas em vagões lotados, após um dia inteiro de trabalho e cansaço. A faxineira que trabalha na minha casa, Meire Salles foi segurança na estação da CPTM em Santo Amaro por seis anos e ela afirma: há diversos casos diários de mulheres abusadas, "encoxadas" ou, mesmo, perseguidas em suas viagens.

- Ish, Ana, tem muita história. Uma vez, uma moça chegou até nós com as calças molhadas. O homem gozou na perna dela dentro do trem, acredita?, conta Meire, indignada (claro).

Por causa de tais "homens" - e coloco aspas, pois isso é animal e não humano -, muitas de nós se sentem acuadas, com medo e em risco por, simplesmente, querermos garantir nosso direito de ir e vir. Eu mesma, certa vez, fui perseguida por um jovem careca no trem, que fez questão de se posicionar do meu lado no vagão (que não estava cheio) e me dizia coisas como "seus olhos são lindos", "me adiciona no Facebook" - daí para pior, mas não vale a pena o adendo. Ele ficou ao meu lado e se sentiu no direito de me tocar por diversas vezes. "Não, amigo, eu não quero e não mereço ser tocada por gente como você. Alguém me ajude?", pensava, mas nada aconteceu.

Encoxadas, tocadas, abusadas. A falta de respeito não tem limites. E, por pressa e medo, muitas mulheres se recusam a buscar autoridades e denunciar o fato. Segundo Meire, várias vezes ouviu de vítimas do abuso de passageiros que estavam com pressa e que não iriam registrar um boletim de ocorrência. "Elas pediam para que fôssemos atrás do homem, que fizéssemos 'justiça' com nossas mãos. Mas não é assim que se resolve, então nada acontecia", diz.

Apesar de todo o problema envolvendo vagões cheios e mulheres, não me propus a fazer esta reportagem apenas por ser mulher. Também queria dar minha opinião como alguém que vem de uma cidadezinha pequena, e que nunca tinha andado de metrô até os 20 anos. Que se assusta e se deslumbra com tudo isso. Com tanta gente. 

Assim, numa quarta-feira, eu e meu colega jornalista Fábio Santos (veja relato abaixo) fomos andar de metrô e trem - não para chegar a algum lugar, mas para observar e analisar o trajeto. Saímos da avenida Eng. Luis Carlos Berrini, zona sul de São Paulo, às 16h30, fomos às estações Luz, Tatuapé, Brás, Luz novamente, e depois nos separamos: Fábio parou na República e eu voltei sozinha até a Berrini, chegando por volta das 20h.

Nasci no interior de Minas Gerais. Por lá, dizem que não há mar, então o mar de Minas é o céu. Ou o bar. Assim como lá, a cidade de São Paulo também não tem mar, mas, como se ouve em tudo quanto é lado em Sampa: o mar de São Paulo são pessoas. E haja mar por aqui...

Meu corpo dança, vai de um lugar para o outro de forma involuntária. Os pés tentando se equilibrar, a mão busca um apoio... Chegamos, finalmente. A porta se abre e como num "caldo”, vou sendo levada pela onda, perdida, passiva. "Mas que lugar é este? O inferno?”, indaga uma mulher bem ao meu lado – tão atordoada como eu. Quase que virei para ela e disse "não, querida, isso aqui é o mar de Sampa”. É, a maré está brava e, como em qualquer outra situação de sobrevivência, meu caro, o negócio é não nadar contra ela. Estamos na estação Pinheiros, que interliga as linhas amarela do metrô e a esmeralda, da CPTM.

Neste momento, entro no fluxo de gente, da pressa, da vontade que o paulistano carrega junto de suas sacolas, de poder chegar logo no trem para, se Deus quiser, se sentar. Ah... Um assento é tudo a esta hora do dia. Eu e Fábio estamos com olhos e ouvidos abertos para beber desta água: queremos experimentar (e reportar, claro) o que as pessoas enfrentam diariamente.

"Please, mind the gap!": o vão que me dá medo (e parece nem existir) para as pessoas, que correm por um lugar no trem

A primeira vez que andei de metrô foi há uns 5 anos. Já moça crescida, pulei o vão entre a plataforma e o trem (pois é, para a mineira desconfiada, aquilo ali é um precipício, sô!). E não dê risada, porque, anos depois, continuo pulando.

Quando morei em Londres, o que mais ouvia nas estações era o lembrete "Please, mind the gap” (o que significa, mais ou menos, "cuidado com o vão”). Dia desses, estava na plataforma da estação Berrini, quando passou uma mulher correndo ao meu lado que, PLAFT, caiu no vão. A voz robotizada dizendo "Mind the gap” ecoava na minha cabeça – enquanto minhas pernas tremiam de susto. Após socorrer a coitada apressada (que teve sorte de ficar presa pela metade), um dos seguranças veio até mim e perguntou se estava tudo bem. Imagina a cara de espanto da pessoa.

Aliás, a mulher correndo e caindo no vão me lembra a história de duas amigas do interior que vieram para São Paulo e, como todo bom turista, pegaram o metrô: desavisadas e distraídas, entraram na estação, perceberam um movimento, que virou correria e, por último, desespero.

- Ai, quê que é isso?

- Não sei, corre!

E, numa corrida animalesca, como a de uma manada fugindo do predador, conseguiram acompanhar o fluxo e, finalmente, chegaram ao trem. "Uai! Tudo isso é só por pressa?”.

Enfim, enquanto me recordava do vão, de minhas amigas caipiras e da pressa paulista, chegamos à estação da Luz para ir até Tatuapé. Quando as portas se abriram para entrarmos, senti de novo a sensação de ser sardinha, ou uma surfista muito das ruins. Fui empurrada e deixada para trás pelo meu colega (afinal, ele é esperto e eu sou lerda, né? Me jogavam para lá e para cá - e, com meu lado caipira aflorado - só focava no vão, para não cair). Meu coração está disparado, sinto adrenalina até os fios de cabelo.

- Fábio, que pavor!, digo com a mão no peito, já dentro do trem.

Um homem e duas mulheres percebem meu estranhamento e começam a conversar entre si sobre suas experiências de anos e mais anos. "Uma vez eu fui empurrada e caí, vim parar do outro lado do vagão, pisoteada. E quem disse que alguém ajuda?”, lembra Luzia Cristina, auxiliar de limpeza, que vai em direção à Guaianases (linha 11 da CPTM).

Fábio Nogueira, técnico em eletrotécnica, pega esta linha todos os dias. Ele conta que, assim como eu, sente a adrenalina reagindo em seu corpo logo que pisa na estação. "É como uma luta, meu, é engraçado, porque é a mesma sensação de luta mesmo. Você tem que lutar. Se não empurra, é empurrado”, diz. Fábio acha que andar de trem é pior para mulheres, mas considera que muitas estão bem preparadas para o 'fight'. "Elas criam suas formas de defesa. Também empurram, também lutam”, afirma.

A estudante universitária Indianara Sammer tem 19 anos e, assim como Fábio Nogueira, disse que já se acostumou com o movimento. Ela mora em Franco da Rocha, trabalha na Zona Leste e estuda em Santa Cruz. Como a maioria dos paulistanos, sai muito cedo de casa, e volta tarde.

- Volto umas 22h, diz, tímida.

- E você não tem medo? Com tantos casos de abuso, assalto...

- Não, me acostumei. Ando desde muito novinha.

É, o jeito é se acostumar. Fábio também se acostumou. Se considera um guerreiro, pois diz não se importar em entrar na batalha. "Na hora, você não sente, mas quando chega em casa vai encontrando os hematomas”, conta. "É selva mesmo”.

Neste momento, somos interrompidos pela voz grave e alta de Ivan Farias, ou ‘Stallone’: "aqui é Esparta, mano!”. Stallone está sentado e se anima ao perceber que lhe damos ouvidos. "Para se sentar é duro, se não for Esparta, não senta”. Como o apelido sugere, ele é grande, forte e, bem, se aqui é Esparta, ele é tipo um rei... Aqui, ele não é Rocky, é Leônidas.

Mal sabia Newton...

Brás. 17h59. O cheiro é de gente, de suor, de desespero, de milho cozido. É uma maratona com corridas em escadas, salto em distância, caminhada com obstáculos (daí, o empurra-empurra). Para mim e Fábio, o burburinho é uma oportunidade rica de jornalismo. Mas, a situação é boa somente para nós e para o moço que vende balas. Apenas nós três sentimos o lado doce de uma das estações mais movimentadas da cidade. "Opa, tá cheio, hein?”, diz o comerciante, todo animado.

O sinal avisa por diversas vezes: as portas estão se fechando. Ou deveriam, pois tá difícil. Percebo um homem tentando se encaixar em meio à massa dentro do vagão, mas, o espaço que sobrou é muito menor que ele. Porém, o homem não desiste e insiste em sua presença caótica naquela viagem.

O físico Newton dizia que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, contudo ele afirmou isso porque nunca andou de metrô em Sampa. Só pode!

A luta entre um homem e toda a multidão dentro do trem continua por mais dois ou três movimentos de abre-e-fecha da porta. Para o ‘gladiador’, não importa o desconforto, não importa que dali dois minutos outro trem chegará à estação. Em algum momento, ele me percebe o observando pelo lado de fora. Olho fixamente – com medo, compaixão, raiva. Ao contrário de mim, ele me olha de um jeito vazio, sou só mais uma. No olhar dele, só há uma coisa: a vontade de partir – custe o que custar.

O trem parte. Todos seguem seu caminho de volta. E amanhã, meu amigo, é tudo de novo.

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Câmera e empurrões em um mergulho na hora do rush em SP

FÁBIO SANTOS

O drama do transporte público em São Paulo é conhecido há muitos anos e, como um bom paulistano, já enfrentei as mazelas das mais diversas linhas de trens e metrô da região metropolitana. Moro, há cerca de três anos, no centro da capital paulista e, desde então, uso o transporte sobre trilhos apenas nos finais de semana. Antes disso, pegava toda a Linha 11-Coral e a Linha 3-Vermelha do Metrô, fazendo o caminho entre Mogi das Cruzes e o centro de São Paulo.

Com uma câmera acoplada, voltei a fazer parte deste caminho ao lado da repórter Ana Lis Soares para mostrar como está o horário de pico do Metrô e da CPTM em São Paulo e o que percebi é que nada mudou. Acompanhe essa jornada:

Uma das coisas que percebi com o passar do tempo foi que o horário de pico se ampliou significativamente. Antes, ele começava às 18h, mas hoje já é possível ver o caos às 17h. E foi neste horário que iniciamos nossa jornada, na estação Berrini.

Logo no primeiro trem, tudo lotado. Fomos em pé, mas com espaço para movimentação dentro do vagão. Era o início do horário de pico.

Ao chegar à estação Pinheiros, que faz integração com a Linha 4-Amarela, veio a primeira grande aglomeração. Pessoas apressadas pelos corredores e passando com muita rapidez pelas escadas rolantes. A pressa típica dos paulistanos me fez passar praticamente invisível, mesmo estando com uma câmera acoplada no peito e com uma luz vermelha piscante. Ninguém percebia.

Ao descer a quase infinidade de escadas da estação Pinheiros, o que chamou a atenção foi o fluxo na "contramão”, principalmente nas escadas convencionais, quando os passageiros subiam correndo como se estivessem fugindo de algo.

Ao chegar à estação da Luz, logo na saída do vagão, nos deparamos com uma enorme fila no único elevador da plataforma. Idosos, mulheres com crianças no colo e portadores de necessidades especiais aguardavam para subir de maneira mais rápida e confortável.

Ao subir os lances de escada, chegamos à integração entre duas linhas do Metrô (2 e 4) e outras duas da CPTM (7 e 11). Lá, a coisa fica realmente séria.

Conheço a estação da Luz de longa data e, neste local, a beleza da arquitetura acaba ficando em segundo plano, já que o movimento único dos passageiros praticamente te proíbe de fazer qualquer parada. A ordem aqui é correr e correr.

Minha companheira de reportagem, a mineira Ana Lis Soares, acabou se surpreendendo com a "disposição” das pessoas na luta pelo espaço. "Fiquei embasbacada com a capacidade de correr e se empurrar das pessoas ali. Quanta energia essas pessoas têm para correr e disputar por seu espaço”.

Lembrando o meu tempo de Mogi das Cruzes, entrei no trem do Expresso Leste em meio ao empurra-empurra tão típico. Mais típica ainda é a reclamação diária de quem usa esse meio de transporte, pois a cada viagem é possível ouvir a história de alguém que se machucou em alguma das composições. Virou parte do cotidiano.

O trem que já saiu lotado da estação da Luz, ficou ainda mais apertado com a entrada de passageiros no Brás. Mas, apesar dos pesares, era um dia "tranquilo”, já que naquela quarta-feira não havia nenhum problema técnico nas linhas da CPTM, algo que ocorre com frequência.

Chegando à estação Tatuapé, na zona leste, descemos e passamos a acompanhar as tentativas, muitas vezes frustradas, de embarque no trem que seguia sentido Guaianases. Cronometrando um trem a cada três minutos, o que vimos foi muito empurra-empurra para que as pessoas pudessem entrar. Um dos passageiros ficou com a mochila presa e os seguranças da plataforma tiveram que entrar em ação, para liberar a saída do trem.

Voltando no sentido centro, pegamos um vagão completamente vazio e aproveitamos, por alguns minutos, a maravilha do contra fluxo. Tudo mudou, porém, quando chegamos à estação Brás, que faz ligação com a Linha 3-Vermelha do Metrô e com as linhas 10-Turquesa e 12-Safira da CPTM.

A imagem mais emblemática desta estação foi a escada sentido metrô, na plataforma da Linha 10, completamente vazia e a escada sentido CPTM abarrotada de gente. Também vimos o fluxo insano de pessoas deixando os trens nas linhas 11 e 12.

Finalizamos a nossa aventura na estação da Luz, já em pleno horário de pico. Quem fica sobre as plataformas olhando pode observar alguns minutos de paz extrema, seguidos por outros de correria generalizada.

Na volta para a Linha 4-Amarela, pegamos o maior aperto do caminho e ficamos alguns minutos parados na transição. Como se não bastasse a superlotação, algum passageiro deixou escapar uma flatulência que deixou a situação ainda mais incômoda.

Na "marcha do pinguim”, prosseguimos até os trens da linha Amarela, onde seguimos finalmente no contra fluxo. Antes de chegar em casa ainda peguei a Linha 3-Vermelha no Metrô, na estação República e a situação não era muito diferente do que vimos na CPTM, mas o lado bom era que o movimento já começava a diminuir e as pessoas, finalmente, chegavam às suas casas.