09/03/2014 09:00 - O Estado de SP
A última reserva de Mata Atlântica às margens do Rio
Pinheiros, na zona sul de São Paulo, está marcada para morrer. São cerca de 5
mil árvores, numeradas uma a uma, com placas de ferro, em uma área de proteção
ambiental de 717 mil metros quadrados, vizinha do Parque Burle Marx, no
Panamby.
Um dos terrenos com mata fechada ainda abriga cursos d'água
e espécies raras de árvores, algumas com mais de 50 anos. Segundo representação
feita por moradores da região ao Ministério Público Estadual (MPE), esse
respiro verde vai dar lugar a dois empreendimentos com 16 torres, criando um
paredão ao redor do parque, tombado pelo patrimônio histórico desde 1994.
O promotor do Meio Ambiente José Roberto Rochel instaurou
inquérito civil para apurar denúncia de que o desmatamento teve início no mês
passado. A área pertencia ao Fundo Imobiliário Panamby, gerido pelo Banco
Brascan, e foi fatiada em duas partes: uma delas foi vendida para a Cyrela e
outra para a Camargo Corrêa.
Um alvará para nova construção na parte do terreno que
pertence à Camargo Corrêa já tramita na Prefeitura. Em julho de 2013, o governo
indeferiu um pedido para obras na área, mas a empresa continua tentando obter a
licença.
As duas incorporadoras confirmam a intenção de ocupar os
terrenos, mas garantem que vão respeitar a legislação ambiental.
Os terrenos estão em área inundável de várzea e eram parte
da bacia do Rio Pinheiros. Os registros do Departamento de Áreas Verdes
(Depave) da Prefeitura apontam os terrenos como de proteção permanente. Mesmo
assim, em 2003 o governo municipal concedeu uma autorização para a edificação
da área. No caso da Camargo Corrêa, são necessárias ainda as licenças
ambientais para o início do desmatamento.
A Cyrela ainda não fez o pedido de licença para construção
no terreno que fica bem na frente do Parque Burle Marx. Mas moradores vizinhos
da área relatam ao MPE, com fotos e vídeos, um suposto desmatamento que teria
sido iniciado em fevereiro pela empresa Agrotexas Ambiental, que nega a
acusação.
Roberto Delmanto, advogado que representa três associações
de moradores da região e morador do Panamby, conseguiu fotos e plantas do
megaempreendimento planejado na área - seriam torres e também um shopping
center.
"Quem entra na floresta do terreno observa claramente
que estão abrindo clareiras, para tentar descaracterizar a Mata Atlântica. Isso
é uma prática comum do mercado antes de fazer o pedido de licença. Aí, quando
vier alguém da Prefeitura fazer o laudo das espécies, vão ver bem menos árvores",
afirma o advogado.
Ameaça. Moradores
do Morumbi temem os riscos do corte de mais de 5 mil árvores em uma área onde
já foi autorizado, em junho do ano passado, a retirada de 1.787 árvores para a
construção do Condomínio Parque Global, empreendimento da empresa Bueno Neto.
Eles estão enviando à Prefeitura laudos feitos por botânicos e geólogos que
apontam a impermeabilização de uma área inundável às margens do Rio Pinheiros.
"Essa é a última faixa de mata nativa que existe entre
a Represa do Guarapiranga e o Rio Pinheiros. É uma floresta que pertence a
todos, que não pode ser transformada em jardins particulares", alega a
urbanista Helena Caldeira, da Associação Morumbi Melhor.
"A Prefeitura não pode permitir que o mercado
imobiliário traga para esse lado do Pinheiros, em uma área de preservação, o
mesmo adensamento que foi feito do outro lado, ao longo da Avenida Chucre
Zaidan", diz a urbanista.
As outras duas entidades que tentam barrar os empreendimentos no entorno do Parque Burle Marx são o Defenda São Paulo e a Associação Amigos do Panamby. Para frear a autorização aos novos prédios, elas ainda apontam como agravante o fato de a região do Panamby ter liderado o desmatamento autorizado em São Paulo na última década - o distrito da Vila Andrade, onde está o bairro, perdeu milhares de árvores para dar lugar a novos prédios desde janeiro de 2005.
Áreas preservam fauna
e flora de Mata Atlântica
Laudos feitos a pedido de moradores revelam existência de vasta
biodiversidade; há suspeita até de alteração de cursos d'água
Uma curta caminhada pela área de mata virgem localizada
entre a entrada do Parque Burle Marx, na zona sul de São Paulo, e a Marginal do
Pinheiros, em um dos terrenos ameaçados pelos megaempreendimentos, já permite
esquecer que se está no coração da maior cidade do País. O barulho do curso da
água, dos pássaros e dos insetos combina com a abundância de árvores, indicando
que ali há uma rica diversidade de fauna e flora - isso tudo a menos de 200
metros do trânsito da Marginal do Pinheiros.
O Estado fez uma visita ao terreno na quinta-feira passada,
guiado pelo advogado Roberto Delmanto, autor da representação feita em nome de
três associações de moradores dos bairros da região ao Ministério Público
Estadual (MPE) sobre o caso. "Construíram um muro aqui, ninguém sabe quem,
para represar a água. A presença de nascentes e cursos d'água é um dos pontos
que pode inviabilizar a destruição do terreno", diz o advogado.
Há um muro de concreto nas bordas de um dos lotes do
terreno. A área atrás dele tem nível maior do que a parte da frente.
"Aterraram tudo", afirma Delmanto. Mas, logo depois dessa área mais
alta, há um brejo, com água limpa e vegetação, cercada por árvores marcadas com
plaquinhas metálicas.
"Impressiona a sobrevivência de fauna típica das
formações alagáveis, como a presença de moluscos, pequenos peixes e até aves
aquáticas nidificando como a marreca-caneleira, ainda mais levando em
consideração a presença das poluídas Marginais com seu tráfego pesado e o morto
Rio Pinheiros", escreveu o botânico Ricardo Cardim, autor de um laudo
pericial sobre a vegetação da área anexada à representação feita pelos
moradores ao MPE.
O laudo tem fotos de macrófitas, vegetação aquática que
sobrevive ali porque há água limpa, e chega a ter imagens de um ninho com 11
ovos de uma espécie de pato que ainda sobrevive na região. Há até imagens de
"pequenos peixes" que estão na água selvagem. Mas o trabalho é focado
nas espécies de Mata Atlântica do local: jacatirãos, copaíbas, paus-violas,
orquídeas nativas (uma raridade, segundo o laudo), jerivás, línguas-de-tucano
mirins e figueiras-bravas, só para citar alguns exemplos.
"A área avaliada contempla diversos elementos
importantes de uma biodiversidade original da cidade de São Paulo. Entretanto,
dentre esses elementos, um deles apresenta imenso valor ambiental e histórico
para os paulistanos: os trechos remanescentes das várzeas e florestas
inundáveis do Rio Pinheiros, únicos sobreviventes dessa formação ecológica tão
dilapidada", diz a conclusão do laudo. "Preservar tal área, em sua
totalidade, é de suma importância", diz o botânico.
Ocupação. O outro
terreno ameaçado é menos conservado. Ali, já não há vegetação rasteira ao redor
das árvores marcadas com medalhas numeradas. Também não há sinal de água
correndo por ali.
Quem passa pela Avenida Dona Helena Pereira de Morais, que
liga a Marginal do Pinheiros ao Panamby, tem a falsa impressão de que a área é
preservada. Isso porque a mata nas bordas do terreno foi mantida intacta - a
vegetação foi retirada no miolo do terreno.
Hidrografia. Além
do laudo botânico assinado por Ricardo Cardim, as associações contrataram um
estudo hidrográfico da região, feito pelo geólogo Sergio Kleinfelder Rodriguez.
O estudo afirma que o terreno foi alterado para ocultar
cursos d'água. "Pela topografia da região, há cursos d'água nesse terreno.
Mas há talures e tubos ali que indicam que as nascentes ali foram
aterradas", diz o pesquisador.
O laudo detalhado do terreno deve ficar pronto na semana que vem.
Prefeitura diz que
ainda não autorizou derrubada no local
Mas administração não afasta possibilidade de liberar obras e já pediu
informações ao Ministério Público
A Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente afirma
que não há nenhuma autorização concedida pelo poder público que permita a
derrubada de árvores nos terrenos citados nesta reportagem. Segundo a Pasta, a
Prefeitura já enviou ao Ministério Público Estadual (MPE) informações
solicitadas pela Promotoria de Justiça do Meio Ambiente para o inquérito que apura
o caso. O MPE afirma que as informações ainda não chegaram ao órgão.
A secretaria, entretanto, não afasta a possibilidade de
liberar obras no local. "Referente à construção das duas torres em frente
ao Parque Burle Marx (empreendimento da Camargo Corrêa), foi emitido
comunique-se no qual solicitamos adequar as plantas para nova análise da
emissão do parecer técnico. Portanto, até o momento, não existe autorização
nenhuma para o corte de árvores no terreno, assim como não foi constatado
córrego ou nascente no local", afirma a pasta.
Sobre o terreno do projeto da Cyrela, a Prefeitura informou
que "existe um processo administrativo, que atualmente está em análise.
Até o momento, não foi emitida nenhuma autorização de manejo arbóreo para esta
área", diz a Prefeitura.
Construtoras. As
duas construtoras citadas confirmam a intenção de construir torres nas áreas.
Ambas, no entanto, afirmam que vão respeitar a legislação ambiental.
A Cyrela informa, também em nota, que o Fundo Panamby
pretende empreender "em apenas três dos lotes e que serão inteiramente
preservados os quatro demais lotes nos quais está localizado o curso de água
existente".
Segundo a empresa, as plaquinhas que tanto assustam os
moradores da região fazem parte do catálogo que está sendo feito das espécies
da região. "A única atividade que (a Cyrela) realizou no local foi
catalogar os exemplares arbóreos, o que implica somente levantamento e
cadastramento das espécies existentes, relatório este que é exigido pela
Prefeitura no processo de aprovação do empreendimento em curso. É importante
ressaltar que até o momento não houve intervenção no terreno, incluindo corte
ou remoção da área verde", diz a empresa. Na nota, a Cyrela "reafirma
sua postura ética e reforça que aguarda os trâmites legais para dar andamento
ao processo dentro da lei".
Sem enviar nota por escrito, a Camargo Corrêa disse que, como o alvará de construção pleiteado pela empresa no local foi indeferido pela Prefeitura, a construção das duas torres foi suspensa, mas que o projeto será readequado. A empresa também nega que tenha derrubado árvores no local, mas confirma que também faz catálogo da vegetação.
MPE investiga
autorizações para corte de árvores
Inquéritos civis abertos apuram o desmatamento dos terrenos ao redor do
Parque Burle Marx
Os dois inquéritos civis abertos pelo Ministério Público
Estadual (MPE) para apurar o desmatamento dos terrenos ao redor do Parque Burle
Marx investigam se as eventuais autorizações "que existem ou venham a
existir" no local são legais ou não. É um inquérito para cada terreno.
"Que tem um projeto para construção de várias torres
ali, o projeto existe. Agora, se o projeto foi encaminhado para os órgãos
públicos competentes e se houve aprovação, nós ainda não temos resposta",
diz o promotor do Meio Ambiente José Roberto Rachel de Oliveira.
"É fato que existe ali uma questão ambiental bem séria.
Além da vegetação a ser preservada, há a questão das nascentes e dos cursos de
água. Eles existem. Partindo da premissa de que as empresas pediram autorização
e ela foi emitida, temos de verificar como essa autorização foi emitida e se
ela pode ter sido emitida", afirma o promotor. "É nesse passo que
estamos", diz Rochel.
O outro inquérito é presidido pelo promotor Luis Roberto Proença.
Aval de loteamento
ignorou nascente de água e mata nativa
Terrenos foram vendidos por fundo imobiliário após autorização, em
2003, do Departamento de Proteção a Áreas Verdes
O projeto de criar loteamentos na área de Mata Atlântica ao
lado do Parque Burle Marx teve seu embrião no início dos anos 1990. Em 1995, o
Fundo Imobiliário Panamby, gerido pelo Banco Brascan, comprou de proprietários
particulares os dois terrenos lindeiros ao parque, onde hoje está o pouco que
restou de mata na várzea do Rio Pinheiros.
No entanto, por causa das restrições de construção na área,
o fundo manteve o plano de criar condomínios no local congelado. No fim de
2003, o fundo finalmente obteve uma autorização do Departamento de Proteção a Áreas
Verdes (Depave) para edificar o local.
Com essa autorização, o mesmo fundo vendeu um dos terrenos,
no dia 17 de agosto de em 2004, para a Cyrela, por R$ 78,385 milhões. Quase
dois anos depois, no dia 14 de junho de 2006, o fundo vendeu a outra metade
para a Camargo Corrêa Investimentos Imobiliários, por R$ 131 milhões.
Apesar de ter de obter novas licenças com a Prefeitura, as
empresas donas das terras podem agora usar a autorização do Depave de 2003 como
trunfo para viabilizar os empreendimentos. "Na autorização que foi
concedida em 2003 existe uma suposta suspeita de fraude. O Depave usou uma
planta para aprovar a obra que ignorou a nascente e a mata nativa que existiam
ali", afirma o advogado Roberto Delmanto, que representa as associações de
moradores do Morumbi que lutam para barrar os empreendimentos.
O advogado mostra plantas do Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), do
governo do Estado, que apontam a existência da mata e dos cursos d'água, também
de 2003, no mesmo local onde o Depave autorizou a edificação. Outra restrição
alegada pelos moradores da região na representação feita ao Ministério Público
Estadual é o tombamento do Parque Burle Marx e de seu entorno, de 1994, feito
pelo próprio Condephaat.
Investigação. A
venda dos terrenos era mantida sob sigilo e só foi descoberta pelos moradores
do Morumbi quando o Fundo Imobiliário Panamby publicou, no fim de 2012, um
balancete de suas transações imobiliárias na capital paulista, feita pela
auditoria Crowe Horwath. Os moradores também conseguiram no cartório de Santo
Amaro escrituras de contratos que comprovam a venda dos terrenos para a Cyrela
e para a Camargo Corrêa.
Em um verdadeiro trabalho de investigação, os moradores
ainda descobriram, em documentos de 2007 do Fundo Imobiliário Panamby, a
apresentação de um condomínio com 14 torres e shopping center na área adquirida
pela Cyrela três anos antes - o novo complexo residencial e comercial, caso
aprovado pela Prefeitura, vai engolir até o espaço hoje usado como
estacionamento do Parque Burle Marx.
Terreno vizinho já é
um clarão de terra aberta
Prefeitura autorizou corte de um remanescente de Mata Atlântica com
1.787 árvores
Ao lado dos terrenos onde estão agora cerca de 5 mil árvores
marcadas, a Prefeitura autorizou o corte de um remanescente de Mata Atlântica
com 1.787 árvores, recorde para a construção de um único condomínio. As
autorizações foram dadas em março e abril de 2013 pela Secretaria Municipal do
Verde e Meio Ambiente. O aval teve como base um parecer da Companhia Ambiental
do Estado (Cetesb) que não considerou a área como de proteção permanente.
O documento pôs fim a um impasse que durava cinco anos - em
2008, a construtora responsável, Bueno Netto, chegou a ser multada em R$ 500
mil por cortar 206 árvores nativas do local, antes de obter as licenças.
Utilizando o entendimento estadual, uma comissão do
Departamento de Parques e Áreas Verdes (Depave) da Prefeitura analisou o
empreendimento em menos de quatro meses e forneceu a licença ambiental. Os
trabalhos de terraplenagem começaram no fim do ano passado e grande parte da
mata já foi derrubada. Vista do alto, a área do condomínio virou um clarão de
terra ao lado de uma mata bem fechada, onde fica o terreno da Cyrela.
Na época, a Prefeitura informou que o corte das árvores era
necessário para que a construtora fizesse a descontaminação do terreno, onde
era jogado nos anos 1960 lodo retirado do fundo do Rio Pinheiros. Já a Bueno
Netto afirma que a compensação será maior e chegará a "11.799 árvores de
doação", ao custo total de R$ 6.388.665,71. O resultado dessa correção,
porém, não será imediato. Segundo ambientalistas, a reposição demora mais de
dez anos para surtir algum tipo de efeito. E, para uma floresta ser refeita,
passa de 30 anos.
Preocupação. Em
São Paulo, os prazos para a recuperação de uma mata nativa devastada despertam
preocupação. Levantamento feito pelo Estado mostrou em 2013 que a capital
perdeu, com autorização oficial, 14 árvores por dia nos últimos 14 anos. Foram
72.514 exemplares cortados de lotes e áreas verdes com aval da Prefeitura.
A vegetação nativa retirada deu espaço a prédios, shoppings,
ruas, estações de metrô e outras construções. O número corresponde a quase
cinco Parques do Ibirapuera - área verde com cerca de 15 mil árvores e 1,4
milhão de metros quadrados.