04/04/2014 07:55 - Gazeta do Povo
Curitiba levou quatro décadas para se convencer de que
precisava de mais táxis nas ruas. Em 2008, a Gazeta do Povo expôs na reportagem
"Máfia laranja” as deficiências do setor e o escândalo do comércio clandestino
de licenças públicas. A Urbanização de Curitiba SA (Urbs) convocou às pressas
os 2.252 táxis da capital para um recadastramento. Um decreto de 2012 e uma lei
municipal de 2013 passaram a regular o setor, junto com uma licitação para
incorporar 750 novos veículos à frota local. Mas surgiram novos problemas e
antigas irregularidades continuaram.
A suspensão temporária da licitação por ordem da Justiça, decisão que foi modificada na última sexta-feira, foi só mais um efeito colateral das muitas tentativas de pôr fim às falhas de um sistema anacrônico. Porém, mesmo com todas as restrições impostas pela nova lei, médicos, advogados, policiais, funcionários públicos e empresários ainda mantêm licenças sem nem sequer sentar ao volante do táxi – uma das exigências do novo regulamento é que o dono da permissão deva dirigir ao menos um terço do período em que o veículo estiver rodando. Essa é só mais uma entre as irregularidades.
Permissão
De acordo com a Lei Municipal 13.957/2012, a Lei do Táxi,
não podem ser detentores de permissão ou autorização para esse serviço os
empregados e servidores da administração direta e indireta, ativos, da União,
estados, Distrito Federal e municípios, inclusive de entidades com
personalidade jurídica de direito privado sob controle do Poder Público e das
fundações por ele instituídas ou mantidas. Contudo, essa determinação não vem
sendo cumprida por alguns permissionários.
Eduardo Henrique Martini ocupa cargo comissionado 1-C na
Controladoria Geral do Estado. Não poderia, portanto, ter uma permissão de táxi
em seu nome. Nos registros da Urbs, ele iniciou na atividade em 10 de janeiro
deste ano, dono da licença número 25 [foto ao lado]. Por ironia, Eduardo é
coautor do Manual de Navegação do Portal da Transparência do Governo do Paraná.
Por telefone, disse não trabalhar no táxi e passou o caso para o pai, Marcos
Martini. Foi ele quem passou a licença ao filho, mas não quis falar ao telefone
e disse não ter tempo para entrevista nesta semana.
Há um ano, a Gazeta do Povo mostrou outros casos de pessoas
que não trabalham no táxi ou já nem moram no Paraná, mas que continuam com a
licença ativa. É caso de Inara Danielle Marques Drapalski, delegada da Polícia
Civil de Garuva (SC). Ela havia sido taxista em Curitiba por quase dez anos e
disse, à época, que não iria se desfazer da licença 458. E não se desfez. O táxi
hoje é dirigido por dois empregados.
Persistente
Outras irregularidades também persistem. A médica
veterinária Karina Stella Suckow não exerce a profissão, mas segue com a
licença 921, assim como o advogado Carlos Alberto de Oliveira Casagrande, dono
da permissão 1068, e a nutricionista Dalva Sabino Casagrande (licença 1817).
Esses casos podem estar entre os 25 processos em andamento
na Urbs, alguns com possibilidade de cassação da licença. São processos abertos
em 2013, analisados na Procuradoria-Geral da Urbs e que estão em fase de
recurso. Por lei, os processos são sigilosos e o nome do autorizatário não pode
ser revelado.
Situações como essas são um desvio para burlar a lei, que
permite a cada autorizatário nomear até dois motoristas colaboradores, conhecidos
como "sabugos”. Eles pagam diária entre R$ 120 e R$ 200 ao patrão, que assim
lucra até R$ 3 mil por mês sem precisar dirigir o táxi.
Isonomia foi item
questionado
Ao lançar o edital de concorrência para novas 750 licenças
de táxi, a Urbs buscou dar preferência aos taxistas com mais tempo de
profissão, uma reivindicação do sindicato da categoria. No entanto, na última
terça-feira, a juíza Fabiane Kruetzmann Schapinsky acatou argumento de "afronta
ao princípio da isonomia” apresentado por um participante do certame e
suspendeu a licitação.
A Urbs, porém, recorreu e conseguiu modificar a decisão três
dias depois, por meio de uma determinação da desembargadora Lélia Samardã
Giacomet, da 4ª Câmara Cível. No entendimento da desembargadora, o critério de
experiência profissional não ofende a isonomia porque está em sintonia com o
disposto nos artigos 27, II e 30 II, da Lei 8.666/93. Com a decisão, a Urbs
retomou a licitação e recebe, até amanhã, eventuais recursos.
Três critérios definem o cálculo para se chegar ao vencedor:
experiência profissional como taxista, infrações ao Código de Trânsito e ano de
fabricação do veículo a ser usado. Na soma dos dois últimos critérios era
possível obter até 40 pontos, enquanto que no terceiro item era possível chegar
a 60 pontos. O administrador de empresas que recorreu à Justiça conseguiu os 10
pontos possíveis nos critérios do carro e outros 30 por não ter pontos na
habilitação. Mas zerou no critério de "experiência” por nunca ter sido taxista.
Para a juíza Fabiane Schapinsky, "os candidatos com maior
tempo de experiência, sem dúvida, poderão iniciar a disputa com muitos pontos à
frente de outros participantes e, em algumas hipóteses, com um somatório de
pontos inalcançável pelos demais critérios, o que não se afigura isonômico e
tampouco competitivo”. A regulamentação federal da profissão de taxista não
considera o tempo de experiência fundamental para conceder uma outorga. Com isso,
a fórmula da licitação feriria a Lei Federal 12.468 de 2011.
Segundo a juíza, o critério do tempo de experiência como
condutor de táxi "não se apresenta como objetivo e técnico.” Ela também
analisou o fato de o candidato que exerceu a profissão por mais tempo em
Curitiba ter "o dobro de pontos”. A lei de licitações (8.666/93) prevê
condições de igualdade na concorrência. Para exercer a profissão, não faria
diferença se a experiência anterior tivesse sido nas ruas de Curitiba ou em
qualquer outra cidade, já que a natureza do trabalho é a mesma.
Uma placa de família
O ex-prefeito Luciano Ducci assinou em 2012 a lei 14.017
concedendo a hereditariedade das licenças de táxi em Curitiba. Na morte do
permissionário, a autorização pode ser transferida para familiares ou
terceiros. Os vereadores já haviam aprovado o projeto, com 25 votos favoráveis
e sete contrários. A discussão não cessou mesmo depois da lei. Das 2.035
licenças individuais de táxi em Curitiba, mais de 300 estão em nome de
mulheres. Uma parte é testa-de-ferro do pai ou do marido, para manter mais de
um carro na praça, e outra parte ficou com a placa como herança do marido
taxista.
O que pode parecer um benefício para garantir a velhice de
viúvas é um ato inconstitucional. Para o mestre em direito público Jorge
Ulisses Jacoby Fernandes, de Brasília, não existe hereditariedade no serviço
público. Numa comparação estendida, seria como o filho herdar o cargo do pai
que era funcionário público. Pela lei federal 8.987/95, "extingue-se a
concessão por falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento ou
incapacidade do titular, no caso de empresa individual". Ou seja, quando a
pessoa morre, a permissão morre junto.
O setor jurídico da Urbs (responsável pelas permissões de
táxi em Curitiba) não vê confronto com a Constituição, por considerar que a
nova lei trouxe uma alteração do paradigma legal, de permissão para
autorização. Pelo argumento oficial, interessa ao poder público que o serviço
seja eficiente, dimensionado de acordo com a necessidade da população. Contudo,
há discordâncias. Ao regulamentar a profissão de taxista, pela lei 12.468/2011,
a presidente Dilma vetou o artigo que previa a transferência da permissão a
familiares.
Professor da UniCuritiba e especialista em Direito Público e
Administrativo, Daniel Ferreira entende que a lei municipal transgride a
Constituição por ferir o princípio da isonomia e da moralidade, além de seguir
uma ideia antiga de que uma pessoa tem direito privado sobre o que é público. O
advogado e professor da Escola Superior de Advocacia Rodrigo Pironti considera
que repassar a licença por hereditariedade não é uma forma lícita.
Para o advogado Romeu Felipe Bacellar Filho, membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a discussão é sobre a natureza da concessão, que tem um caráter precário, sujeita a contrato. Portanto, ela não pode ser vitalícia, muito menos transferível. Ou seja, o poder público não poderia torná-la perpétua.
Transferência
Novo regulamento deve frear clandestinidade
O novo regulamento do serviço de táxi de Curitiba deve frear
o comércio clandestino de licenças ao restringir a transferência da placa entre
permissionários. A Urbs chegou a homologar até 80 transferências ao ano,
entendidas como "doação”. Mas nos bastidores tratava-se de uma venda. A placa
valia entre R$ 120 mil e R$ 180 mil.
As novas regras preveem só uma transferência ao longo de 35
anos, o que provocou uma corrida à Urbs, que recebeu 233 pedidos de
transferência entre agosto e outubro de 2013. Isso porque 14 de outubro era o
prazo final para a transação. Agora, o serviço será operado por autorizatários
por no máximo 35 anos. A nova regra permite uma transferência nesses 35 anos, e
só após 36 meses da assinatura do termo de autorização. Depois disso, o novo
beneficiário terá direito só ao prazo remanescente. Ou seja, se uma
transferência for feita 20 anos depois da autorização, o beneficiário terá
direito a prestar o serviço por mais 15 anos.
Licença se tornou negócio especulativo
Dos 2.252 carros em circulação na capital, 2035 estão em
nome de permissionários individuais e outros 217 registrados por empresas. São
raras as licenças de táxi que permanecem com mesma pessoa desde a última
outorga, feita há 40 anos. A maioria – algo muito próximo da totalidade – foi
passando de mão em mão por meio de "doações", ou "transferências
voluntárias". Como no caso de pessoa física a lei limita a uma placa por
permissionário, a frota curitibana deixou de ter como único caráter a prestação
de serviço público – passou a ser um investimento.
Muitos "investidores” foram comprando licenças até formar
sua pequena frota particular, pondo o carro no nome da mulher, dos filhos, de
sobrinhos e mesmo de amigos ou empregados. Outros diversificaram o negócio arrendando
placas de viúvas, que herdaram a permissão do marido, e colocaram empregados
para trabalhar. O arrendamento, tão questionável quanto a venda da placa, custa
em média R$ 1 mil por mês. Na clandestinidade, o mercado foi sendo regulado
pela lei da oferta e da procura. Com falta de novas placas, tornou-se um
negócio valorizado.
Em 1990, uma licença de táxi custava R$ 25 mil no mercado
clandestino. Chegou a R$ 180 mil em 2008, até a Gazeta do Povo publicar uma
longa investigação sobre irregularidades no setor, sob o título de "Máfia
laranja”. Imediatamente a Urbs convocou um recadastramento geral e exonerou um
de seus funcionários que havia colocado uma licença no nome da própria mãe,
como revelado pela reportagem. O clima de insegurança no comércio de placas fez
o valor cair, mas as transferências continuaram a todo vapor.
"Investidores” que moravam no exterior tiveram de voltar para o recadastramento. Havia casos de residentes nos Estados Unidos, Japão e Europa que tinham permissão de táxi em Curitiba. Alguns venderam a licença, outros acabaram ficando definitivamente no Brasil para não perdê-la. Famílias que tinham até sete táxis em nome do pai, da mãe e dos filhos acabaram se desfazendo de algumas licenças – mediante pagamento, claro.