Inspeção veicular só depende de coragem - Marli Olmos

21/02/2018 07:30 - Valor Econômico

Pode parecer demasiadamente futurista a previsão feita, há poucos dias, pelo pesquisador dinamarquês Peter Kronstrom: "No futuro vamos pensar que éramos completamente loucos por permitir que humanos dirigissem". Kronstrom é diretor do centro de estudos Copenhagen Institute For Future Studies e fez a declaração em entrevista à "Automotive Business", publicação especializada em temas automotivos no Brasil.

O acelerado processo de desenvolvimento de automóveis autônomos que se vê nos países desenvolvidos indica que a previsão do pesquisador pode se tornar uma realidade antes do que muitos imaginam. Mas são as estatísticas brasileiras as mais convincentes de que seu presságio em relação a humanos ao volante não é exagero.

No Brasil, 40 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito anualmente. São vários os motivos. Falhas humanas aparecem, no entanto, no topo da lista. Responsável por 37% dos acidentes envolvendo veículos em 2016, a falta de atenção foi, de longe, a principal causa. Velocidade incompatível ficou em segundo lugar, com 17%, seguida por ingestão de álcool (9%). Desobediência à sinalização, não manter distância segura e até dormir ao volante também aparecem na pesquisa publicada no "Atlas da Acidentalidade no Transporte Brasileiro", organizado pela Volvo do Brasil.

Não restam dúvidas de que o carro autônomo será uma das soluções para acabar com acidentes. Dotado de sensores por todos os lados, quando estiver totalmente desenvolvido esse tipo de veículo, não "cometerá infrações".

Mas, antes de sonhar com o dia em que seremos transportados por veículos sem motorista é preciso cuidar dos que estão hoje nas ruas, conduzidos por pessoas. E não basta contar só com mudanças do comportamento no trânsito. No atlas da acidentalidade, defeitos mecânicos apareceram em 7% dos acidentes registrados no Brasil em 2016, data da última pesquisa. Fazer a manutenção do veículo é, portanto, obrigação do proprietário. Mas no Brasil as coisas são diferentes.

No livro "Cultura de Segurança no Trânsito", o pesquisador J. Pedro Corrêa, uma das maiores autoridades no assunto no Brasil, vincula a falta de cultura de segurança no trânsito à questão educacional: "Por sermos um país com baixos índices de escolaridade, nos faltam noções de civismo, de cidadania, tão marcantes no nosso comportamento no trânsito".

Mas algumas iniciativas começam a chamar a atenção. Por meio de resolução publicada em 8 de dezembro, o Código Nacional de Trânsito (Contran) regulamentou a inspeção veicular fixada no Código de Trânsito em setembro de 1997. Cabe, agora, aos Detrans de cada Estado preparar o formato de seus programas para, segundo essa resolução, implantá-los até 31 de dezembro de 2019.

Apesar do grande avanço que a medida representa, após duas décadas de espera, pouco se falou a respeito. Talvez porque, no período em que a resolução foi publicada, outros temas, como a votação da reforma da Previdência, eram prioridade no noticiário. Ou, então, porque o assunto já foi tantas vezes debatido que muitos já não põem fé em que isso algum dia aconteça no Brasil.

São Paulo chegou a ter uma inspeção ambiental entre 2008 e 2012, no governo do prefeito Gilberto Kassab (PSD). Mas seu sucessor, Fernando Haddad (PT), rompeu contrato com concessionária, a Controlar. A polêmica que se instalou em torno dessa experiência é o que menos importa agora.

O Rio de Janeiro tem 51 postos espalhados pelo Estado. Carros passam por verificação de itens básicos de segurança e medição de gases poluentes uma vez ao ano; caminhões e ônibus são inspecionados três vezes ao ano.

Outra boa notícia foi a formação de um grupo de trabalho sobre o tema, que envolve governo, indústria e entidades empresariais. As discussões fazem parte do Rota 2030, programa automotivo que ainda não tem data para entrar em vigor. Nesse grupo, que tem se reunido periodicamente há um ano, as discussões sobre inspeção representam também um embrião para abrir caminhos a um futuro programa de renovação da frota.

A recente resolução do Contran animou os envolvidos. "Foi um grande passo", diz Gábor Deák, conselheiro do Sindicato Nacional da Indústria de Componente (Sindipeças), que participa do grupo. Para evitar que a resolução caia no esquecimento, o grupo tem visitado os órgãos de trânsito dos Estado e oferecido ajuda para organizar os futuros programas de inspeção.

Falta, ainda responder velhas perguntas. Quem pagará pela inspeção? A questão foi polêmica no programa paulistano. Inicialmente o custo era arcado pelo proprietário do veículo. Muitos queixaram-se. Mas quando a prefeitura decidiu devolver o dinheiro, a maioria não o reivindicou.

Critérios também precisam mudar. Como diz Deák, no Brasil "as regras são invertidas". Ele refere-se à cobrança do IPVA. Quanto mais velho for o carro, menor é a alíquota do imposto estadual. Os com mais de dez anos sequer recolhem o tributo.

Dessa forma, por meio de uma medida populista, que prevalece no país há décadas, veículos mais econômicos, menos poluentes e com mais ítens de segurança pagam mais imposto. Já aquele que apresenta sinais de desgaste nos freios, pneus carecas e que lança nas narinas de quem estiver por perto a maior quantidade de gases poluentes é premiado com menos tributação.

Na linha tributária, existe hoje, na indústria, grande expectativa em torno da redução do IPI de híbridos e elétricos, já acenada pelo governo federal. A medida corrigirá uma distorção: apesar de mais econômicos e menos poluentes, nesses veículos incide a alíquota mais alta de IPI. Embora a atitude seja louvável, de nada adianta reduzir a carga tributária de modelos com essa tecnologia por um lado e, por outro, fechar os olhos ao problema dos que provocam a degradação ambiental.

Iniciativas para despertar na sociedade interesse pela segurança veicular e viária e a busca por soluções merecem respeito. Mas a efetiva mudança depende do Poder Público. Os caminhos são conhecidos. Falta a coragem para segui-los. Pela resolução do Contran, a inspeção começa em 2019, primeiro ano de governo do próximo presidente da República.

Marli Olmos é repórter especial