24/03/2014 07:10 - Folha de SP
A 15 passos da bomba de gasolina, um BMW esportivo azul
metálico chega de mansinho. "Cola" ao lado de um similar da marca
alemã. O motorista encara o vizinho e faz o motor roncar. O barulho é a senha
para os dois contornarem o posto e caírem na marginal Pinheiros, onde vão
disputar um racha e tentarão ultrapassar os 200 km/h.
De olhos vidrados na pista da marginal, onde a velocidade
máxima permitida é de 90 km/h na pista expressa, a animada plateia ocupa a
calçada do posto. São cerca de cem jovens, que entram em delírio com as
ultrapassagens.
Alguns bebem, outros fumam narguilé e todos só falam, numa
linguagem própria, sobre carrões "tunados", que tiveram suas
características alteradas para obter desempenho ainda maior.
Parte desses veículos --Camaros, Audis, BMWs, entre outros
importados com preços que podem superar R$ 200 mil-- está estacionada no posto,
espécie de "pit stop". Outros se espalham pelos arredores da rua
Bento Frias.
"Isso aqui é tipo adrenalina pura", empolga-se um
garoto de 21 anos, cabeça raspada, tatuagens pelo corpo, fazendo pose para as
meninas ao lado de seu possante: um Audi, diz ele, "zero bala".
O burburinho começa a partir da meia-noite. Aos poucos, vai
ganhando quorum, e o movimento se repete na marginal, onde os "megas"
(carrões importados), na gíria dos aficionados, vão ser "colocados para
brincar".
Nas últimas três semanas, a Folha acompanhou essas corridas
ilegais --que, segundo relatos, são frequentes há ao menos seis meses, nas
madrugadas de sexta-feira.
Carrões importados de cidades vizinhas como São Bernardo do
Campo, Barueri e Osasco, somam-se aos locais nas disputas que ameaçam
motoristas e pedestres.
"Além de fãs de corrida, aqui vêm muitos profissionais
da área automobilística movidos a adrenalina", diz um engenheiro mecânico,
que trabalha para uma multinacional e pede anonimato.
Geralmente, essas corridas ilegais percorrem 1,7 km entre as pontes Eusébio Matoso e Cidade Jardim, sentido zona sul de São Paulo. Dali, alguns carros se dispersam. Outros motoristas retornam ao posto de gasolina à espera de uma nova "bandeirada".
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CORRIDA 'RELÂMPAGO'
Rachas de carros e motos são um fenômeno registrado em
diferentes vias paulistanas. Na zona norte, por exemplo, a avenida Dumont
Villares é palco deles, assim como a avenida Roberto Marinho, na zona sul, e a
Jacu Pêssego, na zona leste da cidade.
Nesses casos, contudo, os rachas costumam ser espontâneos ou
"relâmpagos", como são chamados, sem data e horário certos. Costumam
ser agendados por celulares momentos antes da disputa.
Além disso, na marginal Pinheiros, motos e carrões
importados são os protagonistas do "racha ostentação".
"É inacreditável que isso aconteça numa marginal",
critica Sergio Ejzenberg, 61, engenheiro e mestre em transportes pela USP.
"Precisa ser coibido pelo uso de câmeras, que podem
identificar as placas e com isso chegar ao indivíduo. É urgente apertar o cerco
e acabar com a farra."
Na pista dos rachas, radar mesmo só aparece a 7.700 metros
da ponte Eusébio Matoso, perto da do Morumbi.
Com 22,5 km de extensão, a marginal Pinheiros é uma das vias
mais perigosas da cidade. Segundo a CET, ela é fiscalizada por agentes e oito
radares.
A passagem de um carro da PM dispersa a torcida. Do outro lado da marginal, no topo de um prédio, o relógio digital registra 3h47. Ao menos naquela madrugada de sexta, a festa havia chegado ao fim.
PM afirma fazer ações
contra corridas ilegais em São Paulo
A Polícia Militar diz que realiza operações para coibir os
rachas na marginal Pinheiros. Em julho do ano passado, chegou a organizar ação
com 20 policiais no trecho entre as pontes Cidade Universitária e Cidade
Jardim.
Após as operações, houve reforço no policiamento ostensivo
no trecho, afirmou a PM em nota.
A corporação diz que o Comando de Policiamento de Trânsito
atua "diuturnamente" na fiscalização das vias da capital.
Nas marginais, o trabalho é reforçado desde agosto de 2013
com 82 câmeras: 47 na Tietê e 35 na Pinheiros. Os aparelhos já ajudaram em 44
prisões.
Só no último trimestre de 2013, foram abordados 3.646 carros e 2.680 motos nas marginais –650 foram apreendidos. Foram aplicadas 14.664 multas –média de 161 por dia.
Marginal Pinheiros é
a 2ª via com mais mortes em São Paulo
Ao contrário da tendência de queda na violência do trânsito
paulistano, o novo palco de rachas de carrões importados mantém alto o número
de acidentes: a marginal Pinheiros é a segunda via com mais mortes na cidade.
No ano passado, 24 pessoas morreram ali, número que se
mantém praticamente inalterado desde 2010, quando ocorreram 23 mortes.
A via com mais vítimas da capital, contudo, é outra
marginal, a Tietê, com 39 mortes no ano passado. A diferença é que lá os
acidentes estão em queda: 30% desde 2010.
O trânsito da maior cidade do país, porém, ainda mata muito:
1.152 pessoas. Para efeito de comparação, é o triplo, proporcionalmente, de uma
cidade como Nova York.
Em São Paulo, a marginal Pinheiros é a principal artéria de
ligação entre a zona sul e a oeste. Cerca de 40 mil veículos transitam por lá
somente durante o pico da tarde.
À noite, quando a via é palco dos rachas, há redução de
carros e aumento de caminhões, proibidos de dia.
'BARULHO INFERNAL'
Quem participa de rachas pode receber pena de seis meses a
dois anos de prisão, além de multa e suspensão ou proibição de dirigir.
"Fora isso, a conduta não será considerada crime, mas
sim mera infração administrativa, punida com multa", afirma o presidente
da Comissão de Trânsito da OAB-SP, Mauricio Januzzi.
Se houver alguma morte decorrente de racha, o crime pode ser
configurado como homicídio doloso, com pena de seis a 20 anos de prisão.
Para o especialista, somente as multas não desestimulam os
rachas. "Há um sensação de impunidade."
No caso da marginal Pinheiros, a multa de velocidade mais
cara, de R$ 574, é aplicada quando se trafega acima dos 135 km/h.
Vizinha da marginal, a cozinheira Lúcia de Almeida, 57, diz
que as madrugadas de racha são um pesadelo.
"Não consigo dormir com aquele barulho infernal. Eles
bebem, gritam e aceleram a noite toda", afirma. "É tudo
playboy", diz, enfática, pelo fato de eles ficarem no local na madrugada
de um dia útil.
"Além da algazarra, você assiste aos motoristas
entrando pela contramão e tem muita gente consumindo drogas. Já liguei inúmeras
vezes para a polícia", afirma.
Outra moradora da região, a zootecnista Silvania Neves, 55,
concorda que o barulho é intenso. "Dá para perceber que a velocidade
atinge mais de 200 km/h", diz. Houve momentos em que o racha lhe tirou o
sono. "Deveriam estar correndo em Interlagos, com toda a segurança",
afirma.
Para ela, fundamental mesmo é arrumar um espaço para "essa turma colocar toda a adrenalina para fora".