Mudanças climáticas e a saúde global no século XXI - Paulo Saldiva

08/12/2016 08:00 - Valor Econômico

A saúde tem estado presente em todas as campanhas políticas recentes, independente do nível governamental em disputa. Não é por acaso: as deficiências dos sistemas público e privado são notórias. Por isso, surpreende que até hoje a gestão da saúde não tenha saído de sua caixinha para dialogar com outras áreas críticas, como a ambiental, onde estão vários dos fatores que desencadeiam epidemias e cuja solução contribuiria para desonerar um orçamento tão pressionado.

Pegue a poluição do ar como exemplo: até o Banco Mundial já se debruçou sobre o tema, tamanho o rombo que ela causa mundo afora. Somente em 2013 ela gerou prejuízos de US$ 225 bilhões (US$ 4,9 bilhões no Brasil). Atualmente ela é responsável por uma em cada dez mortes no planeta, ocupando assim o quarto lugar entre os maiores fatores de risco fatal à saúde.

No Estado de São Paulo, a poluição mata mais que atropelamento (729 no primeiro semestre deste ano), do que bala de carabina (3.524 pessoas foram mortas por armas de fogo em 2014), do que veneno estriquinina (558 pessoas mortas por envenenamento na região Sudeste em 2014) e do que o olhar da musa de Adoniran Barbosa (a respeito do qual não há estatísticas).

Na cidade de São Paulo residem 25% dos 250 mil óbitos que a poluição atmosférica causará nos próximos 15 anos, segundo estudo feito por pesquisadores da Universidade de São Paulo para o Instituto de Saúde e Sustentabilidade - ou 4.166 por ano. E 90% da concentração de material particulado no ar, que vai levar 1 milhão de pessoas a se hospitalizarem, causando gastos públicos na casa de R$ 1,5 bilhão, é proveniente de veículos motorizados.

Mas não são apenas os prefeitos que devem se preocupar com a poluição. Ela deveria estar no topo da agenda do Ministério da Saúde. Pois a triste realidade é que crises de saúde pública estão rapidamente se tornando a norma em um planeta que está cada vez mais quente justamente por causa da poluição que jogamos no ar.

A Organização Mundial de Saúde afirma que as mudanças climáticas representam "um risco inaceitavelmente elevado e potencialmente catastrófico para saúde humana". A ameaça de ondas de calor extremo para a saúde pública é óbvia, mas há muitos outros impactos climáticos potencialmente letais. Padrões de precipitação irregulares e imprevisíveis aliados a temperaturas mais altas estão comprometendo o rendimento da agricultura, ampliando a desnutrição e as deficiências de nutrição.

Mudanças no clima já estão alterando os padrões de transmissão de doenças infecciosas, resultando em surtos inesperados de malária, dengue, zika, chicungunya e cólera, entre outros. A OMS estima que o aquecimento levará a um adicional de 250 mil mortes por ano até 2030. No entanto, este é um número provavelmente subestimado devido a uma série de relações entre clima e saúde que ainda não foram totalmente mensuradas devido à falta de dados adequados.

Estamos apenas começando a coletar a gama de informações necessárias para entender a extensão do problema. Este ano, a conceituada revista médica Lancet dará início à Lancet Countdown on Climate and Health, iniciativa que visa fornecer um verdadeiro check-up anual do progresso dos países em matéria de alterações climáticas e sua relação com a saúde humana durante a transição para um futuro de baixo carbono.

Trata-se de uma pesquisa colaborativa entre profissionais de saúde e instituições acadêmicas de todo o mundo que irá cobrir cinco áreas temáticas: impactos da mudança climática na saúde, resiliência e adaptação à saúde, co-benefícios de saúde da mitigação, finanças e o envolvimento político com esses temas. Estes grupos temáticos, que representam diferentes aspectos da associação complexa entre saúde e mudança do clima, fornecerão indicadores que permitirão uma visão global do assunto.

Os dados iniciais coletados por esse projeto são gritantes: segundo a Lancet, 400 mil mortes por ano já podem ser ligadas a fome e doenças transmissíveis que carregam as impressões digitais das mudanças climáticas. São números como estes que precisamos para que os responsáveis políticos compreendam como as soluções para o clima também melhoram a saúde da população. E este é um dos grandes méritos deste projeto: mostrar que a resposta às mudanças climáticas poderá ser "a maior oportunidade da saúde global do século XXI", como concluiu a Comissão Lancet de Saúde e Mudança Climática de 2015.

Os profissionais de saúde tendem a diagnosticar um problema e, em seguida, prescrever um tratamento. É por isso que, apesar de todas as estatísticas e previsões assustadoras e impactos que já estamos testemunhando, há motivo para otimismo. Com as mudanças climáticas, a causa é clara: queima de combustíveis fósseis e consequente liberação de gases de efeito estufa para a atmosfera. E o remédio é óbvio: a transição dos combustíveis poluentes para fontes limpas de energia.

Se agirmos rápido para fazer a transição dos combustíveis fósseis, os benefícios para o clima, embora reais, não serão sentidos por décadas -- mas vamos começar a melhorar a saúde e salvar vidas imediatamente.

Paulo Saldiva é médico especialista em poluição atmosférica e diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP.