O rádio e a histeria da 'indústria da multa' - Leão Serva

28/11/2016 08:00 - Folha de SP

Há muita preocupação no mundo com erros disseminados pelas redes sociais. No entanto, quando se trata de questões urbanas, como trânsito, certamente o rádio tem influência muito maior, e frequentemente pior. Muito antes do Waze, o rádio sincroniza milhões de motoristas para que se comportem disciplinadamente como as operárias de um formigueiro, ensina o estudioso Norval Baitello Jr. Por isso mesmo, quando fala de trânsito, dissemina verdades, enganos e mentiras como um flash, mais rápido que a "pós-verdade" de redes sociais na era Trump.

Um dos principais hits da eleição de 2016, o mito da "indústria da multa", foi alavancado pelo jornalismo radiofônico matinal, em seu relacionamento direto com os motoristas durante o congestionamento. Falando com milhões de dependentes do carro, o rádio assumiu a bandeira carrocêntrica e saiu a disparar o discurso de que as multas não são emitidas porque motoristas desrespeitam regras básicas mas porque uma Prefeitura cruel quer arrecadar dinheiro de inocentes.

Passada a crise histérica, o farisaísmo não para de pé: como escrevi neste espaço, a "indústria da multa" é criação de uma pequena minoria que toma todas as multas mas grita que está sendo perseguida: 5% dos motoristas levam 50% das multas; 30% são responsáveis por todas elas. Ou seja, sete em cada dez motoristas respeitam as regras e não são multados.

Alguns programas jornalísticos matinais são particularmente expostos à produção de "pré-verdades" radiofônicas por duas razões estruturais do meio e uma circunstância de alguns programas. É da essência do rádio a atenção parcial dos espectadores, que ouvem a programação enquanto dedicam olhos e o resto do corpo a outras tarefas, como o trabalho ou a direção do carro; em outras palavras, os ouvintes estão necessariamente meio distraídos. Além disso, as pesquisas mostram que também o tempo dedicado ao rádio é curto, qualquer cobertura mais prolongada vai ser ouvida pela metade (por isso, as notícias se repetem a intervalos de 20 ou 30 minutos, sem que ninguém reclame de redundância). Assim, para incutir um tema ou versão na memória do ouvinte, é preciso martelar intensamente.

Curiosamente, embora estejam falando sobre o trânsito diretamente para centenas de milhares de motoristas em meio ao tráfego, os programas de rádio não costumam ter comentaristas de mobilidade –exceção é a rádio Trânsito, que só fala do assunto. As demais dão notícias, índices de congestionamento, relatam acidentes etc., mas os eventuais comentários sobre mobilidade são sempre feitos por especialistas em outras áreas, como política e economia, que, de Trânsito, entendem o mesmo que de Física quântica ou Biologia molecular: nada.

O paroxismo desse modelo é a Jovem Pan, que no ano eleitoral submeteu a discussão sobre regras de tráfego na cidade (como ademais todas as outras questões do mundo) ao debate eleitoral tupiniquim, ou, mais particularmente, ao combate ao petismo. Assim, se a administração petista reduziu o limite de velocidade nas Marginais, foi por interesse do "projeto criminoso de poder". Se a arrecadação de multas subiu, "é o projeto criminoso de poder". Não pense o leitor que estou ridicularizando: é assim mesmo que a coisa funciona. Se o locutor lê uma notícia sobre o DNA das baleias, o comentário necessariamente vai passar pelo filtro antipetista, nem que seja para acusar os golfinhos.

O resultado é um festival de absurdos em tom indignado. Na Jovem Pan, um especialista em Direito recentemente questionou a competência da Prefeitura para determinar qual a velocidade ideal para as ruas da cidade, uma vez que "o prefeito é um cidadão como qualquer outro". A ideia é que as regras de trânsito devem ser tema de uma espécie de livre arbítrio: o que é bom para um pode não ser para outro, cada um escolhe o que achar melhor. Jean-Jacques Rousseau, o autor de "O Contrato Social", se virou no túmulo: mesmo um defensor do mais mínimo minimorum entre os Estados sabe que essa é das suas únicas competências indiscutíveis, moderar os conflitos entre os cidadãos na sua vida em movimento.

Na última semana, um especialista em política citou a arrecadação de multas de São Paulo em 2016 (R$ 1,8 bilhão) como prova de que existe a indústria da multa. "São Paulo é recordista mundial", mandou ver! Pois não é, como não poderia ser com tantas infrações sem punição (4 mil para cada multa). Graças ao Google, custou-me aproximadamente dois minutos para constatar que Nova York, no mesmo período, arrecadou 1,9 bilhão de dólares (R$ 6,5 bilhões); e que Londres arrecadou R$ 2 bilhões só com dois tipos de multas: estacionamento irregular (R$ 1,5 bi) e multas de velocidade constatadas por radar (R$ 500 mi).

Olhando o noticiário estrangeiro, o leitor pode obter outro antídoto contra a histeria: a acusação de que existe uma "indústria da multa" está em todo canto, em cidades governadas pela esquerda (como Nova York) e pela direita (como Londres, até meados deste ano). A tal ponto que o Estado de Missouri (EUA) discute uma lei para limitar o percentual da arrecadação municipal que pode vir de multas de trânsito. A origem da indignação são algumas cidades que tiram dos motoristas infratores grande parte de suas receitas. A cidade de Foristell teve 90% de sua arrecadação em multas; várias tiram cerca de 30%. O legislativo estadual quer limitar o percentual ao máximo de 10%.

Trata-se de uma boa discussão: como já expus aqui, sugiro que São Paulo crie uma indústria da multa (que poderia chamar MultaSP) para punir todas as infrações de trânsito e, com os bilhões que serão arrecadados, dar desconto de impostos para os cidadãos normais, a maioria silenciosa que não desrespeita o código de trânsito.