"Você acha que, se eu pudesse não ter aumentado, eu teria?”
A frase do prefeito Fernando Haddad, proferida na sexta (14), ecoava as falas
de dias anteriores, diante da temperatura crescente dos protestos pela
revogação do reajuste da tarifa de ônibus, de 3 para 3,20 reais, em vigor desde
2 de junho.
Seu principal argumento era que a variação havia ficado
abaixo da inflação no período. Mais tarde, ele declarou que voltar atrás
poderia ser uma medida "populista”. Na última quarta, porém, apareceu em
pronunciamento ao lado do governador Geraldo Alckmin (que, sobre igual reajuste
nas passagens de trem e metrô, havia dito: "Não vou recuar”). Juntos, anunciaram
que, a partir de segunda (24), a passagem dos coletivos volta a custar 3 reais
e a da integração cai de 5 para 4,65 reais.
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Tentativa de invasão
da prefeitura durante manifestações: desafio aos governantes (Foto: Tiago
Queiroz/Estadão Conteúdo )
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Vândalos incendeiam
veículo no centro (Foto: Rocha Lobo/FuturaPress)
A decisão ocorreu após uma mobilização que não se via na
cidade desde 1992, nas marchas contra o presidente Fernando Collor. Foi um
crescendo. A série de protestos começou na quinta (6), com cerca de 2 000
pessoas. Engrossada com temas como a precariedade dos hospitais e os gastos da
Copa do Mundo, chegou a reunir 65 000 pessoas na segunda (17), nos cálculos do
instituto Datafolha. Aos jovens se juntaram mães e avós, em percursos por cartões-postais
da metrópole como a Avenida Paulista e a Ponte Estaiada, chegando ao Palácio
dos Bandeirantes. O último, sede do governo estadual, sofreu uma tentativa de
invasão por parte de arruaceiros oportunistas, que conseguiram derrubar um
portão, até que fossem repelidos pela polícia.
No dia seguinte, quando 50 000 estavam nas ruas, baderneiros
incendiaram um furgão de reportagem da Rede Record, saquearam lojas e
promoveram a depredação do Edifício Matarazzo, sede da prefeitura. Pierre Ramon
de Oliveira, de 20 anos, estudante de arquitetura e um dos valentões da
quebradeira na prefeitura, onde se escondia atrás de uma máscara, pediu
desculpas em público após ser identificado. Na quinta, 100 000 pessoas, segundo
a Polícia Militar, voltaram a tomar a Avenida Paulista, dessa vez para festejar
a decisão do governo. Responsável por acender o estopim das manifestações, o
Movimento Passe Livre (MPL) avisa que a vitória no recuo das tarifas não
encerra sua campanha. Composto de cerca de quarenta integrantes, o MPL diz que
continuará desfilando suas bandeiras por aí até que a passagem chegue ao
inimaginável custo zero. A estudante Mayara Vivian, uma das líderes do grupo,
transformada numa espécie de celebridade instantânea dos protestos, declarou
que, caso um dia a gratuidade seja total, também não vai sossegar. "Nosso
próximo objetivo é lutar pela reforma agrária e contra o latifúndio urbano.”
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Manifestantes de todas
as idades: propósitos diferentes (Foto: Rocha Lobo/FuturaPress)
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Senhora exibe placa durante manifestação: mistura de gerações (Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo )
EM MARCHA LENTA
A redução no preço da tarifa dos ônibus da capital de 3,20
reais para 3 reais representa uma economia para os usuários. Quem faz um
trajeto de ida e volta em 25 dias no mês, com integração por bilhete único,
passará a gastar novamente 232,50 reais, em vez dos 250 reais da conta
pós-aumento. O alívio no bolso, no entanto, está longe de representar uma
solução mágica na rotina de milhões de paulistanos: é preciso desatar os vários
nós que se acumularam no transporte público da capital nas últimas décadas.
Veículos superlotados e escassos, atrasos, frota envelhecida, funcionários
insatisfeitos, malha viária ineficiente e carência de corredores exclusivos são
alguns dos principais problemas.
Como resultado disso, não é de espantar que 59% dos usuários reprovem o serviço, conforme pesquisa mais recente sobre o assunto realizada pela Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP). Detalhe: esse estudo é de 2011. O fato de não haver um acompanhamento frequente do índice de satisfação dos usuários, uma ferramenta básica para saber se o dinheiro público está sendo bem gasto e resolve o problema da população, mostra quanto o negócio ainda caminha em marcha lenta.
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O ponto inicial da linha Pq. Residencial Cocaia–Praça da Sé
e o interior do ônibus da Rio Pequeno–Terminal Princesa Isabel: filas e lotação
(Foto: Lucas Lima e Adriano Conter)
Até 1993, a responsável pelo serviço era a Companhia
Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), primeiro privatizada e depois
substituída pela municipal SPTrans, criada pelo então prefeito Paulo Maluf. A
falta de investimentos afugentou passageiros, que migraram para peruas
clandestinas e automóveis particulares: o número mensal de viagens chegou a cair
de 168 milhões para 92 milhões. Em 2003, com uma licitação de 12 bilhões de
reais para um total de dez anos, a prefeitura cedeu a operação do sistema a
cooperativas viárias.
Hoje, dezesseis grupos ou consórcios têm o direito de
explorar as 1 350 linhas da cidade, mas cerca de metade se concentra nas mãos
de apenas dois empresários, José Ruas Vaz e Belarmino Ascenção Marta. O
presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de
Passageiros de São Paulo, aliás, é Paulo Ruas, filho do primeiro. "Meu marido
está no ramo há quarenta anos”, diz Adriana Saraiva, mulher de Joaquim Saraiva,
um dos vários sócios do barão da catraca. "E o Ruas nem sabe dessas
manifestações pela redução no valor da passagem, está de férias em Portugal.” A
tranquilidade, no entanto, pode durar pouco. No próximo semestre será realizada
uma licitação para um novo período de contrato. Ao dar o braço a torcer e
baixar a tarifa, o município terá de aumentar consideravelmente o montante
repassado a essas empresas: o subsídio acumulado até 2016 saltará de 6 bilhões
para 8,6 bilhões de reais.
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Chego mais cedo para
conseguir sentar e ler no caminho" Karina Nascimento, assistente jurídica:
"Chego mais cedo para conseguir sentar e ler no caminho" (Foto: Lucas
Lima )
A redução dos 20 centavos na passagem, antes avaliada como
"impossível” pelo prefeito Fernando Haddad, foi anunciada sem grandes
explicações sobre a realidade das contas do município daqui para a frente. O
Orçamento deste ano previu um subsídio de 1,25 bilhão. Com a tarifa menor, 200
milhões de reais terão de ser acrescentados aos gastos. Até quinta (20), a
prefeitura não havia anunciado de onde sairia o dinheiro. Para agravar a
situação, o Movimento Passe Livre tem como pauta número 1 a tarifa zero. "Esse
pedido é um retrocesso”, afirma o consultor tributário Clóvis Panzarini,
ex-coordenador da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Para ele, uma
das únicas modalidades possíveis para que se obtenha a tarifa zero é estatizar
o serviço e se submeter a conchavos políticos para escolher a diretoria da
autarquia.
Além disso, a prefeitura teria de arcar com todas as despesas, o que significa comprometer 6 bilhões de reais por ano da arrecadação municipal. Para fechar a conta, teria de subir taxas como a do IPTU. "Se o governo aumentasse outros impostos, toda a população pagaria pelo transporte de ônibus mesmo sem utilizar o serviço”, completa o tributarista.
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Os ônibus velhos
quebram e os passageiros ficam na mão" Osmar Landin, motorista: "Os
ônibus velhos quebram e os passageiros ficam na mão" (Foto: Mario
Rodrigues)
Independentemente do formato da gestão ou do progresso na quantidade de dinheiro investido, as mudanças dos últimos anos não se refletiram em conforto para o passageiro. Em 2005, 2,5 bilhões de pessoas já se espremiam nos 14 030 ônibus que compunham a frota da época. Sete anos depois, mais 400 milhões de passageiros passaram a utilizar o sistema, chegando a 2,9 bilhões de usuários. O número de veículos operacionais, porém, diminuiu para 13 970, sessenta a menos. Ou seja: enquanto o total de usuários aumentou 16%, a frota encolheu 0,4%. Isso ajuda a explicar o sufoco bem conhecido por qualquer pessoa que use o sistema, principalmente nos bairros periféricos da cidade. O aperto é de sete passageiros por metro quadrado. Em Londres, a média é de quatro. Santiago, no Chile, registra uma taxa de cinco.
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Perco seis horas por
dia no ônibus para ir ao trabalho e voltar" Luiz Felipe de Barros,
eletricista: "Perco seis horas por dia no ônibus para ir ao trabalho e voltar"
(Foto: Adriano Conter)
As duas linhas com maior número de reclamações estão
localizadas na Zona Leste: Terminal São Miguel-Terminal São Mateus, com 246
entre janeiro e maio deste ano, e Cidade Tiradentes-Terminal Princesa Isabel,
com 211 no mesmo período. Nenhuma linha exclusiva da Zona Oeste — região que em
geral apresenta ônibus mais vazios e novos e boa quantidade de faixas
exclusivas à direita da via, o que torna a viagem mais rápida — aparece na
lista das cinco que mais receberam denúncias de usuários.
Além de encolher, a frota paulistana envelheceu. Em 2008,
tinha quatro anos e dois meses de uso, em média. Hoje, a maior parte dela soma
cinco anos e seis meses. Em alguns casos, a situação é ainda mais drástica.
"Tem muito ônibus fabricado nos anos 90”, conta o motorista Osmar Landin, do
consórcio Leste 4, que atende bairros da Zona Leste como Cidade Tiradentes e
São Mateus. "Por fora, a carcaça parece boa por causa da pintura, mas a parte
mecânica está velha.” Os carros antigos e em uso contínuo multiplicam os
problemas. "Pelo menos trinta automóveis ficam parados na garagem por questões
técnicas”, relata o fiscal Jean Cleber Ribeiro, do mesmo consórcio. "Há dias em
que uma linha começa com dezesseis veículos pela manhã, mas no fim da tarde tem
apenas onze.”
O resultado são filas nos pontos de espera e ainda mais
aperto. "Se houvesse pelo menos uma manutenção cuidadosa, quebraríamos menos
vezes durante o trabalho”, conta o motorista José Leite, da linha Rio
Pequeno-Terminal Princesa Isabel. Além de se preocupar com a saúde de seu
veículo, ele ainda precisa encontrar uma fresta entre os passageiros para
enxergar o retrovisor. "De tão cheio, fica impossível ver algo lá fora”,
explica.
As condições de trabalho da categoria são tão precárias
quanto o próprio sistema. "Não vejo meu salário há dois meses”, lamenta o
cobrador José Antônio da Silva, da empresa Oak Tree Transportes Urbanos, que
atende a Zona Oeste. Somadas as horas extras, Silva ganha 1 200 reais. Por
causa dos atrasos no pagamento, os funcionários da Oak Tree entraram em greve
no mês passado e paralisaram nove linhas. Cerca de 46 000 passageiros acabaram
afetados.
[vejasp-08]
(Foto: Veja São Paulo )
Com 8,2 milhões de trajetos por dia, os deslocamentos de
ônibus representam 81% do total de viagens realizadas no transporte público da
capital. "Apesar de o trabalho pesado, ele é mais criticado pela população que
o metrô e a CPTM”, compara Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP. Há vários
motivos para essa situação. Mesmo lotado, o metrô raramente atrasa e mantém sua
velocidade média de 31 quilômetros por hora, o dobro da registrada pelos ônibus
em horário de pico.
A falta de informação também prejudica a avaliação. No ponto
não são indicadas as linhas que passam por ali e suas possíveis baldeações, e
dentro do ônibus nenhum dispositivo informa a próxima parada. "Tudo isso dá uma
sensação de falta de cuidado com o passageiro, o que não ocorre com o metrô”,
completa Néspoli. Organizar o sistema e cobrar produtividade das empresas são
algumas das saídas. "Não adianta aumentar o subsídio e não fiscalizar os
resultados, é muito dinheiro envolvido”, diz o consultor de engenharia de
tráfego Horácio Figueira.
Outro ponto fundamental para a melhora é o investimento em
corredores de ônibus. "Eles precisam de prioridade total no trânsito, os carros
que se virem”, continua Figueira. A expectativa é que coletivos circulando em
boa velocidade atraiam mais usuários de automóveis para o transporte público.
"Só assim a questão do trânsito pode ser solucionada.”
[vejasp-09]
(Foto: Veja São Paulo )
Até 2016, a prefeitura promete criar 150 quilômetros de
corredores exclusivos (hoje são 244 quilômetros) nas zonas Sul e Leste, em
locais como as avenidas 23 de Maio, Bandeirantes e Celso Garcia. Destes, 70
quilômetros estão em licitação desde 2012 e outros 80 entrarão no processo
neste ano. Nos próximos doze anos, o plano envolve 460 quilômetros. O modelo
para o sistema é similar ao de Curitiba, geralmente com uma faixa segregada
junto ao canteiro central da via, veículos de grande porte e pontos que
funcionam como pequenos terminais fechados: a cobrança da passagem é realizada
antes do embarque. O governo municipal também anunciou recentemente um aporte
de 7 milhões de reais para ampliar a quantidade de faixas exclusivas em 150
quilômetros até o fim deste ano — 59 quilômetros já foram criados —, que se
juntarão aos 210 quilômetros atuais. No começo do segundo semestre serão
licitados catorze terminais.
(Foto: Veja São Paulo)
Outro plano para acelerar os ônibus envolve uma rede de
sinalização mais inteligente. Dos 6 156 cruzamentos com semáforo, há a promessa
de que 4 800 serão modernizados de forma a controlar automaticamente o fluxo do
tráfego. Na prática, o sistema manterá sinais abertos por mais tempo ao
verificar que determinado corredor está com lentidão acima da desejável. Isso
deve começar a funcionar no segundo semestre, com investimento de 550 milhões
de reais.
Neste valor, está incluída a criação da Central Integrada de
Mobilidade Urbana, que vai compartilhar dados da SPTrans e da CET. "O foco é
priorizar o transporte público diante do particular”, declara o secretário
municipal de Transportes, Jilmar Tatto. "Com esse pacote de medidas, a
velocidade média dos coletivos subirá de 15 para 30 quilômetros por hora nos
próximos quatro anos.” Mesmo se todos esses planos forem realmente cumpridos,
eles devem apenas amenizar uma parte do sufoco dos passageiros. Nas últimas
décadas, a cidade esteve nas mãos de diferentes correntes e partidos políticos.
Depois de chegarem à prefeitura prometendo moralizar o transporte, acabar com o
cartel dos chamados "barões das catracas” e melhorar a gestão do sistema, todos
eles falharam na missão.
A conta do descaso apareceu em forma de protesto de milhares de pessoas nas ruas, que cobravam um serviço mais barato e eficiente. O ideal é que o gesto de recuo no aumento das tarifas sinalize também uma mudança do poder público na maneira de encarar esse problema.
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Os principais problemas do transporte público da cidade
Frota antiga
A idade média da maioria dos veículos é de cinco anos e seis meses, mas há alguns em circulação fabricados nos anos 90
Funcionários insatisfeitos
Atrasos nos salários e greves fazem parte da rotina de cobradores e motoristas
Poucas empresas
Dezesseis grupos ou consórcios, muitos deles nas mãos de poucos sócios, estão no controle do sistema
Falta de um canal de avaliação
A SPTrans estuda realizar uma pesquisa de satisfação com os usuários, mas ainda não há uma previsão de data
Lotação
Nos 13 970 veículos da capital, o índice de ocupação é de sete passageiros por metro quadrado
Carência de corredores
Os 244 quilômetros que existem na malha viária não dão conta do bom fluxo dos carros