26/07/2015 08:12 - O Globo
Da janela do veículo leve sobre trilhos (VLT), um passeio pela história do Rio. Além de cumprirem sua função de transporte público, os bondes modernos levarão os passageiros às ruas pelas quais João do Rio se encantou, à Pequena África das heranças negras, a cenários retratados por Debret e a trajetos presentes nas crônicas de Machado de Assis. Uma viagem pelo tempo que começará em abril de 2016, da Rodoviária Novo Rio ao Aeroporto Santos Dumont, passando pela Avenida Rio Branco. Numa segunda fase, a partir de agosto do ano que vem, cruzará também da Central do Brasil à Praça Quinze. Já o trecho da Avenida Marechal Floriano, admite a prefeitura, não ficará pronto a tempo dos Jogos Olímpicos: a previsão é que só entre em operação em 2017.
As obras que abrirão caminho para o VLT já são executadas na
maior parte dos 28 quilômetros de percursos, com 35% dos trilhos instalados. Os
trechos mais adiantados estão ao longo da Via Binário e do futuro boulevard da
Avenida Rodrigues Alves, onde, ao sair das imediações da rodoviária, o
passageiro do bonde encontrará as primeiras construções históricas. Relíquias
como a Igreja de Nossa Senhora da Saúde, uma das mais antigas do Rio, fundada
por devotos de Nossa Senhora do Terço, por volta de 1750. Um pouco adiante,
aparecerão na paisagem prédios como o da Fábrica de Espetáculos do Teatro
Municipal (no antigo galpão da Paranapanema Metais), os velhos armazéns do
Porto e construções tombadas como a da antiga Imprensa Nacional (hoje sede da
Polícia Federal).
ACHADOS ARQUEOLÓGICOS NO CAMINHO
Já na chegada à Praça Mauá, trafegando bem perto da Pedra do
Sal e do Morro da Conceição, passado, presente e futuro vão se encontrar. À
beira da Baía de Guanabara, surgirá o futurista Museu do Amanhã, com projeto do
espanhol Santiago Calatrava. Do outro lado dos trilhos, o passageiro verá o
Museu de Arte do Rio (MAR), instalado em dois prédios heterogêneos e
interligados — o eclético palacete Dom João VI e seu vizinho, de estilo
modernista. Aparecerão pela frente também um pedacinho do Mosteiro de São Bento
e gigantes como o Edifício A Noite, dos anos 1930, o primeiro arranha-céu da
cidade, com seus 22 andares com traços art déco.
De mar a mar, do Porto ao Aterro, a passagem pela Avenida
Rio Branco revelará remanescentes da antiga Avenida Central, nome anterior da
via, um dos principais marcos da transformação promovida pelo prefeito Pereira
Passos na cidade no início do século passado. Dessa época, estarão lá o
imponente prédio da Caixa de Amortização do Banco Central, inaugurado em 1906,
com suas colunas neoclássicas em mármore de Carrara, e também a sede do Iphan,
com fachada de granito e portas de madeira de 4,3 metros de altura. A
Candelária estará à vista, assim como, nas imediações da Cinelândia, clássicos
do Rio como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de
Belas Artes e o Palácio Pedro Ernesto, além do Odeon. Um roteiro de tantas
histórias que seria normal que as obras do VLT revelassem achados
arqueológicos.
— Na Rio Branco, por exemplo, encontramos estruturas de
calçamento pé de moleque. E, na Rua da Constituição, trilhos dos antigos bondes
na mesma calha por onde passará o VLT — diz Jorge Arraes, secretário especial
de Concessões e Parcerias Público-Privadas do Rio.
No itinerário que cruza a Rua da Constituição, aliás, mais
resquícios do Rio do passado. Por esse caminho, o VLT virá da região da
Central, atravessará a Avenida Presidente Vargas próximo ao Palácio Duque de
Caxias e ao Campo de Santana, contornará as bordas da Saara e chegará à Praça
Quinze. Terá em sua rota, por exemplo, a Praça Tiradentes, que João do Rio
descreveu como um lugar de sentimentos religiosos que oscilavam "entre a
depravação e a roleta”. É assim até hoje, com prostitutas nas proximidades do
antigo Hotel Paris. Um largo onde, dependendo do ângulo, é possível se imaginar
séculos atrás, diante de construções como o Solar do Visconde do Rio Seco, que
já existia antes de dom João chegar ao Brasil, em 1808.
Mais adiante, as boas-vindas à Rua Sete de Setembro serão
diante do imóvel que, no início do século XX, foi endereço da antiga Camisaria
e Perfumaria Gaspar, com sua fachada datada de 1913. Dali em diante, o conjunto
arquitetônico continuará remetendo ao Rio Antigo, como em frente à Casa Cavé,
onde em 1929 foi inaugurada a Chapelaria A Radiante, com piso de ladrilhos
hidráulicos portugueses e cristais e espelhos belgas.
Depois de atravessar a Rio Branco, o VLT chegará à Igreja
Nossa Senhora do Carmo, transformada em Capela Real por dom João em 1808 e
palco de celebrações como a coroação dos imperadores dom Pedro I e dom Pedro
II, além do batizado da princesa Isabel. E na Praça Quinze, pintada por Debret,
será possível avistar o Paço Imperial, erguido em 1743, e o chafariz de Mestre
Valentim, inaugurado em 1789 a pedido do vice-rei Luís de Vasconcelos.
Mas talvez nenhum outro trajeto revele um Rio que ficou tanto tempo esquecido quanto o que cruzará o Santo Cristo e a Gamboa, por trás da Cidade do Samba, até chegar à Saúde, pela Pequena África carioca. Por ali se revelarão, por exemplo, o Centro Cultural José Bonifácio e o casario do início do século passado da Rua Santo Cristo. Outra atração será o Cemitério dos Pretos Novos, sítio arqueológico descoberto em 1996, onde foram identificados milhares de fragmentos de restos mortais de africanos que não resistiam à viagem para o Brasil. Ali, estima-se que tenham sido enterrados de 20 mil a 30 mil pessoas na primeira metade do século XIX.
Escavações revelam um
tempo em que cidade era cortada por trilhos
Antigas linhas são desenterradas no Centro durante obras para o VLT
Nas escavações do VLT, também se encontrou o passado do Rio.
Os trilhos dos antigos bondes que cruzavam a cidade estão ressurgindo com as
obras para implantação do novo sistema. À medida que é retirado o asfalto, eles
reaparecem em ruas como a da Constituição e as do entorno da Praça Tiradentes,
revelando um tempo em que os velhos veículos verdes- escuros eram o principal
meio de transporte público da cidade — da segunda metade do século XIX a meados
do século XX.
Foi justo nessa região, aliás, que surgiu uma das primeiras
linhas de bonde do Rio, ligando a Praça Tiradentes à Usina, ressalta o pesquisador
Paulo Clarindo, coordenador do grupo Amigos do Patrimônio Cultural. Na época, o
inglês Thomas Cochrane conseguiu a concessão do governo imperial para, em 1859,
inaugurar as viagens em veículos então puxados por burros e apelidados de
"maxambombas”. Era o início de uma era na cidade, que chegou ao começo do
século XX com uma rede que cortava quase todas as principais ruas do Centro.
— Os trilhos encontrados agora não deixam de ser uma
arqueologia dessa época. Por isso, defendemos que todo esse material seja
documentado, com acompanhamento de arqueólogos — diz Clarindo.
Foi um meio de transporte, lembra o historiador Nireu
Cavalcanti, que resistiu até a década de 1960, quando foi paulatinamente
substituído pelos ônibus. Antes disso, porém, era quase impossível imaginar o
Rio sem ele.
— Ao se fundar um bairro na cidade, a primeira coisa que se
fazia era criar uma linha de bonde, como aconteceu com Vila Isabel e
Copacabana. Já o Centro era totalmente cortado pelas linhas. Em praticamente
todas as principais ruas da região, vão se encontrar vestígios dos trilhos —
diz ele.
MUDANÇA NA MOBILIDADE
Agora, com o VLT, a opção do transporte sobre trilhos volta
ao Centro. Para o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Pedro
da Luz Moreira, isso representa uma mudança na mobilidade da região, abrindo a
possibilidade de integração com outros meios, como as barcas, na Praça Quinze,
o metrô, na Cinelândia, e os trens, na Central do Brasil. O bonde moderno
permitirá também uma conexão mais eficiente entre o Santos Dumont e a
rodoviária.
— Além disso, o VLT tem uma interface com pedestres e moradores muito mais amigável do que o ônibus. É mais silencioso, tem maior capacidade de transporte e, portanto, oferece mais qualidade. O que precisamos estar atentos agora é para que esses meios de transporte não sejam concorrentes, mas complementares — diz.
Como será o VLT
BONDE MODERNO: As composições do Veículo Leve sobre
Trilhos (VLT) comportarão, em média, 420 passageiros. Elas terão 3,77 metros de
altura, 44 de comprimento e 2,65 de largura, com um padrão de sete módulos
integrados (correspondentes a três vagões). O sistema terá capacidade para
transportar cerca de 300 mil passageiros por dia. A proposta é que, com os
VLTs, seja reduzido o número de linhas de ônibus que passam pelo Centro.
FROTA: Ao todo, o sistema terá 32 trens. O primeiro
deles chegou da França no início deste mês e, na semana passada, permanecia no
canteiro de obras próximo à Rodoviária Novo Rio. Outros quatro também virão da
Europa, enquanto os demais serão montados na fábrica da Alstom em Taubaté, São
Paulo. O segundo trem deverá chegar daqui a duas semanas. A previsão é que a
frota esteja completa no fim do ano. Os trens serão equipados com
ar-condicionado e terão piso rebaixado, facilitando a acessibilidade.
ESTAÇÕES: Quando todo o sistema estiver pronto, com
seus 28 quilômetros, serão 32 paradas. Haverá quatro estações principais
(Rodoviária Novo Rio, Santos Dumont, Praça Quinze e Central), e outras menores.
Os protótipos já foram aprovados, e as primeiras estações deverão começar a ser
instaladas ao longo deste segundo semestre, provavelmente a partir de setembro.
FUNCIONAMENTO: O VLT vai operar 24 horas por dia,
sete dias por semana. Os intervalos deverão variar entre três e 15 minutos,
dependendo da linha e do horário. De madrugada, os veículos circularão a cada
meia hora. O sistema de pagamento prevê a utilização do Bilhete Único e a
validação voluntária, sem roletas.
ENERGIA: Os veículos serão movidos por um sistema
chamado de APS (sigla para ‘‘alimentação pelo solo’’), que consiste em um
condutor que, entre os trilhos, fornece energia para o VLT. Com isso, não será
necessária a instalação de redes áreas de eletricidade.
VELOCIDADE: A velocidade média dos trens será de 17
km/h.
CUSTO: O custo da implantação do sistema está previsto em R$ 1,157 bilhão. Desse total, R$ 532 milhões são recursos federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da Mobilidade, e R$ 625 milhões foram viabilizados por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP).
Rio Branco, uma
avenida novamente em transformação
Via ganhará canteiro central, pelo qual será feito embarque no VLT
Inaugurada em 1905, a então Avenida Central nasceu com
pequenos abrigos para transeuntes e prédios em estilo eclético. Passados mais
de cem anos, a Avenida Rio Branco mudou completamente, e apenas dez edifícios
desses primeiros tempos continuam de pé. Agora ela passa por novas mudanças. Em
2016, ela voltará, por exemplo, a ter canteiro central, como no passado. E, nas
faixas por onde os bondes modernos vão passar, sairá o asfalto e entrará outro
tipo de calçamento: os paralelepípedos, com passagens para pedestres em granito
e trechos gramados, segundo Jorge Arraes, secretário especial de Concessões e
Parcerias Público-Privadas do município.
— A ideia é melhorar a ambiência da avenida. O canteiro
central, por exemplo, será arborizado, com um paisagismo — diz Arraes,
lembrando que duas faixas da via continuarão abertas ao tráfego de outros
veículos.
É por esse canteiro que embarcarão passageiros que seguirem
de VLT em direção ao Santos Dumont. Quem subir no sentido Praça Mauá vai
pegá-lo nas paradas próximas à calçada.
TESTES COMEÇAM ESTE ANO
O novo cenário deve começar a ser visto a partir do fim
deste ano. Também neste segundo semestre de 2015 devem começar os testes
operacionais, sem passageiros, na linha do VLT que ligará a Rodoviária Novo Rio
à região da Rio Branco. O início das operações está previsto para abril de
2016. Por enquanto, as obras na via, que tem três faixas interditadas desde o
fim de 2014, estão dentro do cronograma e, segundo Arraes, são feitas,
principalmente, à noite. O prazo vem sendo cumprido, mas há desafios.
— Além do cuidado redobrado devido a achados arqueológicos,
estamos tendo que deslocar uma tubulação de gás que abastece a Zona Sul —
ressalta o secretário.
De acordo com Arraes, a região poderá ser ponto de partida para a expansão de VLTs pela cidade. No atual contrato, não há nada previsto, mas ele afirma que, tecnicamente, é viável levar linhas, por exemplo, para a Zona Sul, pelo Aterro.
Bom Dia Rio – TV Globo
VLT do Rio terá percurso semelhante a bonde do
século XIX, diz arqueóloga
Uma das apostas para a mobilidade urbana, apontado como um
dos grandes legados das Olimpíadas do Rio de 2016, é o Veículo Leve sobre
Trilhos (VLT). O transporte, muito semelhante aos bondes implementados no
século XIX, carrega outra grande semelhança: o trajeto. A descoberta aconteceu
durante as obras do VLT, em meio ao trabalho de arqueólogos.
Enquanto os trilhos do VLT eram construídos, a estrutura dos
bondes de dois séculos atrás veio à tona. Como mostrou a Globonews neste sábado (26), os trechos serão inaugurados
no ano que vem e terão parte do percurso que é rigorosamente o mesmo de 160
anos atrás. O achado dos arqueólogos prova isto.
"Provavelmente é um trilho da época que os bondes eram
puxados por animais, por tração animal. Estamos nos referindo ao século XIX,
mais ou menos de 1852. São pedras grandes, provavelmente para o animal pisar e
algumas dessas pedras tem o que restou de madeira", afirma a arqueóloga
Madu Gaspar.
O VLT vai ligar a Região Portuária ao Centro. Secretário
especial de concessões e parcerias público-privadas, Jorge Arraes reconhece que
parte do percurso será semelhante, mas ressalta a qualidade do novo transporte.
"O VLT é como um bonde moderno, vários trechos do
percurso dele coincidem com os antigos bondes do Rio. Nesta etapa agora são 28
quilômetros de trilho", afirma.
Arraes diz ainda que espera que milhares de pessoas sejam
transportadas diariamente no VLT num futuro próximo. "é integração dos
modais de transporte e o pressuposto é que vai haver uma diminuição radical da
quantidade de ônibus pela Zona Portuária, foi dimensionado para 300 mil
passageiros por dia. É claro que isso é uma demanda que vai ser conseguida
gradativamente ao longo do período de implantação, não é no primeiro dia",
afirma.
Os bondes foram no extintos sob o pretexto de que viraram um
transporte com cara de passado. O único que sobrou foi o de Santa Teresa,
desativado depois que um acidente matou seis pessoas em agosto de 2011. Em
obras, ainda não tem data para ser reativado. Crítico ao projeto, embora
reconheça que o projeto tem pontos positivos, o especialista Ronaldo Balassiano
é a favor da expansão."O futuro da cidade do Rio de Janeiro não acaba em
2016. As Olimpíadas são um marco importante, elas ajudaram muito o sistema de
transporte, mas eu acho que a gente tem que pensar no futuro. Uma das
possibilidades seria a expansão desse VLT que hoje está chegando na rodoviária
ser estendido até o Aeroporto do Galeão", sugere.