Esqueça os atuais padrões seguidos pelo mercado em projetos
residenciais. Se as regras definidas pelo novo Plano Diretor saírem do papel,
São Paulo vai ganhar prédios multiúso, com lojas, estacionamentos e moradia em
uma mesma torre. O "conceito 3 em 1” valerá para o entorno de estações de metrô
e corredores de ônibus, onde a administração quer intensificar o adensamento
populacional.
Com as novas diretrizes, o empreendedor terá incentivos
financeiros para "fatiar” o projeto em três e alterar, assim, a divisão
clássica prevista em quase todos os condomínios lançados nas últimas três
décadas. Com a instalação do comércio no térreo, por exemplo, as opções de
lazer, como playgrounds e salões de festas, terão de ser distribuídas pelos
demais pavimentos, valorizando o primeiro andar residencial, que será mais
alto, e dando novo uso às coberturas.
O topo dos prédios poderá ser ocupado por academias e
piscinas, como já acontece em alguns hotéis. O aproveitamento do subsolo se
dará de forma completamente independente. Com o fim da obrigatoriedade de o
construtor oferecer ao menos uma garagem por imóvel, as vagas poderão ser
comercializadas sob outro parâmetro, a fim de reduzir os chamados "espaços
ocos” da cidade.
Relator do projeto de lei que criou o Plano Diretor, o
vereador Nabil Bonduki (PT) explica que o termo é usado para caracterizar áreas
construídas mal aproveitadas. "Hoje, temos garagens residenciais vazias durante
o dia e cheias à noite. O inverso acontece nas garagens comerciais. Esse é o
'espaço oco' da cidade, porque é usado só em uma parte do dia. Mas uma garagem
rotativa pode ser usada 24 horas”, explica.
Para ser viabilizada, no entanto, Bonduki afirma que caberá
ao prefeito Fernando Haddad (PT) fazer a regulamentação dos edifícios-garagem.
Ela é que vai dizer, por exemplo, se os moradores terão prioridade no acesso às
vagas e o limite previsto para cada prédio.
Antes disso, Haddad precisa sancionar a lei aprovada no mês
passado por 44 dos 55 vereadores. A expectativa é de que isso ocorra nos
próximos dias. Com a lei em vigor, a Prefeitura espera que o mercado
imobiliário proponha projetos de caráter misto, a fim de reduzir os
deslocamentos na cidade e elevar a qualidade de vida da população.
Perfil. Em
Pinheiros, na zona oeste, o quarteirão da Rua Fradique Coutinho, entre as Ruas
Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde, exemplifica o conceito multiúso defendido
pelo governo. Tomada de prédios residenciais em ambos os lados, a quadra tem
todo tipo de comércio e serviços no térreo, e com direito a estacionamento
rotativo.
Mercados, restaurantes, lojas de roupas e sapatos, livraria
e até banco podem ser acessados pelos moradores a pé.
A maioria das torres foi construída nas décadas de 1960 e
1970, o que mostra que o conceito defendido pelo Plano Diretor aprovado há 13
dias não é novo. Quando o Edifício Kennedy, por exemplo, foi construído, em
1968, outras torres residenciais erguidas na região e em bairros como
Higienópolis, República e Santa Cecília já seguiam o mesmo conceito.
Hoje, passados 46 anos, o edifício ainda exerce sua função
multiúso, com uma loja e uma agência dos Correios no térreo e um
estacionamento, no subsolo. "Meu pai era muito progressista. Foi ele quem
construiu o prédio, para a família. Desde o início, os vários usos já foram
pensados de forma independente e dá supercerto até hoje”, diz o advogado Rubens
Tofik.
A torre tem 23 apartamentos e cada um deles tem direito a
uma garagem privada. Quem precisa de vaga extra pode buscar no próprio subsolo,
onde o estacionamento comercial funciona normalmente até as 20 horas, sem
qualquer relação com o prédio. As facilidades oferecidas são bem avaliadas por
moradores antigos e novos, de acordo com Tofik, que diz não enfrentar
dificuldades para alugar unidades vagas.
'Paulistano é
conservador, mas quer experimentar', diz arquiteta
O paulistano está disposto a experimentar novas formas de
tipologia, diz a arquiteta e urbanista Adriana Levisky. Ela afirma que o grande
diferencial do Plano Diretor não é permitir o uso misto, que já existe na
capital, mas estimular uma mudança de comportamento que gere novos espaços de
convivência.
"O paulistano é um ser conservador nas suas aquisições,
mas agora, com os estímulos trazidos pelo Plano Diretor, acredito que haverá
interesse em se pensar novas formas de construir. O mercado está disposto a
fazer essa experiência e a sociedade tem percebido que o patrimônio comum
agrega valor, traz qualidade de vida, segurança e convivência", diz.
Adriana cita as cidades de Santos e do Rio como exemplos.
"Elas já têm a calçada como um espaço para várias atividades. São Paulo se
fechou para dentro dos muros, para uma lógica condominial, individualista,
focada no privado. E, para piorar essa situação, o poder público não criou
condições, equipamentos para que houvesse a apropriação do espaço público. Mas,
aos poucos, estamos percebendo uma oportunidade de virar isso do avesso."
Ao aproximar as ofertas de serviço da moradia das pessoas, a urbanista ressalta que não só os deslocamentos de carro serão reduzidos, mas as relações com a cidade também. "Quando o cidadão vira pedestre, cria-se vínculo, civilidade. São muito os benefícios dessa mudança."
Comércio no térreo
faz morador ser cliente
Restaurante em Higienópolis segue normas do condomínio e atrai
clientela de prédio
O Edifício Paquita, construído na década de 1950 no melhor
estilo modernista, ganhou cinco novos "moradores” em fevereiro. Diferentemente
dos demais ocupantes dos 54 apartamentos, os sócios do Modi Gastronomia não
passaram do térreo. Mas, apesar de não dividirem o mesmo elevador, os
proprietários do restaurante, localizado em Higienópolis, região central da cidade,
seguem as normas do condomínio e também a velha política da boa vizinhança.
Até agora tem dado certo. Pelo menos é o que afirma Daniella
Angelotti. Para garantir o bom entrosamento com os vizinhos, ela e os outros
sócios abriram mão de algumas facilidades que poderiam ofertar aos clientes,
como valet na porta e área de fumantes na calçada. "Também não colocamos mesa e
cadeiras do lado de fora e só usamos uma das portas a que temos direito”, diz.
O sucesso é resultado, segundo Daniella, de muita conversa.
"Tudo é combinado. O adesivo que colamos na janela, por exemplo, com o nome do
restaurante, teve a aprovação do condomínio. O resultado é que quase todos os
moradores são nossos clientes. A gente até brinca. Pergunta se eles pegaram
trânsito no elevador para chegar.”
Paula Zemel, de 38 anos, é uma das clientes mais assíduas.
Moradora do último andar, a arquiteta considera um privilégio morar em um
prédio que tenha restaurante no térreo. "Espero que o Plano Diretor mude nossa
cidade para melhor. Como moradora, sou super a favor, e como arquiteta, também.
Sei das facilidades. Como não cozinho, faço meus almoços com os amigos no
restaurante. É muito pratico. Só o café acaba sendo lá em casa”, diz.
O Modi Gastronomia é o quarto ponto comercial instalado no Edifício
Paquita. Quem ocupou o espaço por mais tempo foi um salão de cabeleireiro.
"Minha avó nem lavava o cabelo em casa. Era só no salão”, lembra Paula. Uma
distribuidora de vinhos e uma padaria, comandada pelo chef Olivier Anquier,
foram os outros locatários.
Harmonia. Saber
fechar as portas na hora certa, para não atrapalhar o sono dos moradores, é
outra medida considerada essencial para manter a harmonia entre os usos
residencial e comercial. Oferecer acessos exclusivos tanto para clientes como
para moradores também é obrigatório. As portarias precisam ser distintas para a
integração funcionar e, mesmo assim, há risco de haver problemas.
Em Perdizes, na zona oeste, os proprietários dos
apartamentos construídos no cruzamento das Ruas Cardoso de Almeida e Caiubi
convivem bem com o funcionamento de uma farmácia, um salão de beleza e um café
instalados no térreo dos edifícios. No entanto, sempre há reclamações. O
corretor de imóveis Sérgio Gomes, de 66 anos, conta que soube de um vizinho que
resolveu mudar de endereço por causa do café.
"Ele vivia no primeiro andar e dizia que o calor da cozinha deixava o imóvel quente. Era isso que o incomodava, mais do que o barulho”, diz. Segundo Gomes, quem compra um apartamento em um prédio com comércio no térreo deve se atentar para o perfil do estabelecimento. "Um café é bem diferente de um bar, especialmente no que diz respeito ao barulho, mas tem gente que não se acostuma.”
Projeto também deve
ampliar oferta de serviços públicos
Assim como o comércio, Plano Diretor prevê que equipamentos públicos,
como creches e postos de saúde, ocupem o térreo
O conceito multiúso ainda pode, segundo o Plano Diretor,
permitir que equipamentos públicos, como creches, escolas técnicas e postos de
saúde, sejam incorporados a um projeto residencial de caráter social ou não.
Nesse caso, assim como os estabelecimentos comerciais, a instalação dos
equipamentos deverá ser feita no térreo, com possibilidade de se estender ao
primeiro pavimento.
O modelo não é inédito. Em São Paulo, o Conjunto
Habitacional Jardim Edite, erguido no lugar de uma favela na zona sul, serve de
exemplo. O residencial, construído para abrigar famílias de baixa renda, tem
caráter multiúso. No mesmo terreno, as torres residenciais dividem espaço com
uma creche, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e um restaurante-escola.
As famílias que ocupam as 252 unidades só precisam descer as
escadas para ter acesso aos serviços públicos, reduzindo o número de
deslocamentos pela cidade, uma das metas do Plano Diretor.
Com as novas regras, a expectativa da Prefeitura é de que
não apenas os térreos de prédios populares recebam esse uso. O incentivo será
dado a qualquer empreendimento que aceitar colaborar para a expansão da oferta
de equipamentos públicos no Município, que sofre com a falta de terrenos para
viabilizar, por exemplo, novas creches. São Paulo precisa abrir 128,5 mil vagas
para crianças de zero a 3 anos, de acordo com o último balanço publicado pela
Prefeitura.
Após construído, com incentivos financeiros, como a ausência do pagamento da outorga onerosa - taxa para construir acima do limite permitido -, os espaços podem ser alugados para o próprio Município ou para entidades conveniadas.