Plano Diretor de SP incentiva prédios residenciais 3 em 1

13/07/2014 09:00 - O Estado de SP

Esqueça os atuais padrões seguidos pelo mercado em projetos residenciais. Se as regras definidas pelo novo Plano Diretor saírem do papel, São Paulo vai ganhar prédios multiúso, com lojas, estacionamentos e moradia em uma mesma torre. O "conceito 3 em 1” valerá para o entorno de estações de metrô e corredores de ônibus, onde a administração quer intensificar o adensamento populacional.

Com as novas diretrizes, o empreendedor terá incentivos financeiros para "fatiar” o projeto em três e alterar, assim, a divisão clássica prevista em quase todos os condomínios lançados nas últimas três décadas. Com a instalação do comércio no térreo, por exemplo, as opções de lazer, como playgrounds e salões de festas, terão de ser distribuídas pelos demais pavimentos, valorizando o primeiro andar residencial, que será mais alto, e dando novo uso às coberturas.

O topo dos prédios poderá ser ocupado por academias e piscinas, como já acontece em alguns hotéis. O aproveitamento do subsolo se dará de forma completamente independente. Com o fim da obrigatoriedade de o construtor oferecer ao menos uma garagem por imóvel, as vagas poderão ser comercializadas sob outro parâmetro, a fim de reduzir os chamados "espaços ocos” da cidade.

Relator do projeto de lei que criou o Plano Diretor, o vereador Nabil Bonduki (PT) explica que o termo é usado para caracterizar áreas construídas mal aproveitadas. "Hoje, temos garagens residenciais vazias durante o dia e cheias à noite. O inverso acontece nas garagens comerciais. Esse é o 'espaço oco' da cidade, porque é usado só em uma parte do dia. Mas uma garagem rotativa pode ser usada 24 horas”, explica.

Para ser viabilizada, no entanto, Bonduki afirma que caberá ao prefeito Fernando Haddad (PT) fazer a regulamentação dos edifícios-garagem. Ela é que vai dizer, por exemplo, se os moradores terão prioridade no acesso às vagas e o limite previsto para cada prédio.

Antes disso, Haddad precisa sancionar a lei aprovada no mês passado por 44 dos 55 vereadores. A expectativa é de que isso ocorra nos próximos dias. Com a lei em vigor, a Prefeitura espera que o mercado imobiliário proponha projetos de caráter misto, a fim de reduzir os deslocamentos na cidade e elevar a qualidade de vida da população.

Perfil. Em Pinheiros, na zona oeste, o quarteirão da Rua Fradique Coutinho, entre as Ruas Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde, exemplifica o conceito multiúso defendido pelo governo. Tomada de prédios residenciais em ambos os lados, a quadra tem todo tipo de comércio e serviços no térreo, e com direito a estacionamento rotativo.

Mercados, restaurantes, lojas de roupas e sapatos, livraria e até banco podem ser acessados pelos moradores a pé.

A maioria das torres foi construída nas décadas de 1960 e 1970, o que mostra que o conceito defendido pelo Plano Diretor aprovado há 13 dias não é novo. Quando o Edifício Kennedy, por exemplo, foi construído, em 1968, outras torres residenciais erguidas na região e em bairros como Higienópolis, República e Santa Cecília já seguiam o mesmo conceito.

Hoje, passados 46 anos, o edifício ainda exerce sua função multiúso, com uma loja e uma agência dos Correios no térreo e um estacionamento, no subsolo. "Meu pai era muito progressista. Foi ele quem construiu o prédio, para a família. Desde o início, os vários usos já foram pensados de forma independente e dá supercerto até hoje”, diz o advogado Rubens Tofik.

A torre tem 23 apartamentos e cada um deles tem direito a uma garagem privada. Quem precisa de vaga extra pode buscar no próprio subsolo, onde o estacionamento comercial funciona normalmente até as 20 horas, sem qualquer relação com o prédio. As facilidades oferecidas são bem avaliadas por moradores antigos e novos, de acordo com Tofik, que diz não enfrentar dificuldades para alugar unidades vagas.

'Paulistano é conservador, mas quer experimentar', diz arquiteta

O paulistano está disposto a experimentar novas formas de tipologia, diz a arquiteta e urbanista Adriana Levisky. Ela afirma que o grande diferencial do Plano Diretor não é permitir o uso misto, que já existe na capital, mas estimular uma mudança de comportamento que gere novos espaços de convivência.

"O paulistano é um ser conservador nas suas aquisições, mas agora, com os estímulos trazidos pelo Plano Diretor, acredito que haverá interesse em se pensar novas formas de construir. O mercado está disposto a fazer essa experiência e a sociedade tem percebido que o patrimônio comum agrega valor, traz qualidade de vida, segurança e convivência", diz.

Adriana cita as cidades de Santos e do Rio como exemplos. "Elas já têm a calçada como um espaço para várias atividades. São Paulo se fechou para dentro dos muros, para uma lógica condominial, individualista, focada no privado. E, para piorar essa situação, o poder público não criou condições, equipamentos para que houvesse a apropriação do espaço público. Mas, aos poucos, estamos percebendo uma oportunidade de virar isso do avesso."

Ao aproximar as ofertas de serviço da moradia das pessoas, a urbanista ressalta que não só os deslocamentos de carro serão reduzidos, mas as relações com a cidade também. "Quando o cidadão vira pedestre, cria-se vínculo, civilidade. São muito os benefícios dessa mudança."

Comércio no térreo faz morador ser cliente

Restaurante em Higienópolis segue normas do condomínio e atrai clientela de prédio

O Edifício Paquita, construído na década de 1950 no melhor estilo modernista, ganhou cinco novos "moradores” em fevereiro. Diferentemente dos demais ocupantes dos 54 apartamentos, os sócios do Modi Gastronomia não passaram do térreo. Mas, apesar de não dividirem o mesmo elevador, os proprietários do restaurante, localizado em Higienópolis, região central da cidade, seguem as normas do condomínio e também a velha política da boa vizinhança.

Até agora tem dado certo. Pelo menos é o que afirma Daniella Angelotti. Para garantir o bom entrosamento com os vizinhos, ela e os outros sócios abriram mão de algumas facilidades que poderiam ofertar aos clientes, como valet na porta e área de fumantes na calçada. "Também não colocamos mesa e cadeiras do lado de fora e só usamos uma das portas a que temos direito”, diz.

O sucesso é resultado, segundo Daniella, de muita conversa. "Tudo é combinado. O adesivo que colamos na janela, por exemplo, com o nome do restaurante, teve a aprovação do condomínio. O resultado é que quase todos os moradores são nossos clientes. A gente até brinca. Pergunta se eles pegaram trânsito no elevador para chegar.”

Paula Zemel, de 38 anos, é uma das clientes mais assíduas. Moradora do último andar, a arquiteta considera um privilégio morar em um prédio que tenha restaurante no térreo. "Espero que o Plano Diretor mude nossa cidade para melhor. Como moradora, sou super a favor, e como arquiteta, também. Sei das facilidades. Como não cozinho, faço meus almoços com os amigos no restaurante. É muito pratico. Só o café acaba sendo lá em casa”, diz.

O Modi Gastronomia é o quarto ponto comercial instalado no Edifício Paquita. Quem ocupou o espaço por mais tempo foi um salão de cabeleireiro. "Minha avó nem lavava o cabelo em casa. Era só no salão”, lembra Paula. Uma distribuidora de vinhos e uma padaria, comandada pelo chef Olivier Anquier, foram os outros locatários.

Harmonia. Saber fechar as portas na hora certa, para não atrapalhar o sono dos moradores, é outra medida considerada essencial para manter a harmonia entre os usos residencial e comercial. Oferecer acessos exclusivos tanto para clientes como para moradores também é obrigatório. As portarias precisam ser distintas para a integração funcionar e, mesmo assim, há risco de haver problemas.

Em Perdizes, na zona oeste, os proprietários dos apartamentos construídos no cruzamento das Ruas Cardoso de Almeida e Caiubi convivem bem com o funcionamento de uma farmácia, um salão de beleza e um café instalados no térreo dos edifícios. No entanto, sempre há reclamações. O corretor de imóveis Sérgio Gomes, de 66 anos, conta que soube de um vizinho que resolveu mudar de endereço por causa do café.

"Ele vivia no primeiro andar e dizia que o calor da cozinha deixava o imóvel quente. Era isso que o incomodava, mais do que o barulho”, diz. Segundo Gomes, quem compra um apartamento em um prédio com comércio no térreo deve se atentar para o perfil do estabelecimento. "Um café é bem diferente de um bar, especialmente no que diz respeito ao barulho, mas tem gente que não se acostuma.”

Projeto também deve ampliar oferta de serviços públicos

Assim como o comércio, Plano Diretor prevê que equipamentos públicos, como creches e postos de saúde, ocupem o térreo

O conceito multiúso ainda pode, segundo o Plano Diretor, permitir que equipamentos públicos, como creches, escolas técnicas e postos de saúde, sejam incorporados a um projeto residencial de caráter social ou não. Nesse caso, assim como os estabelecimentos comerciais, a instalação dos equipamentos deverá ser feita no térreo, com possibilidade de se estender ao primeiro pavimento.

O modelo não é inédito. Em São Paulo, o Conjunto Habitacional Jardim Edite, erguido no lugar de uma favela na zona sul, serve de exemplo. O residencial, construído para abrigar famílias de baixa renda, tem caráter multiúso. No mesmo terreno, as torres residenciais dividem espaço com uma creche, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e um restaurante-escola.

As famílias que ocupam as 252 unidades só precisam descer as escadas para ter acesso aos serviços públicos, reduzindo o número de deslocamentos pela cidade, uma das metas do Plano Diretor.

Com as novas regras, a expectativa da Prefeitura é de que não apenas os térreos de prédios populares recebam esse uso. O incentivo será dado a qualquer empreendimento que aceitar colaborar para a expansão da oferta de equipamentos públicos no Município, que sofre com a falta de terrenos para viabilizar, por exemplo, novas creches. São Paulo precisa abrir 128,5 mil vagas para crianças de zero a 3 anos, de acordo com o último balanço publicado pela Prefeitura.

Após construído, com incentivos financeiros, como a ausência do pagamento da outorga onerosa - taxa para construir acima do limite permitido -, os espaços podem ser alugados para o próprio Município ou para entidades conveniadas.