Prefeito da Noite

26/06/2017 07:05 - O Globo

Uma organização sem fins lucrativos de Amsterdã chamada Nachtburgemeester, ou Fundação Prefeito da Noite, está revolucionando a gestão da vida noturna na cidade e levando sua visão sobre os benefícios da cultura da noite para outros lugares no mundo. Fazemos pouco pela cidade que existe fora do período diurno.

Participei na semana passada do Fórum de Chicago para Cidades Globais, um ótimo evento sobre políticas e práticas urbanas que impactam localidades, que provocam novos contextos nacionais e que estabelecem pontes globais, a chamada “diplomacia de cidades”. Eventos sobre urbanismo pipocam pelo mundo, mas o formato desse consegue reunir alta qualidade de conteúdo, graças aos participantes oriundos dos campos da política, da academia, das municipalidades, dos negócios e do terceiro setor. Adotando modos informais e dinâmicos de diálogo, consegue gerar boa troca de ideias.

A palestra de Ella Overkleeft, cofundadora da organização Prefeito da Noite, chamou muito minha atenção pela inovação de governança e pela reflexão que impõe, se de fato entendemos holisticamente a vida nas cidades. Eles atuam como intermediadores entre empresários e produtores da noite, moradores e a municipalidade, fazendo com que o diálogo entre essas três partes não só aconteça, mas que prioritariamente garanta experiências positivas para todos na noite urbana, assegurando que seja vibrante, rica, sedutora e segura.

A premissa é simples. Cidades, para continuarem a ser atrativas, precisam manter lugares de contracultura, que muitas vezes funcionam no limiar da legalidade, porque essas atividades e os espaços da noite são reatores de invenção geracional, permitindo que jovens criadores sintam-se integrados a seus territórios e comunidades, e a seu espírito do tempo.

Essa preservação das características alegres e energéticas da noite tanto reforça o aspecto democrático da cidade quanto alimenta ciclos de reinvenção econômica, social e cultural. Inferninhos, clubes after hours, galerias alternativas, festas, bares e cabarés são decisivos para manter a vitalidade da cidade.

Antes que leitor reclame do barulho, pergunte-se: quem nunca teve uma noitada louca? Quem não conheceu o amor da sua vida na noite?

Mas tem razão o leitor: estabelecer respeito entre as necessidades de dormir e festejar, sem encaretar a relação, é uma premissa da entidade e seus associados, que elegem um “prefeito” entre os seus pares para dialogar com agentes públicos. Por meio de “planos urbanos noturnos”, o necessário respeito ao silêncio, o combate à poluição sonora, a prevenção da bebedeira irresponsável e a intolerância à violência são colocados em ação de maneira criativa, produzindo soluções por uma cultura da noite segura e responsável.

Agora talvez será o leitor boêmio que questione, mas antes reflita sobre como essas noitadas podem ser muito mais acolhedoras e divertidas se produzirem também respeito ao espaço individual e ao espaço público. Problemas infelizmente tão comuns no Rio. Todos se beneficiam com essa visão, evitando-se hiatos geracionais, onde por longos anos morre a vida noturna na cidade.

Os serviços públicos definem sua capacidade logística para o dia. Informações e dados sobre a vida noturna dos lugares não conseguem ser absorvidos pelo agenciamento municipal. Perder tais detalhes sobre a performance da noite urbana é também perder economia e até inclusão. As UPPs enfrentaram muitos problemas para lidar com os bailes funks, por exemplo. Essa é uma intermediação que um prefeito da noite poderia fazer.

Essa boa prática urbana está ganhando outras cidades. Paris, Zurique e Berlim já possuem seus prefeitos da noite. Não confunda com políticos boêmios. Cidades asiáticas também estão aplicando essa solução.

As abordagens funcionalista e econômica controlam os debates e as decisões sobre a gestão urbana. Contudo, cidades sempre foram e serão por muito tempo os lugares que buscamos para ter experiências estéticas, emocionais e, principalmente, para nos enamorarmos. E antes do acasalamento, como muitos animais, nós também dançamos. Negligenciar tal necessidade corporal é negar a vitalidade urbana.

Segurança é fundamental para essa estratégia dar certo. Hoje, no Rio, retorna o medo. Orientar esforços para que a alegria possa renascer na cidade é importante, tanto para combater a depressão criada pelo noticiário político, como para estimular encontros, turismo, economia e loucura acolhedora.

A Lei Seca mostra que boas ações públicas podem salvar vidas. Um Prefeito da Noite ajudaria a restaurar o patrimônio cultural da noite. Mas lembre-se: se for beber, não dirija.

Washington Fajardo - arquiteto, presidente do Instituo Rio Patrimônio da Humanidade