RIO - Noite da última quarta-feira, por volta das 20h30m,
com jogos de futebol na TV e de bares e restaurantes do Baixo Gávea cheios.
Quem chegava de carro deparava-se com uma verdadeira barreira na entrada da
Praça Santos Dumont. Mas não era da operação Lei Seca ou fiscalização da Ordem
Pública. A trincheira era de velhos conhecidos dos frequentadores locais, os
flanelinhas. Seis no total, que se revezavam para se lançar à frente dos
veículos e coagir motoristas a pagarem até R$ 5 pelo estacionamento — mais do
que o dobro do valor oficial, R$ 2 —, numa demonstração de que no Rio, apesar
da sucessão de promessas e estratégias para combatê-los, os guardadores
irregulares continuam disputando espaço com os legalizados do Rio Rotativo e da
empresa Embrapark nas cerca de 44 mil vagas de rua existentes na cidade. De
novo, pela segunda vez, em dois anos, a prefeitura promete resolver o problema
e amanhã publica no Diário Oficial a contratação de uma empresa para fazer um
diagnóstico da situação, que vai orientar uma licitação até dezembro.
Em dois dias da semana passada, terça e quarta-feira, uma
equipe do GLOBO contabilizou 42 flanelinhas agindo, além da Gávea, em vias de
Leblon, Ipanema, Copacabana, Jardim Botânico, Centro, Vila Isabel, Tijuca e
Barra (Jardim Oceânico). Alguns estavam descaradamente próximos a agentes
públicos que deveriam inibir sua ação, como policiais militares e guardas
municipais. Outros, dissimuladamente, usavam uniformes antigos de guardadores
do Rio Rotativo, na cor cáqui.
Os da Praça Santos Dumont eram flanelinhas clássicos, sem qualquer
identificação. Eles abordavam os motoristas aos gritos, sem cerimônia, apesar
de uma patrulha da PM estar estacionada na esquina da Rua Quintino Cunha e de o
ponto ser atendido por dois guardadores da Embrapark.
— Fala logo que esse é seu! — gritava um guardador da
Embrapark para outro, ao ver um carro.
— Esse é meu! Esse é meu! — bradou o guardador, mas perdeu a
contenda para um flanelinha.
Minutos depois, uma motorista era abordada por outro
flanelinha, que pediu pagamento adiantado. A mulher se negou, mas não sem olhar
para trás assim que se distanciou do carro.
— Virei para ver se estava tudo bem — disse ela, que temia
algum dano ao veículo. — Evito pagar flanelinhas, mas me sinto coagida. Eles
não prestam serviço algum, são uma máfia.
Flanelinha usa até
áreas proibidas
À noite, flanelinhas agem mais intensamente em outros pontos
da Zona Sul, como as ruas Ministro Viveiros de Castro e Aires Brito, em
Copacabana, ou Farme de Amoedo e Jangadeiros, em Ipanema. Na Rua Conde de
Bernadotte, no Leblon, por exemplo, por volta das 13h de terça-feira, havia
apenas guardadores da Embrapark. Mas, no mesmo local, perto das 22h de
quarta-feira, só flanelinhas: quatro num único quarteirão.
Situação semelhante à da Rua Dias Ferreira, no mesmo bairro.
Terça-feira, na hora do almoço, um guardador disse que se um flanelinha
chegasse ali arrumaria encrenca. Mas admitia: à noite, alguns apareciam. Dito e
feito. Na quarta-feira, com os restaurantes da rua lotados para o jantar, lá
estavam os guardadores bandalhas.
No Centro, na manhã de terça-feira, um flanelinha oferecia
uma vaga, guardada com um cone, em frente a uma placa indicando que a área era
reservada a carros do Tribunal de Contas do Município, na Avenida Calógeras. Na
quarta-feira, na Praça Mahatma Gandhi, um homem fazia sinal para que motoristas
estacionassem em vagas da Justiça Federal. E, sem saber que se tratava de um
carro de reportagem, um flanelinha indicou uma vaga de carga e descarga na Rua
do Passeio para ser ocupada. Ao ser indagado se não era proibido parar ali,
respondeu:
— Fica tranquilo. Trabalho aqui há 30 anos.
"Experiência” no ponto também era a alegação do guardador
irregular na Rua Pereira Nunes, em Vila Isabel, para convencer os repórteres do
GLOBO a estacionarem em uma vaga. Com colete do Rio Rotativo antigo, ele foi
questionado se tinha talonário e respondeu que não. Mas garantiu:
— Fique seguro de que, quando o senhor voltar, eu estarei
aqui, e o carro também.
O diálogo aconteceu no fim da tarde de terça-feira. Na
quarta, à noite, ele estava no mesmo local. A estratégia de vestir um colete
antigo do Rio Rotativo para impressionar a clientela é comum. Flagrantes foram
feitos na Avenida Ministro Ivan Lins, perto do número 340, na Barra; no
Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel; e na Rua General Roca, junto à Praça
Saens Peña e à Unidade de Ordem Pública da Tijuca, ao lado de guardadores do
Rio Rotativo.
Gerente geral da Embrapark, Márcio Vieira nega a rivalidade
entre flanelinhas e guardadores da empresa. Ele garante que seu efetivo só atua
nas áreas licitadas, de segunda a sexta-feira, das 7h às 19h, e aos sábados e
domingos, até as 13h. E afirma que a Embrapark tem contrato com a prefeitura
para administrar as 9 mil vagas de parte da Zona Sul (Leme, Copacabana, Gávea,
Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico e um trecho de São Conrado) até 2019.
— O flanelinha atua onde não podemos administrar. Muitas
vezes, também param os carros, ao nosso lado, em áreas de carga e descarga e em
cima da calçada — reconheceu Vieira, acrescentando que a empresa já pediu para
estender seu horário nos sábados, domingos e feriados até as 19h.
Já o presidente do Sindicato dos Guardadores Autônomos,
Jorge Justino, diz que a disputa entre flanelinhas e o pessoal do Rio Rotativo
— serviço do município operado por guardadores autônomos —existe. Para ele,
falta repressão:
— A fiscalização está mais relaxada. Hoje, os
estacionamentos estão entregues à própria sorte — diz ele, cujo sindicato reúne
cerca de 5 mil guardadores registrados, exceto os da Embrapark.
Por nota, a Secretaria da Ordem Pública (Seop) informou que
a ação de flanelinhas envolve contravenção penal e crimes como exercício ilegal
da profissão, extorsão e ameaça. Desde janeiro de 2009 até o mês passado, 1.471
flanelinhas foram detidos pela Seop. Ontem, agentes da secretaria detiveram
dois flanelinhas nas avenidas Chile e Beira-Mar, no Centro. Foram encontradas
cerca de 30 chaves com guardadores irregulares, 22 veículos foram rebocados e
54, multados por estacionar em local proibido. Apenas este ano, a Guarda
Municipal levou 93 flanelinhas a delegacias. A PM esclareceu que só atua quando
há acusação de extorsão, ameaça e dano à propriedade pública ou privada. A
Polícia Civil explicou que, geralmente, os acusados são autuados por exercício ilegal
da profissão e podem responder em liberdade.
Estudo para fazer
novo diagnóstico
Depois de repetidas promessas de melhorias no sistema de
estacionamento do Rio, o secretário municipal da Casa Civil, Pedro Paulo,
afirma agora que a prefeitura vai rescindir o contrato com a Embrapark no fim
deste ano. A ideia, segundo ele, é abrir licitação para um novo concessionário
assumir as 44 mil vagas da cidade. Nesta quarta-feira, deve ser publicado no
Diário Oficial do município o nome da empresa vencedora da Proposta de
Manifestação de Interesse, que será responsável pelos estudos para o projeto de
administração das vagas públicas nas ruas. Esse trabalho deverá ser entregue à
prefeitura em 60 dias.
Ainda conforme Pedro Paulo, uma vez escolhida a proposta
técnica, a prefeitura irá preparar uma licitação, que deverá ser feita até
dezembro. Não estão descartados a implantação de parquímetros e o uso de
aplicativos para celulares, que poderão ser uma alternativa para a localização
de vagas ou para facilitar o pagamento do estacionamento. Porém, a modelagem a
ser adotada ainda precisa ser avaliada.
— A ideia é dividir a cidade em lotes. Queremos proporcionar
melhorias para o usuário com a lógica da mobilidade e tecnologia — adianta o
secretário.
Em 10 novembro de 2008, a estreia da Embrapark já foi
marcada por confusão. O consórcio havia vencido licitação feita pela
prefeitura, mas os operadores foram impedidos de trabalhar por guardadores do
sistema Rio Rotativo. Houve denúncias de intimidação, furto de talão e
agressão. Dois dias depois, o Tribunal de Contas do Município (TCM) determinou
que a prefeitura sustasse o contrato, o que foi feito no dia 2 de dezembro. Em
21 de janeiro de 2009, o TCM aceitou uma solicitação da Embrapark e, em sessão
plenária, considerou a contratação do consórcio regular.
Em maio de 2010, o prefeito Eduardo Paes, irritado com o
descumprimento de algumas cláusulas contratuais, inclusive com a falta de
guardadores nas ruas, ameaçou romper com a Embrapark, o que não aconteceu. Na
época, logo após ter sido reeleito, o prefeito prometeu: "Quero licitar as
vagas de estacionamento. Provavelmente, vou começar pela Zona Sul. A ideia é
rescindir o contrato com a Embrapark. Mas não quero rescindir o contrato até
termos o modelo adequado”, afirmou, acrescentando: "o que temos é uma
vergonha”.
Três anos depois dessa declaração, a prefeitura anuncia que a modelagem do prometido novo sistema ainda precisa ser feita.