09/08/2015 08:15 - O Globo
RIO - Síndica do Edifício Prefeito Frontin, nome oficial de
um dos prédios do conjunto conhecido como Balança Mas Não Cai, no Centro,
Conceição Santos, funcionária de uma escola, não sabe sequer onde anda a
escritura do apartamento que herdou há 15 anos. Tampouco ouviu falar em
aforamento, laudêmio ou foro. Mas vai logo deixando bem claro:
— Este prédio é uma comunidade na vertical. Está numa área
de risco. A partir das 17h, tem assalto direto na calçada. Pagamos R$ 80 de
IPTU este ano, e há pessoas que parcelaram em dez vezes. Se a prefeitura cobrar
mais alguma coisa, vai ficar com os apartamentos. Não temos condições de pagar
mais nada.
O Centro e outros 22 bairros das zonas Sul e Oeste se
formaram em terras doadas pela coroa portuguesa à cidade. Nesses 72 quilômetros
quadrados sobre os quais o município tem o chamado domínio direto (direito de
enfiteuse), a prefeitura empreenderá uma verdadeira caça a um tesouro perdido.
Está marcada para 15 de setembro a concorrência que escolherá a empresa de
engenharia consultiva a ser encarregada de uma operação pente-fino em cerca de
70 mil imóveis, cujos donos poderão receber mais uma conta. Os alvos estão fora
do cadastro da Superintendência de Patrimônio Imobiliário, vinculada à
Secretaria especial de Concessões.
Daqueles que não forem remidos, isentos ou excluídos do
aforamento municipal por algum ato legal, passarão a ser cobrados foro (pensão
anual) e laudêmio (2,5% da transação quando o imóvel for vendido) — taxas pagas
hoje por donos de 19.303 imóveis que já constam do cadastro municipal. Eles
estão no Centro e adjacências (Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Catumbi, Rio
Comprido, Cidade Nova e Santa Teresa), na Zona Sul (Botafogo, Flamengo, Glória,
Laranjeiras, Catete, Cosme Velho, Leme, Copacabana, Humaitá, Vidigal, São
Conrado e Joá) e na Zona Oeste (Padre Miguel, Realengo e Magalhães Bastos).
O levantamento levará 18 meses, custará R$ 5,5 milhões e
será minucioso. Tudo será checado e confrontado: livros dos registros das
cartas de traspasse e aforamento, outros documentos antigos, ofícios de
imóveis, escrituras, remissões e isenções.
— O aforamento pode não estar lavrado numa escritura. Por
isso, é preciso pesquisar — diz Marcus Vinícius Belarmino Souza, gerente de
Análises e Avaliações Técnicas da Superintendência de Patrimônio.
"Isso deveria ser
abolido”
A jornalista Cristina Rigitano sabe bem o que é ter um
imóvel foreiro. Há um ano, tenta vender o seu apartamento de três quartos em
Laranjeiras. O desinteresse, segundo ela, vai além do mercado de compra e venda
de imóveis desaquecido:
— Já abaixei o preço, mas não encontro comprador. As pessoas
sabem que, se comprarem um imóvel foreiro, terão que pagar laudêmio quando
forem revendê-lo, assim como eu terei que pagar quando vender. O meu imóvel
fica menos competitivo. Faço um apelo para que o prefeito Eduardo Paes acabe
com o laudêmio.
Também proprietária de um apartamento em Laranjeiras, a
jornalista e professora universitária Alda de Almeida (foto) está entre os que
podem ser surpreendidos com a descoberta de que, há 30 anos, comprou um imóvel
foreiro. Ela não reparou no momento da assinatura da escritura, que foi
guardada e não mais manuseada desde a aquisição. Quanto ao outro apartamento da
família, recebido como herança pelo marido e seus dois irmãos, no Largo do
Machado, o aforamento está claro na escritura.
— Isso deveria ser abolido. O aforamento acaba
desvalorizando o imóvel. Se a prefeitura já cobra imposto de transmissão (o
ITBI, pago pelo comprador), por que cobrar laudêmio (do vendedor)? Já pagamos
um IPTU alto. Por que pagar também o foro?
"O dinheiro é
investido em quê?”
Presidente da Associação de Moradores de Botafogo, Regina
Chiaradia é outra que protesta:
— Existe um rolo jurídico e histórico envolvendo as
enfiteuses. Também não tem cabimento pagar por algo de que não se tem retorno.
O dinheiro do foro e do laudêmio que a prefeitura recolhe é investido em quê?
Os donos de imóveis identificados pelo levantamento como
foreiros que não conseguirem comprovar que, em algum momento, a propriedade
constou do cadastro da prefeitura como tal terão uma despesa maior que os já
incluídos. É que, pelo decreto municipal 3.221, de 1981, a pensão anual cobrada
dos atuais foreiros corresponde "ao valor unitário base do sistema monetário
nacional vigente”, ou seja, R$ 1 (corrigidos pelo IPCA-E, conforme portaria de
2011). Com base em outro artigo do decreto 3.221, que trata do "foro inicial”,
a prefeitura pretende cobrar 0,6% do valor de domínio (equivalente a 83% do
valor venal do IPTU) dos novos cadastrados. Uma ilegalidade, segundo o advogado
Luiz Paulo Viveiros de Castro, especialista em direito administrativo:
— Trata-se de um artifício com o objetivo de arrecadar.
Querem criar um segundo IPTU. O Código Civil de 2002 mantém as enfiteuses
preexistentes, mas proíbe a constituição de novas. A legislação municipal é
anterior a esse código e, como na época não havia a proibição de novas
enfiteuses, o decreto fixou normas para o foro inicial. Foro inicial hoje é um
contrassenso. Além disso, se um imóvel é foreiro e não está no cadastro, é
porque o município não o incluiu. Os que forem cadastrados agora têm que pagar
R$ 1 por ano. Se a cobrança for superior, devem ir à Justiça.
Belarmino Souza contesta, alegando que cobrar "foro inicial”
não significa criar uma nova enfiteuse. E garante que o objetivo principal do
levantamento não é aumentar a arrecadação:
— Queremos, principalmente, modernizar e atualizar a nossa
base de dados. Também se trata de uma medida de justiça com quem já paga. De
qualquer forma, não acreditamos que o recadastramento provoque um aumento
significativo na arrecadação.
Há mais de 50 anos, Renato Souza Machado mora com a mãe numa
casa de vila na Rua Voluntários da Pátria, em Botafogo, que consta como foreira
no cadastro da prefeitura. Mas, como o foro é de R$ 1, a cobrança não chega
anualmente, já que não vale a pena emitir boletos com esse valor. No fim do ano
passado, Renato recebeu um de R$ 32. Foi se informar e viu que se tratava de
vários foros somados. Achou melhor quitá-los.
— Não me lembro de quando foi a última vez em que recebemos
uma cobrança dessas. O que realmente me preocupa é que parece que a casa nunca
é da minha família. É como se a prefeitura fosse nossa herdeira eterna. Se
minha mãe (a dona) quiser vender o imóvel, terá que dar 2,5% à prefeitura. E
quem comprar, se for revender, deverá pagar mais 2,5% — reclamou.
Com a enfiteuse, a prefeitura arrecadou R$ 28 milhões no ano passado. E não faz uma estimativa de quanto espera arrecadar com a atualização do cadastro.
Enfiteuse: Prática é
herança do período colonial
A do Rio concentra-se nas áreas designadas como sesmarias municipais
RIO - A enfiteuse (ou aforamento) é um instituto do direito
civil, trazido para o Brasil nos primórdios do período colonial. A do Rio
concentra-se nas áreas designadas como sesmarias municipais, doadas pela corte
portuguesa após a expulsão dos franceses. O município, portanto, tem o domínio
direto desses imóveis, é o senhorio. Quem os compra passa a ter o domínio útil.
O foreiro — ou enfiteuta — tem sobre o bem o direito de posse, uso e gozo,
podendo vender ou transmitir por herança.
Ao foreiro são impostas duas obrigações: uma, pagar ao
senhorio uma prestação anual, o foro; a outra, dar ao proprietário o direito de
preferência, toda vez que for vender o bem. Se o senhorio não exercer a
preferência, terá direito ao laudêmio, ou seja, uma porcentagem (2,5%) sobre o
negócio realizado.
É possível a um foreiro passar a ter o domínio direto do
imóvel. Para isso, terá de desembolsar os valores correspondentes ao laudêmio e
a dez foros. Assim, o imóvel passa a ser considerado remido.
Também têm o mesmo direito sobre imóveis do Rio a União
(áreas de marinha), famílias (Burle de Figueredo e Murilo de Aragão, entre
outras) e entidades religiosas (Ordem de São Francisco da Penitência e Convento
de Santa Teresa, por exemplo).