Quem mexeu no meu carro? - Ricardo Fujii

01/08/2017 08:00 - Valor Econômico

Aumento do preço da gasolina, redução de espaço em vias para o transporte individual, ciclovias, rodízio. Afinal, por que estão mexendo no nosso precioso transporte individual? Estamos comprando carros para não poder usar. O recente aumento da gasolina - que pode ou não ser concretizado - foi só mais um dos problemas. Alto custo de abastecimento e manutenção, poluição e trânsito têm feito muita gente diminuir seu tempo atrás do volante. E isso no mundo todo. Recentemente, a França decretou rodízio de veículos em sua capital. O mesmo já acontece em Pequim, Cidade do México e São Paulo.

Porém, há um tipo de veículo que - alheio a esses entraves - tem se sobressaído cada vez mais. Silenciosos, pouco poluidores e com baixíssima emissão de gases causadores do efeito estufa, os veículos elétricos têm a grande vantagem de serem muito mais econômicos que os modelos convencionais - e a diferença é gritante. Enquanto um veículo a combustão (álcool ou gasolina) gasta cerca de R$ 6,6 mil para rodar 20 mil km em um ano, um veículo elétrico consegue ter a mesma performance com um custo 50% menor e ainda com muito mais força de arrancada.

Enquanto no Brasil os elétricos ainda estão no início, ao redor do mundo o potencial destes veículos já está se tornando realidade, em um processo cada vez mais acelerado. Há cerca de uma semana, o Reino Unido anunciou que deve extinguir a venda de veículos a diesel ou gasolina até 2040 - mesma decisão tomada pela França. Em dois anos, a Volvo só fabricará veículos híbridos ou elétricos. Na Noruega, os veículos elétricos já respondem por quase um terço das vendas. China e Estados Unidos também têm investido forte no setor, cujas vendas mundiais totalizaram 750 mil unidades em 2016. Em termos socioambientais, os elétricos são - junto com os biocombustíveis - a principal alternativa para reduzir o consumo de petróleo, especialmente se combinados com melhoria no transporte público e outras medidas de mobilidade urbana.

Vale lembrar que o uso de VLTs e trólebus também faz parte deste processo e veículos de carga urbanos são outro grande candidato à eletrificação. Somente no Brasil as emissões do setor de transportes corresponderam a 204 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2015, ou mais de 10% do total das emissões brasileiras de gases de efeito estufa. Na Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, os veículos convencionais são responsáveis por dois terços das emissões desses gases - e metade vem de automóveis. Estudo publicado na revista Energy Policy indica que se os veículos elétricos atingirem 10% da frota paulista em 2030, a redução do total de emissões no Estado alcançaria 1,3%. Ao mesmo tempo, a demanda total por eletricidade aumenta apenas 2%. Com isso, o resultado derruba o mito de que o aumento na demanda por carros elétricos seria responsável pela construção de um grande número de usinas, caras e poluentes.

Mesmo com os veículos flex, a maioria da população ainda é refém dos combustíveis derivados de petróleo Outra crítica que deve ser analisada com cuidado é de que, devido ao uso de baterias, os veículos elétricos estariam nos levando para um beco sem saída, com preços altíssimos e aumento de lixo eletrônico. O fato é que as baterias de íons de lítio observaram uma evolução assombrosa na última década, com seu preço caindo em mais de 70% e sua durabilidade aumentando. E, como as novas baterias veiculares mantêm entre 70% e 80% da capacidade de carga ao fim de sua vida útil, já se planeja sua utilização posterior em sistemas de armazenamento residenciais, contribuindo com a diluição de custos e diminuindo seu impacto ambiental. Ao fim desse processo, as baterias podem ser recicladas, ao contrário da gasolina ou do diesel.

O aumento da importância dos carros elétricos está ligado, em grande parte, ao Acordo de Paris e ao objetivo agregado de limitar o aumento médio da temperatura mundial a 2ºC - buscando 1,5ºC. Porém, seus benefícios não se restringem à segurança do clima global. Além de contribuir para o aumento do efeito estufa, a poluição emitida pelos veículos convencionais é um grande inimigo da saúde pública local. Ela agrava problemas respiratórios como bronquite e asma e aumenta o risco de doenças do coração, câncer, AVC e infertilidade. São por essas razões que tantos países estão incluindo sérias restrições aos veículos a combustão interna: faz bem para o planeta, faz bem para os cidadãos.

No Brasil, dois obstáculos engarrafam o caminho dos veículos elétricos: alto custo de aquisição (essencialmente pela ausência de produção local e elevado IPI) e falta de infraestrutura de reabastecimento, cuja implementação é cara e precisa de apoio. Muito embora um veículo elétrico possa ser carregado na residência de seu proprietário (uma conveniência que um carro a combustão interna não possui), sua adoção em massa deve incluir a possibilidade de recarregá-lo rapidamente em diversos locais.

Atenta à importância disso, a Aneel decidiu promover a consulta pública AP 29/2017 para discutir os investimentos para o desenvolvimento da infraestrutura de recarga, os eletropostos. Se bem elaborada, ela pode ser o início de uma revolução no setor automobilístico brasileiro, permitindo que os carros elétricos se disseminem no país. Processo semelhante ocorreu através da resolução 482/2012, também da Aneel, que lançou as bases para a micro e minigeração de energia renovável, hoje ao alcance de qualquer consumidor.

A partir daí, é aprimorar o caminho com ações e incentivos que permitam a plena aceleração dos elétricos no país, gerando emprego e renda. Exemplos de fora podem servir para a construção do modelo brasileiro, com preocupação em relação ao descarte e à reciclagem de baterias, redução ou isenção de IPVA, além de outros benefícios. O valor que é descontado do pagamento de impostos dos elétricos é compensado com diminuição de gastos em saúde e menos impactos pelas mudanças do clima. Parece que estamos realmente entrando em um caminho sem volta.

Na cidade de São Paulo, enquanto os veículos convencionais devem ficar um dia por semana na garagem durante os horários de pico, os elétricos podem trafegar livremente, isentos do rodízio. No sistema atual, mesmo com os veículos flex, a maioria da população ainda é refém dos combustíveis derivados de petróleo. A entrada dos elétricos significa uma libertação. E o valor do resgate é economizado por todos, com benefícios para a nossa indústria, nossa saúde e nosso planeta.

Ricardo Fujii - engenheiro, doutor em sustentabilidade energética, é analista de conservação do WWF-Brasil