31/08/2015 08:05 - O Globo
"Cidades espalhadas são mais caras que as
compactas, como Paris. Você demanda mais água, energia, serviços, segurança e
transporte” - Sérgio Magalhães, Presidente do IAB
"Ocupar os imóveis vazios
significa aproveitar uma estrutura que já existe. O Estado não precisa investir
para levar água e luz para áreas distantes” - Maria de Lourdes Lopes, Coordenadora
do MNLM
"Não dá simplesmente para colocar
todas as pessoas que precisam de casas nos imóveis vazios, tem de haver
instrumentos para o uso, como o IPTU progressivo” - Haroldo Pinheiro,
Presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo
Leia: Mais cinco décadas de espera - O Globo
SALVADOR E RIO- O Brasil vive um paradoxo: há mais imóvel
vazio do que gente em busca de moradia. O déficit habitacional estimado é de
cerca de 5,43 milhões de residências. Enquanto isso, há 6,097 milhões de
unidades vagas, segundo dados do Censo. Diferentes razões explicam a situação.
Há imóveis de governos das três esferas — União, estados e municípios —,
unidades em disputa na Justiça, com dívidas de impostos, cujos proprietários já
morreram sem deixar herdeiros, entre outros. Ao contrário de outros países,
aqui não há grandes punições para quem deixa caros metros quadrados sem ninguém.
Isso pressiona a necessidade por residências e faz com que muitas delas,
algumas até em ruínas, sejam invadidas. O governo já estuda incluir a reforma
de imóveis vazios na terceira fase do programa Minha Casa Minha Vida.
Não que unir "casa sem gente e gente sem casa” seja simples.
Especialistas lembram que é preciso mapear onde estão esses domicílios vazios e
onde está o déficit habitacional. Mas defendem serem necessárias políticas para
aproveitar as áreas já ocupadas das cidades, que dispõem de infraestrutura, serviços
e transportes.
Sérgio Magalhães, presidente nacional do Instituto de
Arquitetos do Brasil, afirma que o governo investe o pouco que tem na expansão
das cidades e abandona as áreas consolidadas:
— Cidades espalhadas são mais caras que as compactas, como
Paris. Você demanda mais água, energia, serviços, segurança e transporte.
IMÓVEIS MAPEADOS NO RIO
Levantamento feito pela Secretaria Municipal de Habitação do
Rio este ano apontou a existência de 357 imóveis que poderiam ser usados para
habitação apenas no Centro da cidade. O cálculo é de 5.100 unidades
habitacionais, segundo o secretário Carlos Portinho. Outros 61 imóveis já foram
desapropriados, com capacidade de abrigar 573 apartamentos. Já a Secretaria
Estadual de Habitação identificou 186 imóveis que podem ser transformados em
moradia. E busca recursos no Banco Mundial para a execução do primeiro projeto.
— Os imóveis já foram mapeados, e temos um plano que prevê
essas unidades habitacionais a curto, médio e longo prazo — afirma Portinho.
Reportagem publicada no penúltimo domingo no GLOBO mostrou
um pacote de sete projetos de lei enviados pelo prefeito Eduardo Paes à Câmara
Municipal com incentivos fiscais e mudanças nas regras urbanísticas do Rio para
ocupar áreas degradadas ou em processo de revitalização. Entre eles, há um
projeto que concede isenção de ITBI e de IPTU ( por cinco anos) e de ISS (
Imposto de Serviços) para o aproveitamento de imóveis abandonados. Está
prevista também a votação de uma proposta que trata da cobrança de IPTU
progressivo de imóveis vazios e subutilizados.
Para o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo,
Haroldo Pinheiro, a solução para reduzir o total de imóveis vazios não é
simples nem rápida. Ele defende o que a cidade de São Paulo tem feito: aumentar
a taxação para lugares fechados ou que não cumprem a função social da
propriedade.
— Não dá simplesmente para colocar todas as pessoas que
precisam de casas nos imóveis vazios, tem de haver instrumentos para estimular
o uso, como o IPTU progressivo — argumenta.
É ao lado da Câmara, na Rua Alcindo Guanabara, em plena
Cinelândia, que está um dos mais emblemáticos casos de ocupação de imóveis
vazios na cidade. Há quase oito anos, um grupo de 42 famílias invadiu um prédio
vazio do INSS na ocupação Manoel Congo. Entre idas e vindas, conseguiu a
transferência ao governo do estado e a transformação do imóvel comercial em
moradia popular. Os recursos para as obras demoraram a chegar, segundo Maria de
Lourdes Lopes, moradora do local e uma das coordenadoras do Movimento Nacional
de Luta pela Moradia ( MNLM).
No ano passado foi aprovado o financiamento pelo Minha Casa
Minha Vida Entidades, que financia moradias populares por meio de associações e
cooperativas. Desde 2009, o programa financiou 57.870 unidades habitacionais,
das quais 20.800 foram concluídas. É uma parcela bem pequena das quatro milhões
de unidades já contratadas pelo Minha Casa Minha Vida.
— Hoje, temos muita casa sem gente e muita gente sem casa no
Brasil. Ocupar os imóveis vazios significa aproveitar uma estrutura que já
existe, o Estado não precisa investir para levar água e luz para áreas
distantes — conta ela.
Ali, os moradores não terão a propriedade do imóvel, mas a
concessão de direito de uso por 90 anos, prorrogáveis por mais 90 anos, segundo
Maria de Lourdes, conhecida como Lurdinha.
ALUGUEL SOCIAL EM IMÓVEIS VAZIOS
Em Salvador, casarões tombados são ocupados por diversas
famílias. Mesmo sem condições, viram cortiços bem localizados no centro histórico.
Revoltado com a situação, um grupo de artistas e intelectuais baianos decidiu
grafitar a frase "Aqui poderia morar gente” nos imóveis. Sônia de Assis divide
um deles com outras cinco famílias e diz que o coração só aperta quando chove.
O prédio ao lado de onde ela mora com os quatro filhos está condenado. — Quando
chove, nem durmo. Ela sabe que, mesmo que o teto continue em pé, pode perdê-
lo: vários casarões já foram vendidos. Como os donos não podem derrubar,
esperam que o tempo faça isso. Uma das propostas dos arquitetos da cidade era
usar essas casas, devidamente desapropriadas, para moradia social com
conservação das fachadas tombadas como patrimônio histórico da Humanidade.
Para a secretária nacional de Habitação do Ministério das
Cidades, Inês Magalhães, o ideal seria a aprovação de IPTU progressivo para
imóveis vazios, mas os efeitos disso só seriam sentidos em seis ou sete anos.
Ela antecipou ao GLOBO que a terceira fase do programa deverá estimular a
reforma de imóveis vazios, como os casarões de Salvador. No entanto, ela já
adianta que essas unidades deverão ser usadas para aluguel social. Como o preço
dessas moradias é muito alto, elas não devem ser entregues para as famílias.
— Eu defendo que seja só para aluguel social, porque a chance de você fixar uma família com renda de R$ 1 mil num imóvel de R$ 250 mil é mínima. Ela venderia o imóvel — argumenta a secretária.
PAÍS TEM 2,7 MILHÕES DE CASAS COMPARTILHADAS POR MAIS DE
UMA FAMÍLIA
Numa casa na comunidade do Morro do Horácio, em
Florianópolis, duas famílias dividem o mesmo teto. Rodrigo Lopes e Joice Luana
da Silva moram com os filhos Michael, de 8 anos, e Jackson, de 12 anos, de um
lado. Separadas apenas por uma divisória de madeira, vivem Rosane Carneiro
Capistrano, irmã de Joice, e sua companheira Daiana Pereira. A necessidade de
reduzir os custos de moradia uniu as duas famílias, há quase cinco anos.
Arranjos como esse, chamados de famílias conviventes, correspondem a 2,7
milhões de domicílios do total de 65 milhões existentes no país — ou 4,3% do
total, segundo dados da Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE.
A fatia já foi bem maior. Em 2004, era de 7,4%. Em quase
metade ( 49,5%) dos lares, os motivos financeiros explicavam a convivência. Eé
a renda que pode ter contribuído para esse recuo, segundo a pesquisadora do
Núcleo de Estudos da População Elza Berquó, da Unicamp, Maria Coleta Albino de
Oliveira:
— Nos últimos anos, houve aumento do poder aquisitivo do
salário mínimo, o que significou alta da renda média. Com mais renda, as
famílias tendem a ter mais condições de sustentar seus próprios domicílios.
Outro fator capaz de ajudar nesse sentido é a expansão da
fatia de mulheres com filhos pequenos que participam do mercado de trabalho.
Com isso, passam a ter um ganho que antes apenas os maridos tinham. O movimento
contribui para o aumento da renda da família, o que facilita a manutenção dos
custos de uma casa.
As dificuldades para comprar ou alugar uma moradia própria e
até manter os gastos de uma casa colaboram para a coabitação de duas ou mais
famílias em um domicílio. Além da questão da renda, no entanto, outros motivos
podem contribuir para esse movimento. Famílias com filhos pequenos podem contar
com a ajuda dos avós para acompanhar o dia a dia das crianças, enquanto um
integrante mais velho da família pode ser cuidado com mais facilidade se
dividir o mesmo teto com os demais. Na pesquisa do IBGE, os motivos financeiros
são a principal razão para a convivência em quase metade dos domicílios (
49,5%), mas a vontade própria vem logo depois, com 41,8%.
No cálculo do déficit habitacional — ou seja, de quantos
domicílios ainda faltam no país para atender a toda sua população —, são
contabilizadas as famílias que gostariam de deixar esses lares com mais de um
núcleo familiar. Assim, as famílias de Rodrigo e Joice e Rosane e Daiana, de
Florianópolis, engrossam os números de falta de moradia. No local onde vivem,
há projeto para construir um empreendimento do programa Minha Casa Minha Vida,
mas os moradores ainda não sabem se serão incluídos.
— Queremos muito viver com saneamento básico, mas nosso maior temor é só conseguir um apartamento para todo mundo. Somos duas famílias diferentes e queremos ter nossas casas independentes — conta Daiana.