"O grande vilão do trânsito é a falta de educação por parte dos usuários", diz presidente da CET de São Paulo

27/03/2018 09:30 - Auto Esporte

por ALEXANDRE IZO

Um dos maiores desafios que metrópoles como São Paulo enfrentam é planejar o trânsito de forma que todos os meios de transporte convivam de forma harmoniosa. Isso garante não só mais qualidade de vida para a população, mas também segurança. E os profissionais de engenharia de tráfego são fundamentais nesse trabalho. No caso da capital paulista, a responsável é a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que precisa lidar com a enorme população que circula pelas ruas, um dos piores trânsitos do mundo e uma malha de transporte sobre trilhos bem inferior a outras capitais.

O problema cresce ainda mais se se considerar que as fábricas de automóveis despejam, todos os dias, centenas de novos carros nas ruas para disputar os mesmos 17 mil quilômetros de vias que já existiam há 30 anos. É isso mesmo. As ruas e avenidas paulistanas pouco expandiram desde 1988, e abrigam hoje a frota de 8,2 milhões de veículos registrados, dos quais 6 milhões rodam diariamente.

Para falar sobre este assunto, entrevistamos João Octaviano Machado Neto, presidente da CET. Ele não hesita em afirmar que o grande vilão do trânsito hoje é a falta de educação por parte dos usuários.

Como é o trabalho do engenheiro de trânsito? Que formação ele deve ter? Esse profissional não lida com uma ciência exata, mas com um organismo vivo. Como fazer para projetar a temporização dos semáforos, ou para mudar e construir novas vias?

O profissional de engenharia de tráfego pode ser um engenheiro, um tecnólogo ou um arquiteto. Ele precisa de formação técnica e tecnológica para entender as diversas possibilidades de agregar conhecimento às informações existentes.

Apesar de ser dinâmico no dia a dia, o trânsito também possui certa previsibilidade e alguma lógica, que se transforma em algoritmos, ou regras matemáticas, que ajudam a fazer o planejamento da ocupação do sistema viário e a gestão do sistema.

Hoje, nós utilizamos tecnologias como o ITS (Sistema Inteligente de Transporte) e o SAT (Sistema Analisador de Tráfego) para interpretar determinado fenômeno que aconteça em uma via, permitindo-nos aplicar modelos matemáticos que nos ajudem a fazer a gestão dessa via, influenciando inclusive na operação dos semáforos.

A aferição do volume de veículos que circula em certo horário do dia, em determinado sentido de uma via, nos dá informações importantes para planejarmos a temporização de semáforos, e para estabelecermos pontos de paradas de nossos agentes em rotas operacionais, em pontos que precisem de maior fiscalização. Seja porque a presença do agente garanta maior fluidez no trânsito, seja porque sua assistência evita alguma infração que ocasione alguma restrição no trânsito. Tudo isso faz parte da dinâmica do profissional que cuida da técnica de engenharia de tráfego.

Quais são as principais dificuldades e os principais desafios para se organizar o trânsito em uma cidade como São Paulo?

Primeiro tem a questão histórica da oferta do transporte público coletivo sobre pneus, ou sobre trilhos. Quando comparado a grandes capitais do mundo, São Paulo infelizmente fica muito aquém no oferecimento de trens urbanos e de metrô. E isso faz toda a diferença. Porque se o passageiro não está nos vagões, ele estará nos ônibus ou nos automóveis.  Nosso grande desafio é criar uma matriz de mobilidade onde todos esses modais convivam e tenham o seu potencial elevado ao máximo. Nós não conseguimos interferir na questão dos trilhos, mas conseguimos interceder para melhorar a chegada até eles. A lógica que deve prevalecer é a da maior oferta de transporte público com maior facilidade de acesso.

E os demais modelos de transporte?

Existe também a questão do ciclista. A rede cicloviária da cidade é um modal importante e ela precisa estar presente nessa matriz de mobilidade. Isso sem falar no enorme volume de viagens feitas a pé pela cidade de São Paulo, seja dentro de uma centralidade, seja entre centralidades. Considerando um modal que respeite o pedestre para termos, enfim, uma convivência harmônica e não uma disputa predatória pelo uso dos nossos mesmos 17 mil quilômetros de vias dos últimos 30 anos.

São Paulo tem 17 mil quilômetros de vias? É o suficiente?

Eu diria que basicamente isso mudou muito pouco nas últimas três décadas. A capital paulista tem hoje um conjunto viário de aproximadamente 17 mil quilômetros. Só que a frota nessas últimas três décadas aumentou. Há cerca de 8,2 milhões de veículos automotores registrados na cidade. Por conta do rodízio, “apenas” seis milhões circulam por dia. Então, é uma conjuntura que exige fiscalização, engenharia de tráfego absolutamente dinâmica e moderna, e um processo de educação. Os chamados três “Es” (enforcement, engeneering e education; ou fiscalização, engenharia e educação). Tudo para garantir que as pessoas convivam harmoniosamente com mais segurança e maior tranquilidade.

Quais situações ou ocorrências mais contribuem para gerar congestionamentos. É o número de veículos, o desrespeito às leis, o crescimento desordenado da cidade?

O grande vilão do trânsito é a falta de educação por parte dos usuários. Se nós tivéssemos um respeito sistemático pelas regras de trânsito, não necessariamente diminuiríamos os congestionamentos, mas eliminaríamos uma série de ocorrências que geram congestionamentos. Há desrespeito e falta de educação porque as pessoas colocam, na maioria das vezes, seus interesses pessoais (como a pressa nos deslocamentos) como algo mais relevante do que a regulamentação de uma via. Dentre os quais podemos citar o desrespeito aos semáforos, passar por cima de faixas, efetuar conversões proibidas e andar em velocidades diferentes das regulamentadas. Tudo para resolver o próprio problema. Então eu diria que a educação é o principal ponto.

Do ponto de vista técnico, o que mais preocupa os profissionais que organizam o tráfego e quais são os trabalhos mais difíceis de realizar?

Como eu disse, nós temos um conjunto de normas e leis que disciplinam o trânsito, e o que mais nos preocupa é o desrespeito esses princípios. Quer um exemplo? Nós estamos enfrentando uma epidemia do telefone celular. As pessoas usam o celular de uma forma absolutamente imprudente. Então o sujeito acha que é só uma “mensagenzinha” em um desses mensageiros qualquer... Só que ele leva em média 8 segundos para fazer isso. E, se ele estiver andando em uma via entre 40 km/h e 60 km/h ele vai rodar de 20 a 30 metros “no escuro” podendo atropelar alguém, bater em outro veículo, ou em um poste. O acidente pode ser enorme! E para quem acha que são apenas 30 metros, sugiro a seguinte reflexão: cada andar de prédio tem em média três metros. Trinta metros são dez andares. Se jogarmos um carro do décimo andar, você pode imaginar o estrago que ele fará quando atingir o solo. E eram “só” 30 metros.

Recentemente, tivemos uma fatalidade horrível na cidade, proporcionada por uma condutora que estava dirigindo sob o efeito do álcool, usando o celular, com a carta vencida e em uma madrugada chuvosa. Ela perdeu o controle do veículo e atropelou três pessoas que estavam com o carro quebrado em uma baia na Marginal Tietê. Esse foi um caso emblemático. Ela não respeitou a questão da alcoolemia, não respeitou a questão do celular e o produto disso foi uma tragédia para ela e para outras três famílias, que perderam seus entes queridos. Então, nós devemos atentar para a questão do respeito às normas, da cidadania, de respeitar o próximo e de sabermos que fazemos parte de uma sociedade onde todos têm o mesmo direito. A sua pressa não lhe assegura alvará para você passar por cima das regras do sistema viário.

As fábricas automotivas não param de produzir. Como adequar as vias para garantir o fluxo dos milhares de novos automóveis que chegam às ruas todos os dias?

Primeiro nós temos que criar regramento do sistema. Para você ter uma ideia, e para ajudar com esses números, as duas marginais paulistanas recebem hoje 1,6 milhão de veículos por dia. Isso significa, mais ou menos, que todos os dias nós temos duas operações descida de réveillon da Rodovia dos Imigrantes, naquelas vias. Daí você percebe a importância da sinalização, do regramento e da fiscalização. Quando você me pergunta o que fazer, o primeiro passo é estabelecer essas regras. O segundo é planejar como é que nós conseguimos fazer com que essas transferências encontrem um nexo entre descolamentos curtos, médios e de longa distância. Oferecendo alternativas como a que readequou as velocidades das marginais. Ofertando-lhe uma velocidade compatível com sua característica de rodovia para que nós tenhamos uma maior fluidez, com segurança. Nós também fazemos uso de semáforos inteligentes para ordenar o fluxo nas principais vias.

Em muitas metrópoles do Brasil, e estrangeiras, é possível imaginar que os carros têm preferência de circulação. Sob esse aspecto, como organizar ruas e avenidas da capital paulista para garantir a fluidez do fluxo dos veículos, sem tolher o espaço destinado aos pedestres e ciclistas?

Por meio do planejamento, do uso e da ocupação do solo. Não podemos mais desconsiderar no planejamento de transporte a questão dos polos geradores de tráfego. Não podemos desconsiderar os descolamentos entre centralidades, então a engenharia de tráfego precisa estar associada ao planejamento urbano. Precisamos ter uma leitura da ocupação urbana para perceber em que ela irá implicar nessa movimentação urbana. Os programas das secretarias de habitação, estadual e municipal, trabalham no sentido de requalificar o centro, trazendo moradias para aquela região para diminuir o deslocamento das pessoas. Lembrando que automóvel é o grande responsável pelo desenho do tecido urbano.

Quer dizer então que o carro também influencia na forma como o município se expande?

Antes o carro era um veículo centralizado e que percorria as mesmas distâncias que um cavalo - isso na época da máquina a vapor. Depois, o veículo ganhou mobilidade, fazendo com que as cidades se desenvolvessem em eixos radiais. Como a avenida radial leste, que liga o centro ao extremo da zona leste. Esse conceito fez com que a capital paulista tivesse uma ocupação em um lugar mais barato. Com isso, a periferia acabou concentrando uma população que mora longe do centro e do trabalho. E é muito caro buscar essas pessoas diariamente. Veja o metrô da zona leste. Todas as manhãs ele vem lotado e volta vazio. E isso também ocorre com os trens, com os automóveis e com os ônibus, devido ao planejamento urbano ter-se distanciado do planejamento de transporte. As pessoas foram morar longe por conta do custo da ocupação do solo nas regiões centrais e isso implica nessas viagens.

Então é só trazer essa população para o centro para resolver essas questões?

O centro conta com água, esgoto, luz, rua asfaltada, escola, posto de saúde e creche. Mas veja que engraçado; essa região funciona das 8h às 18h e fica vazia das 18h às 8h da manhã. É isso que nós precisamos trabalhar, na questão da integração e do planejamento dos transportes com o uso e ocupação do solo. Esse é o grande ponto. Para se deslocar ao trabalho, essas pessoas irão utilizar um modal de transporte compatível para si mesmas. Elas virão a pé, de bicicleta, de automóvel, de ônibus, sobre trilhos, mas irão se deslocar, porque onde elas estão morando não existe a oferta desses serviços. É por isso que a engenharia de tráfego sozinha não resolverá o problema.