Criação do Fundo do Transporte Público a partir do Vale Transporte

21/10/2020 16:30 -

Luiz Carlos M. Néspoli

1. Introdução

Na exposição de motivos do PL 6005/1985[1], que deu origem à Lei 7.418/1985, que instituiu o Vale Transporte, estava clara a incompatibilidade entre a tarifa dos serviços públicos de transporte e o ganho dos trabalhadores e que dentre os maiores atingidos pelo grave problema estavam os que ganhavam na época de 1 a 3 salários mínimos.  Ainda, a exposição acenava com outras medidas complementares para atingir outros trabalhadores, como os do setor informal da economia.

Passadas mais de três décadas desde a lei do Vale Transporte, com o país atingindo a marca de 87 milhões de ocupações de trabalho (contingente de pessoas físicas) e, destes, apenas 36 milhões com carteira assinada (PNADC)[2] e com direito ao benefício, é importante discutir se este importante subsídio individualizado ainda cumpre melhor seu papel social, ou seus recursos deveriam ser mais bem dirigidos para abranger todos os usuários do transporte público. É importante observar que a reforma trabalhista de 2018 trouxe várias mudanças no mercado de trabalho, dentre elas a possibilidade de contratação de pessoas jurídicas, o que, em tese, reduziria ainda mais o contingente com direito ao Vale Transporte. Ainda, com a pandemia COVID-19, especula-se que o mercado de trabalho formal com carteira assinada não será o mesmo no futuro próximo.

Se na sua criação o Vale Transporte representava um alívio no bolso dos trabalhadores formais, a situação de lá pra cá, até o ano deste estudo (2019), se agravou com a existência de mais de 50 milhões de trabalhadores informais e desempregados, que sequer tem acesso ao Vale Transporte. Com as alterações nos contratos de trabalho (pejotização) e também com os efeitos drásticos da pandemia CONVID-19, certamente, há muitos mais informais hoje no país. Alia-se a este fato, também a crise de custeio do setor de transporte público, este incapaz de promover melhorias qualitativas que a população deseja e merece, pois que isso aumentaria o custo do transporte e, por consequência, a tarifa que a população não pode arcar. Eis aí um círculo vicioso que pode levar o transporte público a deteriorações progressivas, quando não para o seu desmantelamento.

A raiz deste problema reside na forma como o transporte público é custeado, em que os custos recaem sobre os próprios passageiros, quando na verdade o transporte público serve a toda sociedade e é ele que irriga o dinamismo econômico e social das cidades e favorece a todos.  Sem recursos adicionais, as redes de transporte público, especialmente aquelas compostas por linhas de ônibus, foram e ainda são concebidas e configuradas de forma a permitir que, ao final, o custo operacional resultante esteja ao alcance e possa ser pago pelos passageiros, os quais ainda devem contribuir para pagar a viagens daqueles que Constituição Federal conferiu isenção e para outros que outras leis definiram como categorias de descontos.

Na quase totalidade do país, os custos dos serviços de transportes são rateados pelos passageiros que pagam a tarifa integral ou parte dela. É importante frisar que o passageiro não é o único beneficiário do transporte público. Outros são também, como o setor econômico, a Educação, a Saúde, o setor público de modo geral, o setor de lazer e turismo e muitos outros.

Hoje, é consenso de que o transporte público não pode ser suportado apenas com a tarifa paga pelo seu passageiro, sendo necessários recursos extras. A ideia contida neste estudo é a de que isso pode começar com a aplicação dos recursos pagos pelos empregadores no Vale Transporte, já existentes. É disso que se trata este estudo.

 

2. Objetivo

 

Entre as ideias contidas na proposta de um novo Marco Legal do Transporte Público, há a criação de um Fundo para o Transporte Público (FTP), composto por recurso extra tarifário como forma de subsídio ao transporte público, com vistas a contribuir para alcançar os princípios, diretrizes e objetivos da Lei de Mobilidade Urbana[3], dentre os quais a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos de serviços, a garantia de sustentabilidade econômica das redes de transporte público coletivo de passageiros e a redução das desigualdades e a promoção da inclusão social.

Pretende-se também neste estudo analisar o impacto da alteração da destinação dos atuais recursos do Vae Transporte para a redução tarifária para todos os passageiros do transporte público.

Há uma gama de recursos de várias origens que podem ser carreados para o FTP. Neste estudo, propõe-se dar início à sua composição com os recursos atualmente provenientes da parcela do Vale Transporte devida pelos empregadores. Trata-se de recursos já disponibilizados pelos empregadores, portanto já existentes. O que se propõe é destinar este volume de gastos do empregador com o Vale Transporte ao FTP para abater os custos do transporte público e, assim, baratear a tarifa pública e passar a favorecer todos os passageiros de transporte público e não apenas os com carteira assinada.

Pela legislação vigente, têm direito ao VT os trabalhadores com carteira assinada, os quais recebem parte dos custos do seu transporte na forma auxílio de transporte. A ideia é a de que o FTP pode ter seu início sem que haja necessidade de recursos novos, já que os empregadores já possuem este dispêndio atualmente. Mas, uma vez criado, ao Fundo poderão ser incorporadas outas fontes que venham a ser estudadas.

O impacto que pode produzir um subsídio como o FTP é obtido pela forma como a tarifa pública é calculada. Nas cidades onde não há subsídio (quase a totalidade delas no país), o cálculo da tarifa é resultado da divisão do custo do transporte pelo número de passageiros equivalentes. Havendo abatimento da parcela do Fundo no custo do transporte a tarifa é, assim, reduzida.

Antes:


Com o Fundo:


O passageiro equivalente (Pe) é o mesmo nas duas condições, já que ele é resultado da composição dos passageiros que pagam a tarifa integral (Pti) com os passageiros que pagam com desconto (Pd), na respectiva taxa de desconto em cada caso (Td), e essas condições não se alteram com a criação do FTP.

Neste trabalho será apresentado o método de cálculo do total de gastos do empregador com o Vale Transporte, portanto o valor desta parcela no FTP, bem como o impacto sobre a tarifa pública e, ainda, o impacto sobre os trabalhadores que recebem este benefício atualmente.

Para efeito de quantificação dos impactos, foram analisadas três cidades sobre as quais há informações disponíveis suficientes para a realização dos cálculos: Salvador (2,7 milhões de habitantes), Belo Horizonte (2,5 milhão de habitantes) e São José dos Campos (533 mil habitantes).

Efetuados os cálculos, e por facilidade, com foco apenas em transporte público por ônibus, e tomando as três cidades em conjunto, o potencial do FTP é de R$25 milhões/mês ou R$300 milhões/ano, que permitiria uma redução na tarifa de 12,9% em Salvador, 13,2% em Belo Horizonte e 15,8% em São José dos Campos. Quando extrapolado para o país, o potencial total da receita do Fundo seria de 472,5milhões/mês e de R$5,67 bilhões/ano.

Havendo tarifas mais baixas, é possível que uma parte da população que deixou de viajar nos sistemas de transporte coletivo volte ao sistema, dividindo o custeio por mais pagantes, o que viria a reduzir ainda mais a tarifa.

 

3. Legislação do Vale Transporte

 

O Vale Transporte foi instituído pela Lei 7.418, em 16 de dezembro de 1985, que sofreu alterações posteriores[4], sendo regulamentada pelo Decreto 95.247, de 17 de dezembro de 1987. No que importa para aos objetivos deste trabalho, em síntese, assim estabeleceu o dispositivo legal e suas alterações:

  • ·         Antecipação pelo empregador – pessoa física ou jurídica - do Vale Transporte ao empregado para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e vice-versa, através do sistema de transporte coletivo público, urbano ou intermunicipal e/ou interestadual com características semelhantes aos urbanos, geridos diretamente e ou mediante concessão ou permissão de linhas regulares e com tarifas fixadas pelas autoridades competentes, sendo excluídos os serviços seletivos e os especiais.
  • ·         São beneficiários do Vale Transportes os empregados contratados segundo a da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
  • ·         O Vale Transporte será custeado pelo beneficiário, na parcela equivalente a 6% de seu salário básico ou vencimento, excluídos quaisquer adicionais ou vantagens, e pelo empregador, no que exceder a parcela do empregado até o valor total do gasto mensal em transporte.

Os procedimentos iniciais impunham ao empregador adquirir as passagens no transporte público através da aquisição de tickets e, mais recentemente, com o advento da bilhetagem eletrônica, em créditos em cartões eletrônicos. Mas, também ao longo dos anos, empregadores - empresas privadas, mas também órgãos públicos - passaram a fornecer o benefício do transporte em dinheiro, cabendo o empregado utiliza-lo na forma de sua conveniência.

Ressalta-se que a lei que instituiu o Vale Transporte estabeleceu categoricamente que o benefício se destinava aos deslocamentos do trabalhador através do “sistema de transporte coletivo público, urbano ou intermunicipal e/ou interestadual com características semelhantes aos urbanos” (Art. 1º). Não é necessário dizer que este recurso pode ter passado a custear outras despesas pessoais do empregado ou outras formas de deslocamento, como para arcar com custos do uso do automóvel ou, mais recentemente, de aplicativos, indo contra sua finalidade original, e retirando parte de receitas do transporte público.

 

4. Estimativa do montante da parcela do empregador no Vale Transporte

 

A estimativa do montante gasto pelo empregador com Vale Transporte é obtida pela soma das complementações da tarifa realizadas por ele naquilo que excede ao que a lei do Vale Transporte estabelece, qual seja, a diferença entre o valor do gasto mensal do empregado com o transporte público e o valor correspondente a 6% do seu salário. Para o cálculo da estimativa, é necessário se conhecer:

  • ·         O número de passageiros transportados com utilização do Vale Transporte por média salarial;
  • ·         O gasto mensal do passageiro em transporte público que utiliza o Vale Transporte;
  • ·         A tarifa pública média da cidade;
  • ·         O número de viagens mensais realizadas pelo passageiro que utiliza Vale Transporte de cada cidade.

Não foi considerado neste trabalho o Vale Transporte pago em dinheiro pelos empregadores, porque não é possível identifica-lo nos controles de bilhetagem.

O gasto mensal do passageiro é o valor da tarifa multiplicado pelo número de viagens mensais feitas. Adotou-se, neste estudo, o número básico de 44 viagens mensais, que corresponde a viagens de ida e volta ao trabalho em 22 dias em média por mês. Não se considerou aqui, por simplificação, as viagens integradas entre modos de transporte.

Já a tarifa pública média, para efeito deste estudo, é o resultado da divisão entre a arrecadação e o número de passageiros equivalentes, conforme informação de relatórios estatísticos dos órgãos públicos de transporte. Já o número de viagens utilizando Vale Transporte é fornecido pelos relatórios estatísticos dos órgãos públicos de transporte.

A parcela do empregador é a diferença entre o gasto mensal do empregado e o valor correspondente a 6% do seu salário. Exemplificando:

Salário do empregado: R$1.500,00

Tarifa pública: R$4,00

Número de viagens por mês: 44

Gasto mensal: 44 x R$4,00 = R$176,00

Limite de pagamento: 6% x R$1.500,00 = R$90,00

Parcela do empregador: R$176,00 – R$90,00 = R$86,00

E o montante é a somatória de todas essas parcelas pagas pelos empregadores para todos os passageiros transportados utilizando o Vale Transporte. Para este cálculo, seria necessário conhecer exatamente a história de cada um dos empregados/passageiros, o que não é disponível, ou que cada empregador fornecesse uma contabilidade dos benefícios concedidos, o que também não é facilmente disponível. Assim, a metodologia empregada neste estudo se baseou no uso de perfis salariais por faixa de valores médios, com informações obtidas na pesquisa PNADC.

 

4.1. Médias salariais na utilização do Vale Transporte

 

Há inúmeras informações sobre ocupações e rendimentos na PNADC, mas para o fim pretendido neste trabalho, a pesquisa traz dois tipos de informação que permitem encontrar boa aproximação nos valores que desejamos: (i) o número total de ocupações com carteira assinada (tabela 1), portanto aqueles que possam ter direito ao Vale Transporte; e (ii) o número total de ocupações e respectivo salário médio por grupos de nove atividades (tabela 2).

O número de empregados com carteira assinada (tabela 1) está apresentado nas seguintes tabelas na PNADC segundo três setores típicos: setor privado, no Quadro Sintético, setor público, na Tabela 15 e serviço doméstico, na Tabela 12.

Tabela 1 – Distribuição da quantidade de empregados com carteira assinada

Empregador

Ocupações com carteira assinada

(x 1.000)

%

Setor privado (Quadro Sintético – PNADC)

33.281

92,2%

Setor público (Tabela 15 – PNADC)

1.250

3,5%

Serviço Doméstico (Tabela 12 – PNADC)

1.557

4,3%

TOTAL

36.088

100,0%



Fonte: Elaboração própria, a partir do Quadro Sintético da PNAD

Tabela 2 – Quantidade de ocupações e respectivos salários médios - 2019

No entanto, a PNADC não traz a distribuição das ocupações com carteira assinada por categoria de atividade, mas apenas os valores de salários médios. Como para o objetivo deste estudo é necessário conhecer esta distribuição, utilizou-se a mesma participação relativa das ocupações em geral, como apresentado na tabela 2.

Tabela 2 – Natureza, número das ocupações – total e com carteira assinada, e respectivos salários médios - 2019

Fonte: (*) PNADC – Quadro Sintético; (**) Salários médios: PNADC – Tabelas 60, 61,62,63,64,65,51 e 69, respectivamente.


No setor privado há sete categorias de atividade, nas quais se observam salários médios distintos. Por outro lado, a PNADC não distingue os tipos de atividades públicas com carteira assinada na atividade “administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais”, informando apenas o salário médio. Assim, de um total de 16.207 ocupações, só 1.250 mil estão no âmbito deste estudo, cujo salário médio é de R$3.869,00. As demais ocupações referem-se aos militares ou servidores públicos estatutários, para os quais se admitiu não serem beneficiários do Vale Transporte, nos termos da lei. No que diz respeito aos serviços domésticos, também neste caso não há diferenciação de tipos de emprego e apenas a informação de salário médio de R$1.275,00.

 

4.2. Número de passageiros que utilizam o Vale Transporte por média salarial

 

Admitiu-se que a distribuição dos passageiros que utilizam Vale Transporte é a mesma dos passageiros com carteira assinada apresentada na tabela 2. Assim, aplicou-se ao total das ocupações com carteira assinada (36 milhões de pessoas) os percentuais de distribuição da tabela 2, obtendo-se a distribuição apresentada na tabela 3.

Tabela 3 - Distribuição das ocupações por setor de atividade privada e respectiva participação relativa

Setor de Atividade

Pessoas com carteira assinada

(x 1.000)

Agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura

4.298

Indústria geral

6.028

Construção

3.360

Comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas

8.953

Transporte, armazenagem e correio

2.479

Alojamento e alimentação

2.784

Informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas

5.378

Administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais

1.250

Serviços domésticos

1.557

Total

36.088


Fonte: Elaboração própria

Conhecida a distribuição dos salários médios com carteira assinada em termos gerais para o Brasil, o passo seguinte é calcular a distribuição do número de passageiros que utilizam Vale Transporte nas cidades em estudo. Para tanto, admitiu-se, por hipótese, que a distribuição seria a mesma que a distribuição de ocupações com carteira assinada, conforme demonstra a tabela 4.

Tabela 4 – Distribuição da quantidade de empregados com carteira assinada por tipo de setor

Setor de Atividade

Participação Relativa

(%)

Agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura

11,9%

Indústria geral

16,7%

Construção

9,3%

Comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas

24,8%

Transporte, armazenagem e correio

6,9%

Alojamento e alimentação

7,7%

Informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas

14,9%

Administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais

3,5%

Serviços domésticos

4,3%

Total

100,0%


Aplicadas as porcentagens de distribuição das ocupações com carteira assinada ao total de passageiros que utilizam Vale Transporte por mês em cada cidade de estudo, obteve-se a distribuição da tabela 5. Nesta tabela, os grupos de ocupações foram reordenados dos menores para os maiores salários.

Tabela 5 – Passageiros que utilizam Vale Transporte nas cidades em estudo, segundo a participação relativa

(*)  A tabela foi ordenada segundo as atividades com menor salário médio (**) Valores obtidos dos relatórios estatísticos dos órgãos de transporte das respectivas cidades.

Fonte: Elaboração própria, a partir do total de passageiros com Vale Transporte: órgãos públicos das respectivas cidade

4.3.Valor da tarifa pública média

A tarifa pública média foi obtida pela divisão do total de arrecadação no período pelo número de passageiros equivalentes transportados no mesmo período. Admitiu-se que a arrecadação corresponde ao custo operacional, admitindo-se a hipótese de que os sistemas estavam em equilíbrio financeiro, bem como por que as cidades de estudo não praticam subsídio. Nesta condição, podemos afirmar que a tarifa pública média corresponde à tarifa de remuneração média do sistema de transporte, cujos valores encontram-se na tabela 6.



 Tabela 6 – Tarifas públicas médias nas cidades em estudo

Dados de Demanda e Receita

Salvador

Belo Horizonte

São José dos Campos

Passageiros equivalentes (média/mês)

21.232

24.665

3.658

Arrecadação (média/mês)

78.557

93.150

16.245

Tarifa Pública Média

3,70

3,78

4,44

Fonte: Relatórios estatísticos dos órgãos de transportes respectivos de cada cidade. Salvador (2018; Belo Horizonte e São José dos Campos (2019)

 

4.4. Montante da parcela do empregador no Vale Transporte por cidade

 

As tabelas 7, 8 e 9 mostram os cálculos do total gasto pelo empregador com o Vale Transportes nas cidades de Salvador/BA, Belo Horizonte/MG, São José dos Campos/SP, respectivamente.

 Tabela 7 – Cálculos dos gastos do empregador com Vale Transporte em Salvador-BA


Tabela 8 – Cálculos dos gastos do empregador com Vale Transporte em Belo Horizonte/MG


Tabela 9 – Cálculos dos gastos do empregador com Vale Transporte em São José dos Campos-SP


        5.4. Impacto sobre a tarifa

Neste estudo, como foi apresentado nos objetivos iniciais, se propõe a transferir o montante das parcelas do empregador com o Vale Transporte para FTP, reduzindo o custo operacional total e com isso beneficiando todos os usuários do transporte público e não somente aqueles com carteira assinada.

Ressalta-se que, sendo, por hipótese, sistemas financeiramente equilibrados, a arrecadação cobre os custos operacionais. Subtraindo-se deste os valores do FTP e divididos pelos mesmos passageiros equivalentes atuais, resulta na nova tarifa pública, pela fórmula a seguir, cujos resultados são apresentados na tabela 10:


Tabela 10 – Novas tarifas públicas com a utilização do FTP

Dados de Demanda e Receita

Salvador

Belo Horizonte

São José dos Campos

Passageiros equivalentes (x 1.000/mês)

21.232

24.665

3.658

Arrecadação (Custo Operacional) atual (x 1.000/mês)

78.557

93.150

16.245

FTP (x 1.000/mês)

10.166

12.270

2.564

Custo remanescente (x 1.000/mês)

68.390

80.880

13.680

Tarifa Nova Média (reais)

3,22

3,28

3,74

 

Comparando-se com a tarifa média atual dessas localidades, observa-se que para o conjunto da população que utiliza o transporte público, seja ela empregada com carteira assinada, seja um trabalhador do mercado informal ou um desempregado, haveria uma redução na tarifa de 12,9% em Salvador, 13,2% em Belo Horizonte e 15,8% em São José dos Campos (tabela 11).

Tabela 11 – Impacto na tarifa pública média

Dados de Demanda e Receita

Salvador

Belo Horizonte

São José dos Campos

Total do FTP (R$ x 1.000)

10.166

12.270

2.564

Tarifa Nova Média (R$)

3,22

3,28

3,74

Tarifa Atual (R$)

3,70

3,78

4,44

Redução na tarifa média (%)

12,9%

13,2%

15,8%

Fonte: Elaboração própria

 

6. Impacto para os empregados com carteira assinada

 

Os passageiros que são empregados com carteira assinada, a partir da criação do FTP, passarão a pagar a nova tarifa pública, de forma integral, como todas as demais pessoas, independentemente de sua condição de trabalho, com exceção daqueles com isenções e descontos legais, cujo efeito já foi considerado no passageiro equivalente. Isso, naturalmente, acarretará impactos em suas despesas individuais, o que foi se buscou calcular, a seguir.

Os relatórios estatísticos dos órgãos de transporte registram viagens pagas com o Vale Transporte, mas não registram quantas pessoas estão representadas nestas viagens. Uma maneira aproximada de estimar esta informação é verificar quantas pessoas da população da cidade estão representadas no total de pessoas com carteira assinada no Brasil, por meio da relação entre as respectivas populações e a população do país e a partir desta informação inferir como se distribuem os passageiros segundo os mesmos salários médios.

Pela pesquisa PNAD, há 36 milhões de empregados com carteira assinada. Considerando que o país tem 210 milhões de habitantes, a partir dessas informações é possível fazer uma correlação população e o número de pessoas com carteira assinada. Primeiramente, é necessário verificar quanto representa a população de cada cidade em relação à população do país, o que pode ser visualizado na tabela 12.

Tabela 12 – Relação entre as populações das cidades de estudo e a população do Brasil

Cidade

População

%

Salvador

2.857.329

1,4%

Belo Horizonte

2.501.576

1,2%

São José dos Campos

713.943

0,3%

Brasil

210.147.125

100,0%

Fonte: IBGE - 2019

Em seguida, aplica-se esta relação sobre o número de carteiras assinadas em todo o país, segundo a PNADC, conforme ilustra a tabela 13.

Tabela 13 – Número de pessoas com carteira assinada por cidade de estudo

Cidade

Ocupações carteira assinada

Salvador

490.681

Belo Horizonte

429.589

São José dos Campos

122.604

Brasil

36.088.000

Fonte: Elaboração própria

 

A distribuição da população com carteira assinada em cada cidade pelas atividades/faixas de salários médios é feita a partir da distribuição relativa da população por atividade indicada pela PNADC. Aplicado a cada cidade, as tabelas 14, 15 e 16 ilustram a população que utiliza Vale Transporte distribuída por salário médio.

A perda de benefício, ou em outras palavras, o aumento de despesa individual de cada passageiro corresponde à parcela que antes cabia ao empregador. Neste estudo, destacamos apenas em termos percentuais para a análise que se pretende fazer, ou seja, qual a porcentagem sobre a tarifa antes paga pelo empregador que o passageiro terá que assumir.

Tabela 14 – Valor da perda do benefício do Vale Transporte para a população com carteira assinada em Salvador 

(*) Setores de atividade e salários médios: PNADC - 2019

Tabela 15 - Valor da perda do benefício do Vale Transporte para a população com carteira assinada em Belo Horizonte

(*) Setores de atividade e salários médios: PNADC - 2019

Tabela 16 - Valor da perda do benefício do Vale Transporte para a população com carteira assinada em São José dos Campos

(*) Setores de atividade e salários médios: PNADC - 2019


Diferentemente de quando tratamos de passageiros transportados, que são contabilizados por viagens realizadas, cujos números são comprovadamente registrados nos sistemas de controle das passagens, neste caso, é difícil precisar quantas das pessoas que trabalham com carteira assinada realmente utilizam o transporte público e quantos o fazem com o uso do Vale Transporte.

De qualquer forma, se todas as pessoas com carteira assinada utilizassem transporte público com o uso do Vale Transporte, o que não é de todo provável, num total de cerca de um milhão de carteiras assinadas nas cidades de estudo, tomadas em conjunto, estima-se que cerca de 20 mil pessoas teriam mais de 50% de aumento de despesa pessoal, 159 mil entre 40% e 50%, 426 mil de 20% a 40%, 245 mil de até 20% e 191 mil pessoas não teriam alteração, em razão da faixa salarial (tabela 17).

Tabela 17 – Quantidade de pessoas que terão aumento de despesa mensal com transporte por cidade de estudo.

Cidade

Quantidade de pessoas por tamanho das perdas de benefício

Total

Acima de 50%

De 40% a 50%

De 20% a 40%

Até 20%

Não tinha benefício antes

Salvador

79.616

205.274

115.674

90.118

490.681

Belo Horizonte

69.703

179.716

101.272

78.898

429.589

São José dos Campos

19.893

9.459

41.832

28.903

22.517

122.604

Total

19.893

158.778

426.822

245.849

191.532

1.042.874

%

1,9%

15,2%

40,9%

23,6%

18,4%

100,0%

Fonte: Elaboração própria

É importante considerar que ao lado de um trabalhador com carteira assinada existem outros, dentre os quais seus próprios familiares, que atualmente não tem qualquer tipo de desconto e que seriam beneficiados pelo FTP.

 

7. Projetando para o país o tamanho do FTP com recursos atuais do VT

 

É possível projetar com aproximação o tamanho do FTP para o Brasil, tomando-se por referência a frota de ônibus, na hipótese de que o custo operacional tem grande aderência à quantidade de ônibus utilizada para o transporte público urbano.

Em conjunto, as três cidades têm 5.658 ônibus, enquanto em todo o país a frota total é de 107 mil ônibus, portanto, multiplicada por um fator 18,9. Considerando que o potencial de receita mensal do FTP das três cidades é de R$25 milhões (tabela 18), o potencial de receita para o Brasil é de 472,5 milhões mensais e de R$5,67 bilhões anuais.

 

Tabela 18 – Potencial de receita do FTP por cidade

Total do FTP por cidade

Salvador

Belo Horizonte

São José dos Campos

Total

Total do FTP (R$ x 1.000)

10.166

12.270

2.564

25.000

Fonte: Elaboração própria

Estima-se que o custo do transporte por ônibus no Brasil por ônibus seja da ordem de R$42 bilhões. Assim, o FTP tem início já com recursos equivalentes a 13,5% de todo o custo do transporte por esse modo.

 

8. Considerações finais

 

Os cálculos demonstram, com foco apenas em transporte público por ônibus, e tomando as três cidades em conjunto, que o potencial do FTP é de R$25 milhões/mês ou R$300 milhões/ano, que permitiria uma redução na tarifa de 12,9% em Salvador, 13,2% em Belo Horizonte e 15,8% em São José dos Campos. Quando extrapolado para o país, o potencial total da receita do Fundo seria 472,5milhões/mês e de R$5,67 bilhões/ano.

Havendo tarifas mais baixas, é possível que uma parte da população que deixou de viajar nos sistemas de transporte coletivo volte ao sistema, dividindo o custeio por mais pagantes, o que viria a reduzir ainda mais a tarifa.

Naturalmente que no presente estudo foram realizadas estimativas baseadas em algumas premissas e hipóteses, as quais precisam ser validadas em estudos mais aprofundados. Uma delas é de que a distribuição da população segundo as atividades pesquisadas pela PNADC e dos respectivos salários médios seria a mesma em cada cidade, o que pode não ser verdade, pois em outras informações da PNADC observa-se que o salário médio é regionalmente diferente, e ainda diferente cidade por cidade. Outro aspecto a ressaltar é que se considerou a viagem mais simples, de ida e volta, em apenas no transporte público por ônibus, requerendo tratar também o efeito sobre os transportes sobre trilhos e às integrações intermodais.

Tudo isso pode ser aprimorado com o conhecimento específico de cada situação, o que não invalida conceitualmente a ideia. De qualquer forma, aparentemente, parece que a alteração da destinação da parcela do empregador para um fundo de transporte pode se constituir numa política melhor para toda a sociedade e ao mesmo tempo dar início prático a uma ideia antiga de buscar recursos não exclusivamente tarifários para cobertura do custeio do transporte público.

Se este for o caminho a se adotar, a Lei 7.418 e suas alterações posteriores deverão sofrer uma revisão, o FTP deverá ser criado em lei e, ainda, instituir a regulamentação para se estruturar a operacionalização decorrente de sua aplicação.


Citações no texto:

[1] Exposição de Motivos do Projeto de Lei PL 6005/1985 que propõe a criação do Vale Transporte (Lei 7.418, de 16 de dezembro de 1985.

[2] PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio Contínua – 28 de abril de 2020 - IBGE

[3] Lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012 – institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana

[4] Alterada pelos seguintes dispositivos: Lei nº 7.619, de 30-9-1987; Lei nº 7.855, de 24-10-1989, MP nº 2.189, de 2001 e Lei Complementar nº 150, de 2015.

Pesquisa:

Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos - NTU - Anuário NTU 2018/2019 – https://www.ntu.org.br/novo/upload/Publicacao/Pub637020043450950070.pdf, em 16/6/2020

Secretaria de Mobilidade de Salvador/BA - Anuário de Transportes Urbanos de Salvador – 2018. https://www.ntu.org.br/novo/upload/Publicacao/Pub637020043450950070.pdf; 17-6-2020

Secrretaria de Mobilidade de São José dos Campos - Dados Operacionais – 2019 – https://www.sjc.sp.gov.br/media/100770/bilhetagem.pdf; 17-6-2020