22/04/2020 15:00 -
A pandemia da Covid 19 coloca seus holofotes sobre as desigualdades sociais em nosso país. O Brasil está conhecendo o Brasil e, face a este reconhecimento, somos forçados a buscar medidas que respondam ao objetivo do combate à epidemia em contextos sócio econômicos muito distintos. A população de baixa renda e, dentro dela, a população afro-brasileira, que vivem em favelas e regiões periféricas sentirão de forma muito mais grave os impactos da pandemia.
Os fatos recentes deixam claro para um público mais amplo, o que profissionais de saúde, cientistas, entidades acadêmicas e movimentos populares denunciam há décadas sobre a necessidade de acesso universal à saúde, à agua potável e ao saneamento básico.
Para citar um exemplo típico dos tempos atuais, basta acompanhar os efeitos da migração de grande parte das atividades econômica e sociais para o espaço digital – cadastro de benefícios sociais, atendimento via telemedicina, educação via internet. As deficiências de infraestrutura digital e de acesso à internet podem tornar mais aguda a exclusão de amplas parcelas já vulneráveis de nossa população.
Quando analisamos a mobilidade urbana, observamos o mesmo quadro de assimetria e desigualdade social encontrada em outras áreas – renda, habitação, saneamento, coleta de lixo. De longa data sabemos que a mobilidade urbana cresce com a renda das pessoas.
Os deslocamentos das pessoas de baixa renda estão diretamente associados ao trabalho que, quando formalizado, garante a elas o acesso ao Vale Transporte. Os trabalhadores informais carecem deste apoio e a crise econômica que estamos vivendo desde 2015, já colocou milhares de pessoas fora de empregos formais. O crescimento do número de moradores de rua, também vem ocorrendo devido aos custos elevados do transporte no orçamento da família e da instabilidade da renda daqueles que trabalham sem vínculo formal de emprego.
Outro aspecto a destacar é a importância da presença da mulher nestas comunidades, em que muitas delas respondem por uma parcela significativa ou mesmo total da renda das famílias, dos cuidados das crianças e dos idosos. Embora as diferenças salariais entre gêneros ainda sejam significativas, a formalização do trabalho doméstico e das cuidadoras de idosos, trouxe muitas delas para o transporte público principalmente pelo acesso ao Vale Transporte, processo que pode ser interrompido.
Os segmentos da população de baixa renda já vivem em regime de isolamento, quando nos referimos a mobilidade urbana. As viagens de laser nos finais de semana requerem um esforço suplementar que pode significar a falta de recursos no final do mês. Iniciativas de tarifa zero nos domingos tem sido exitosos em muitos municípios, pois permitem as famílias deslocarem-se para visitar parentes, parques e outros atrativos de qual são carentes a maior parte dos bairros populares.
Ou seja, o isolamento ou distanciamento social precisa ser considerado a partir da realidade de cada segmento da sociedade brasileira, o que requer ações direcionadas a cada um deles, de modo a tornar factíveis a adoção das medidas necessárias para a proteção das pessoas da contaminação pelo coronavírus.
Do ponto de vista das populações que vivem em comunidades e favelas, muitas medidas adotadas pelas autoridades de transporte público e empresas operadoras, já estão sendo implementadas. A primeira delas foi a defesa da manutenção dos serviços de transporte público ajustados aos tempos da pandemia, o que está acontecendo na maioria dos municípios brasileiros. Com isto, o setor se somou a outros no combate ao coronavírus, ao possibilitar a circulação das pessoas necessárias a denominada “economia de guerra”. Caso contrário, milhões de pessoas teriam ficado desassistidas.
Porém esta primeira medida se desdobra em ações que precisam ser aperfeiçoadas ao longo da pandemia, tais como:
- Ajustar as redes e a oferta de serviços de forma a assegurar a promover a redução da superlotação dos veículos;
- Criar novos serviços envolvendo as prefeitura e empresas operadoras – linhas de ônibus, micro-ônibus - destinados principalmente ao deslocamento de trabalhadores e pacientes para os equipamentos de saúde e assistência social;
- Facilitar a integração nos terminais de ônibus com as bicicletas, motos e serviços de aplicativos;
- Colocar à disposição das autoridades de saúde de equipamentos e equipes (ônibus, micro-ônibus, motoristas) para auxiliarem na locomoção imediata de pessoas infectadas das comunidades para os centros de saúde e/ou abrigos seguros;
Em segundo lugar, as empresas do setor precisam proteger seu pessoal, e buscar todos os meios para manter seus empregos. Para isto precisa:
- Informar os profissionais das empresas sobre a pandemia e cuidados a serem tomados;
- Garantir o fornecimento de EPI (Equipamento de Proteção Individual) para motoristas, cobradores e demais trabalhadores do setor;
- Adotar processos de higienização dos veículos, paradas e terminais de forma constante.
Em terceiro lugar cabe ao Estado e autoridades municipais nas Regiões Metropolitanas, promover a coordenação das ações durante a crise, o que pode envolver:
- Ajustar as redes de serviços e promover a integração entre diferentes modos de transporte, destinadas a facilitar o deslocamento intermunicipal;
- Avaliar de forma permanente a disponibilidade de recursos – veículos, profissionais, insumos – para eventualmente propor ações cooperativas entre municípios e estados;
- Garantir o pleno funcionamento do sistema de metrôs, trens regionais e outros sistemas geridos pelos Estados, aplicando a eles as mesmas exigências de cuidado dos profissionais envolvidos, de medidas de higiene de veículos e estações e de monitoramento da lotação dos veículos;
- Manter canais abertos entre municípios, empresas e fornecedores para que a comunicação sobre o funcionamento do transporte público seja objetiva, coerente e transparente.
Finalmente, a participação do setor durante a pandemia enseja ações voltadas a sociedade em geral, tais como:
- Colocar à disposição de outros setores da economia e do Estado a rede de transporte público para a logística de insumos e equipamentos, que podem ser transportados em segurança tanto nos ônibus como no Metro e trens regionais;
- Disponibilizar veículos e motoristas para o transporte de insumos alimentares e de limpeza para as comunidades, assim como, em sentido inverso, contribuir para a distribuição de produtos realizados nas comunidades, como a distribuição de máscaras de proteção produzidas por comunidades de costureiras.
- Utilizar a exemplo de muitos municípios, os próprios veículos de comunicação do setor, sejam eles digitais ou tradicionais, para a comunicação de caráter de saúde pública que emanam das autoridades de saúde.
O setor de transporte público tem raízes em muitas comunidades e regiões periféricas. Muitos dos seus trabalhadores vivem ali e a conhecem em profundidade. Ele pode e deve se somar ao esforço de muitas entidades e profissionais que estão mobilizados para reduzir o impacto da pandemia nas nossas periferias urbanas.
Valeska Peres Pinto - Membro da ANTP e da UITP Latin América Conselho Consultivo da FNA