Nota Técnica: o investimento em Mobilidade Urbana Sustentável é que vai garantir qualidade de vida a Campina Grande, por Wesley Ferro

26/08/2021 18:00 -

O Instituto do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (Instituto MDT) é uma Organização Não Governamental sediada em Brasília/DF, criada no ano de 2003, com atuação em todo o país em defesa da mobilidade urbana sustentável e do transporte público de qualidade.

Ao longo desses 18 anos de existência o Instituto MDT participou diretamente em diversas ações, iniciativas e atividades, podendo ser destacadas: contribuiu efetivamente para a construção da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), que foi instituída por intermédio da Lei Federal  n° 12.587/2012; viabilizou, em conjunto com outra entidade, a introdução da comemoração do “Dia Mundial Sem Carro”, em 22 de setembro, no calendário do país; estabeleceu ação de parceria com várias organizações, como a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), a Frente Nacional de Prefeitos, o Fórum de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana, o Fórum Nacional da Reforma Urbana, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), a Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) e entidades representativas de trabalhadores de transporte, e, também, promoveu a capacitação de grande número de pessoas através da realização do Curso “Mobilidade Urbana Sustentável, Meio Ambiente e Inclusão Social”.

Uma das edições desse Curso foi realizada em Campina Grande, em novembro de 2019, em evento organizado pela Superintendência de Trânsito e Transportes Públicos (STTP) e que contou com a participação de técnicos do órgão, além de outros representantes da sociedade civil. Essa experiência e outras visitas ao município nos permitiram conhecer de perto a realidade local e, além disso, à distância acompanhamos regularmente as questões relacionadas ao tema da mobilidade urbana na cidade.

O Censo Demográfico do IBGE indicou que a população de Campina Grande, em 2010, era composta por 385.213 pessoas. Em 2020 não houve a contagem da população, mas o mesmo Instituto estimou que o número de habitantes no município seria de 411.807. Dessa forma, durante esse período específico, o crescimento populacional na cidade foi da ordem de 6,9%.

Por outro lado, segundo dados do Denatran, em dezembro de 2010 a frota de veículos registrada em Campina Grande era composta por um total de 113.010 e, nesse universo, 48% eram automóveis e 37% eram motocicletas. Quase dez anos depois, em julho de 2020, o mesmo órgão federal indicou que a frota da cidade já tinha atingido um total de 192.746 veículos, o que representou um aumento percentual de impressionantes 70,5% no número do transporte motorizado do município.

Essa discrepância entre o aumento percentual da população e o da frota motorizada não é uma característica exclusiva de Campina Grande, esse quadro se repete na grande maioria das cidades brasileiras e também é ou foi o referencial em vários lugares fora do país. O sistema viário não é ampliado no mesmo ritmo do crescimento da quantidade de veículos, até porque ele é finito, e, assim, o cenário de caos nas cidades se instala e avança com toda força.

Se o aumento expressivo das frotas é uma característica que representa bem a vida urbana nas cidades, o que as diferencia é exatamente a capacidade de resposta do poder público para o enfrentamento desse problema moderno: algumas prefeituras insistem em soluções que até podem resolver os problemas no curto prazo, como o investimento na ampliação de vias e/ou na construção de novos viadutos, mas que se tornam inócuas ao longo do tempo, enquanto que outros municípios fazem a opção por um caminho completamente diferente, apostando em um projeto de mobilidade urbana sustentável que se apoia em políticas de desestímulo ao uso do automóvel, de investimento em modais ativos (circulação a pé ou por bicicleta) e de requalificação e fortalecimento do sistema de transporte público coletivo de passageiros.

Essa alternativa orientada para a revitalização das cidades ganhou um importante aliado no país com a instituição da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), por meio da Lei Federal n° 12.587/2012, que estabeleceu diretrizes importantes como, entre outras: a prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado; a integração entre os modos e serviços de transporte urbano; a priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado e a garantia de sustentabilidade econômica das redes de transporte público coletivo de passageiros, de modo a preservar a continuidade, a universalidade e a modicidade tarifária do serviço.

Campina Grande deu um passo determinante nessa direção quando instituiu, através da Lei Complementar n° 095/2015, o Plano Diretor de Mobilidade Urbana do Município (PLANMOB-CG), incorporando os princípios, objetivos e diretrizes introduzidos três anos antes pela PNMU e acrescentando novos elementos, como a definição de mobilidade urbana sustentável (Artigo 5°, XXXV), a orientação expressa para a criação de medidas de desestímulo à utilização do transporte individual motorizado (Artigo 7°, II) e o estabelecimento da priorização do investimento público destinado à melhoria e expansão do sistema viário para a implantação da rede estruturante de transporte público coletivo (Artigo 7°, XIV).

A repaginação das cidades e a definição de um novo modelo urbano baseado nas pessoas e não nos automóveis passa obrigatoriamente por uma ação mais incisiva do poder público municipal consubstanciada em decisões da gestão de caráter tanto técnica como, principalmente, política, que produzam efetivamente as condições para essa mudança conceitual.

Nesse sentido, destaca-se que a PNMU e o PLANMOB estabeleceram uma série de instrumentos de gestão que poderiam ser adotados pela Prefeitura de Campina Grande para a implementação de uma mobilidade urbana sustentável no município. No caso específico do PLANMOB esses instrumentos estão listados no Artigo 17, sendo, entre outros: implantação de restrição e controle de acesso e circulação de veículos em locais e horários fixados; implantação de espaços exclusivos no sistema viário para o transporte público e modais não motorizados (ativos); política de estacionamento e política de uso e ocupação do solo em sintonia com a mobilidade urbana.

Entretanto, o fato de haver a previsão legal de instrumentos de gestão que possam ser implementados não significa que isso se traduziria necessariamente em ações imediatas que a Prefeitura de Campina viesse a implantar na cidade, até porque as medidas de transformação do modelo de mobilidade urbana produzem reações contrárias e combinadas de diversos segmentos da sociedade, principalmente daqueles que podem se sentir atingidos pelas mudanças quando se fala em desestímulo ao uso do automóvel para priorizar o transporte público e a circulação a pé ou de bicicleta.

Há de se reconhecer que um avanço importante em Campina foi a aprovação da Lei Municipal n° 7.233/2019, que trata da prestação de serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros (o realizado por meio de aplicativos digitais), além da criação do Fundo Municipal de Mobilidade Urbana (FMMU). O transporte por aplicativos ainda nem era tratado como uma modalidade de viagem dentro do PLANMOB e, nesse sentido, o fato dessa lei estabelecer as condições para essa prestação de serviço, sob a responsabilidade da Superintendência de Trânsito e Transportes Pùblicos (STTP), inclusive fixando uma taxa de regulação através da cobrança de um percentual de 1,5% sobre cada viagem iniciada no município (Artigo 3°), se configura acertadamente na adoção de um instrumento de gestão para a compensação pelo uso do sistema viário pelos veículos que atuam nesse serviço e que aumentaram significativamente a produção quilométrica dentro da cidade, impactando o trânsito e aumentando a emissão de poluentes.

A criação do FMMU está expressa no Artigo 20 da Lei, onde se estabelece que ele será um instrumento para garantir o “suporte financeiro às políticas públicas municipais de melhoria da mobilidade urbana, a fim de proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço de forma segura, socialmente inclusiva e sustentável, priorizando a implementação de sistemas de transportes coletivos por meio de investimentos exclusivos para o desenvolvimento de tecnologias e serviços de implantação, sinalização, organização e fiscalização de sistemas de trânsito”.

O Fundo Municipal de Mobilidade Urbana deve ser uma unidade orçamentária autônoma vinculada à STTP, onde todos os recursos financeiros da área devem ser aportados e estar concentrados, não somente aqueles arrecadados com a cobrança da taxa de regulação, mas todos os outros que atualmente já estão sob a competência da Superintendência, além daqueles novos que poderão ser viabilizados com a implementação dos instrumentos de gestão (pedágio urbano; política de estacionamento; valorização imobiliária em decorrência dos sistemas de transporte público; taxação do serviço de cargas, etc.).

Também há uma preocupação com a concepção original expressa na Lei (Artigo 22), quando trata das possibilidades de aplicação dos recursos do FNMU, estabelecendo que devem ser “exclusivamente para as seguintes finalidades”, entre outras: custeio para o desenvolvimento das atividades e realização das vistorias nos veículos dos aplicativos; ações voltadas para o desenvolvimento tecnólogico; aquisição de itens para a gestão do sistema de trânsito e gratificações e premiações para servidores do órgão.

A PNMU e o PLANMOB são muito claros quando externalizam que a mudança de paradigma dentro da mobilidade urbana pressupõe o desestímulo ao uso de automóveis e a priorização dos modais ativos (não motorizados) e do sistema de transporte público. Nesse sentido, o atual modelo proposto para o FNMU dá muita ênfase ao investimento dos recursos em tecnologia e até sinaliza de forma subliminar com a perspectiva de investimento no sistema viário para garantir a fluidez para automóveis e não se concentra naquilo que é efetivamente necessário.

A perspectiva deve ser a de buscar a ampliação das fontes de recursos do Fundo Municipal de Mobilidade Urbana para investir na qualificação de calçadas e na implantação de uma rede pedonal que promova a acessibilidade à cidade e ao sistema de transporte público da cidade; para ampliar a rede cicloviária e estabelecer a sua conexão com o transporte público visando estimular a integração intermodal; para viabilizar a implementação de vias exclusivas para a circulação do transporte público, sejam faixas ou corredores, como a existente na Avenida Floriano Peixoto, que possam garantir o aumento da velocidade operacional dos ônibus e a redução do tempo de viagem dos usuários; para fomentar uma política tarifária que possa reduzir os atuais valores praticados no transporte público em Campina Grande (R$ 3,90 se pago em dinheiro e R$ 3,75 no cartão), promovendo a inclusão social e muito mais.

O fortalecimento do sistema de transporte público deveria estar na agenda prioritária não só da Prefeitura, mas também de toda a sociedade, mesmo daqueles segmentos que acreditam que não possuam nenhum tipo de relação direta com ele. O transporte público tem um papel determinante dentro da cidade e isso ficou evidenciado durante a pandemia com a sua contribuição para a manutenção da vida econômica e dos importantes serviços de saúde. Até a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece o papel dos sistemas de transporte público para a segurança viária e para a manutenção da qualidade do ambiente, uma vez que o seu uso retira veículos das ruas.

Assim como na grande maioria das cidades brasileiras, em Campina o sistema de transporte público vem perdendo passageiros ano após ano e a pandemia só aprofundou essa crise. Esse modelo que baseia o seu financiamento exclusivamente naquilo que é gerado com o produto da receita tarifária não se sustenta há muito tempo, além de ser extremamente perverso com aqueles que dependem do sistema para a realização dos seus deslocamentos. Cidades como Brasília e São Paulo avançaram um pouco no sentido de se resolver esse problema quando optaram por estabelecer uma separação entre a tarifa paga pelo usuário e a tarifa de remuneração dos operadores do transporte público, aportando recursos do tesouro quando a receita com o pagamento das passagens for menor que os custos totais do sistema.

Seguir por um caminho parecido pressupõe que devam existir recursos financeiros para viabilizar o projeto de investimento no sistema de transporte público e nos modais ativos. Sabe-se que os municípios enfrentam sérios problemas com os seus limitados orçamentos e que foram ainda mais impactados com a pandemia, mas há alternativas para seguir em frente e uma delas seria avançar rumo a um diálogo bem transparente com toda a sociedade local, capitaneado pela Prefeitura, mas envolvendo o legislativo, o judiciário, o setor acadêmico, os movimentos sociais, os operadores e os trabalhadores de transporte e, principalmente, os usuários do sistema, para a criação de uma ambiência favorável para o debate e a aprovação de projetos que possam viabilizar novos recursos para o investimento em um modelo de mobilidade urbana sustentável.

É preciso desconstruir os mitos de que somente os usuários são os beneficiários do sistema de transporte público e compreender que a cidade toda se beneficia com a sua operação. Então, essa deveria ser a missão da Prefeitura nesse momento e esse debate precisa começar o mais rápido possível, antes que a cidade possa se transformar em um cenário de caos com a desintegração do sistema. 

Wesley Ferro Nogueira é economista e secretário executivo do Instituto MDT.