O dia depois de amanhã – Olmo Xavier

23/03/2020 12:30 -

Como amanhecerá o mundo depois do surto causado pelo coronavírus? Hoje, é absolutamente imprudente tentar selar qualquer projeção. Contudo, alguns elementos tornam possível vislumbrar como o planeta acordará diferente.

Não se trata de uma visão romântica. O sistema capitalista que determina a linha de ação da grande maioria das nações sempre impôs a prática de que, “quando a farinha é pouca, o meu pirão primeiro” e dessa vez não será diferente. A recessão econômica global é inevitável e só nos resta saber que tamanho terá.

Agora, também é verdade, que fraturas estão sendo expostas e alguma consequência isso tudo há de provocar. É flagrante o despreparo de todos os países no enfrentamento da pandemia, uns mais, outros menos. O fato é que nenhum estava totalmente preparado para um percalço possível e previsível, como a disseminação de um vírus dessa natureza. As profilaxias mais conhecidas até agora mostraram-se insuficientes e evidenciam o quanto estamos fragilizados.

O isolamento da população é um exemplo disso. Apesar de ser uma medida extremamente onerosa às cadeias produtivas e à economia como um todo, tem se mostrado eficaz no combate à disseminação da doença, ao menos nesse primeiro round do combate. Mas como será isso no Brasil?

Dados do IPEA mostram que só na cidade de São Paulo 100 mil pessoas moram nas ruas. Matérias jornalísticas apontaram que embaixo do vão do MASP vivem 60 crianças, algumas com suas famílias. Muitas destas pessoas são trabalhadores informais, que não conseguem custear as despesas de uma moradia digna e nem do transporte nos deslocamentos pendulares (casa-trabalho-casa).

E a situação das favelas, palafitas e lixões? Como se isolar nesses ambientes? Como falar em estocar 10 dias de alimentos para uma legião de pessoas que não conseguem sequer o de comer hoje? Estas são perguntas que já estavam postas antes da crise, e que agora supuram como uma ferida aberta que incomoda inclusive aos que até outrora estavam convenientemente cegos. Como a contaminação dessas pessoas deixou de ser um problema só delas, o sinal amarelo, sem dúvida, está intermitente.

No contexto pós-crise, será fundamental a discussão do modelo que os sistemas de transportes públicos deverão ter no Brasil. Historicamente tratado de forma marginal pelos governos como uma mera necessidade para transportar os mais pobres, os sistemas de ônibus, trens urbanos e metrôs, sempre sofreram com o descaso das gestões públicas. Fica-se com a sensação de que a sociedade já está irremediavelmente acostumada a essa negligência.

Para ilustrar esse raciocínio, pode-se falar a respeito da infraestrutura dedicada ao transporte público no País, fundamental para garantir eficiência e qualidade a esse serviço essencial. A primeira linha do metrô de São Paulo foi inaugurada em 1974. Cento e dez anos depois de Londres, 73 anos depois de Paris e 61 anos depois de Buenos Aires. Hoje, a despeito de sua eficiência, o metrô de São Paulo, conta com uma infraestrutura muito aquém da necessidade dos paulistanos. Quando comparado a sistemas equivalentes de outras megalópoles como Xangai, Nova Iorque ou Madri, sua extensão total de apenas 101,1 quilômetros expõe a timidez com que avançamos neste quesito.

Mas essa não é uma peculiaridade dos sistemas metroviários. As cidades brasileiras que investem em BRT’s e faixas prioritárias para circulação dos ônibus, o fazem de maneira acanhada, muito aquém do que gastam com a expansão do viário para viabilizar loteamentos desgarrados da mancha urbana, altamente dependentes dos modos individuais de transporte e extremamente onerosos para os sistemas de transporte público coletivo.

Para complicar o quadro, via de regra, no Brasil temos muita dificuldade de entregar obras relativamente simples. Uma obra que em outros países duram 24 meses entre o projeto e a inauguração, no Brasil se consome 5 ou 6 anos. Quando inaugurada, já se encontra defasada frente às novas demandas que não se apresentavam no início do projeto.

Em 2019, a Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, Frente Nacional de Prefeitos – FNP e Fórum Nacional de Secretários de Transportes, lançaram um caderno com propostas para o transporte público e a mobilidade urbana sustentável no Brasil, com o premonitório título “Construindo hoje o Amanhã”. Esse documento, que pode ser baixado gratuitamente em PDF (o link segue ao final desse artigo), traz um capítulo com detalhamento de um programa emergencial de qualificação da infraestrutura para o transporte público urbano por ônibus, responsável por 86% dos deslocamentos realizados pelos modos coletivos de mobilidade no País.

O debate a respeito da qualidade dos serviços de transporte público no Brasil também nunca foi posto à mesa com o zelo e a coragem que o tema requer. O que estamos assustadoramente habituados, é debater melhorias na qualidade sem questionar quanto isso custa, terceirizando essa responsabilidade aos reajustes tarifários anuais. Puro engodo!

O transporte público coletivo tem papel estruturante no desenvolvimento das cidades e esta condição o qualifica para receber mais atenção e cuidado. Tem que ser objeto de políticas públicas mais robustas por parte dos entes federativos nas três esferas. É e seguirá sendo o modo de mobilidade mais universal, democrático e acessível à população. O único com condições de conectar todo território urbano com uma tarifa suportável e alterar o modelo de mobilidade iníquo atual, em que abundam acidentes, poluição e imensas perdas econômicas. Imprescindível no enfrentamento da crise pós coronavírus.

A natureza insiste em nos ensinar o quão somos frágeis e débeis. Cabe a nós aprender com a dor e passar a valorizar o “coletivo”.

 

Construindo hoje o Amanhã - https://www.ntu.org.br/novo/upload/Publicacao/Pub636976798711988161.pdf

 

Olmo Xavier

Arquiteto e Urbanista

Especialista em Mobilidade Urbana