Possíveis legados do Covid-19, incluindo o transporte - Frederico Bussinger

20/03/2020 14:00 -

“Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia...”
[Lulu Santos – “Como uma onda”]

 

Por acaso você se lembra de algum caderno natalino, de jornal de grande circulação, desses que fazem balanço do ano e previsões para o seguinte, cogitando para o futuro próximo de algum quadro dramático, de abrangência planetária? Algum especial de TV prognosticando crise de escala da que estamos vivendo, ainda que não fosse gerada por uma pandemia? O surpreendente é que os primeiros infectados pelo Covid-19, os ambulantes do mercado de Wuhan, já haviam sido diagnosticados desde o início de DEZ/2019!

Não se trata de caso singular: ao longo da saga humana muitos outros episódios considerados imprevistos, localizados ou pequenos, acabaram assumindo proporções tais capazes de mudar o rumo da história. Só nesse século tivemos 3; com dinâmicas distintas: o 11/SET (2001) começou pelas instituições, afetou a economia e daí a população; a “crise do sub-prime” (2008) foi iniciada pela economia, afetou as instituições, até chegar à população; o Covid-19 (2020), ao contrário, começou pela população, abalou as instituições, e já está afetando a economia. Todas atingiram em cheio a Europa; mas as duas primeiras nasceram nos EUA e a última na China.

Em algumas semanas, ou poucos meses, certamente os eventos culturais e esportivos serão retomados; o comércio voltará a funcionar; o transporte de passageiros do ABC Paulista, e o internacional, também; e as pessoas deixarão suas quarentenas. Já o PIB de muitos países, incluindo o brasileiro, deverá ser menor este ano, e demorará para voltar aos níveis pré-Covid-19.

Algumas mudanças na nossa vida, na economia e na sociedade serão transitórias. Outras de prazo maior. Mas, como com todos os processos dessa proporção e abrangência, algumas inflexões serão perenes; ou, ao menos, apontarão novos rumos:

A escassez e quarentenas, já começam a discutir analistas, muito provavelmente alterarão a hierarquia e/ou balanços de valores, relações interpessoais e familiares, e arranjos sociais e políticos.

Por outro lado, o protagonismo dos socorristas (não apenas os da saúde) parece estar em alta, vis-à-vis dos marqueteiros; pois a realidade cobra em tempo real! O mesmo de quem faz ante quem fala. Das ações ante as promessas.

Mas será que a solidariedade, que emergiu em pequenos gestos nessa crise, será doravante revalorizada ante o individualismo que parecia uma tendência? O globalismo voltará a abrir espaço em meio ao crescente nacionalismo? O vírus mostrou não respeitar fronteiras!

Pelas medidas governamentais (União, estados e municípios) da última semana, incluindo o “estado de calamidade” até o final deste ano, tem-se a impressão que a agenda político-administrativa brasileira já foi ou será alterada: ante a necessidade de mitigar perdas de rendimentos (ou empregos) dos trabalhadores, suprir necessidades básicas da população e de manter um nível mínimo de atividade econômica, o ajuste fiscal e/ou equilíbrio das contas públicas parece ter passado a segundo plano; e as reformas tributária e administrativa deverão ficar para um pouco mais adiante.

Mas, além das preocupações e dos aprendizados com os cuidados específicos desse período de “guerra”, o Covid-19 também pode deixar marcas perenes no transporte; na mobilidade e logística: a experiência de supermercados, p.ex, antecipando horários de abertura para idosos, pode alavancar, definitivamente, a implantação de escalonamento de horários; ideia/projeto antigo, mas que enfrenta grande resistência em tempos de normalidades.

O grande legado das vicissitudes presentes para esses setores, todavia, deve ser a aceleração do transitar para o mundo digital e virtual: aplicativos, teleconferências, internet das coisas, uso de “big-data” e inteligência artificial, “porto-sem-papel”, deverão se desvencilhar de amarras dos “tempos de paz” e serem irreversivelmente alavancados.

Por que deslocar, p.ex, uma moto de algo como 120 kg, com um motoboy de 80 kg, por 6 ou 10 km, para levar um documento de 50 gramas? Por que fazer um caminhão entrar numa fila, se apenas um QR-code, informado à distância, pode seguir uma fila virtual? Deslocamentos para pedir uma pizza, remédios da farmácia, ou solicitação de serviços; realização de consultas médicas, audiências judiciais podem consumir, desnecessariamente, tempo, energia e, muitas vezes, também adrenalina; além de emitir particulados e gases de efeito estufa. Tudo isso já pode ser feito hoje pelo mundo virtual; mas, com a quarentena forçada, tendem a ter grande impulso; não parece?

Pode ser que, assim, em pouco tempo, ao invés da tradicional segmentação em pessoas, cargas e serviços, o trânsito e o transporte, a mobilidade e a logística, para fins de planejamento, operação e gestão, passem a ser segmentados em massa, energia e informação... como um dos legados do Covid-19. 

Frederico Bussinger é consultor, engenheiro e economista. Pós-graduado em engenharia, administração de empresas, direito da concorrência, e mediação e arbitragem. Foi diretor do Metrô/SP, Departamento Hidroviário (SP) e Codesp. Presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e Confea. Coordenador do GT de Transportes da Política Estadual de Mudanças Climáticas. Presidente do Consad da CET/SP, SPTrans, RFFSA; da CNTU e Comitê de Estadualizações da CBTU. Secretário Municipal de Transportes (SP) e Secretário Executivo do Ministério dos Transportes. Membro do Consad/Emplasa e da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização.