Tempo Perdido, por João Picanço

11/03/2023 08:50 - João Picanço

O tempo – nosso bem mais precioso e efêmero – não pode ser perdido de forma tão irracional em engarrafamentos e deslocamentos desnecessários. Assim, os melhores esforços e conhecimentos devem ser colocados à disposição da melhoria da mobilidade urbana e do uso do espaço urbano em prol desse precioso bem. A partir desse desafio, nos debruçamos sobre a seguinte pergunta: um sistema de bilhetagem eletrônica (SBE) pode melhorar a mobilidade?

Um SBE é responsável por processar os pagamentos do sistema de transporte público. Ele engloba desde a venda de créditos ao usuário, passando pela transmissão e o processamento da informação, até a repartição dos recursos aos operadores. Os dados gerados pelo SBE são de suma importância para o cálculo de uma tarifa justa e o planejamento dos transportes.

Porém, há muitos anos, os SBE de municípios e estados brasileiros enfrentam questionamentos de órgãos de controle – especialmente do Ministério Público – sobre ausência de transparência, carência de condições para uma auditoria confiável, falta de interoperabilidade, falhas de segurança dos dados dos usuários e disponibilização insuficiente de dados ao poder público. Esse diagnóstico indica vulnerabilidade e limitações ao combate às fraudes e à correta gestão financeira das tarifas arrecadadas nos transportes.

Além disso, sistemas de bilhetagem podem influenciar outras políticas de mobilidade. Ao estudarmos benchmarks, observamos que muitas cidades no exterior possuem autoridades metropolitanas de transporte como uma boa prática a ser seguida, como nos casos de Londres, Madri, Hong Kong, Lisboa e Cingapura. No Brasil, essa situação se inverte: simplesmente (ainda) não há autoridade metropolitana de transporte tal como nesses outros locais.

Sem dúvida, o vácuo de governança gerado pela ausência de autoridades metropolitanas de transporte no Brasil resulta em ineficiências geradas pela concorrência predatória entre os modos de transporte, além da subutilização do benefício potencial de integrações física e tarifárias dos modos. Esse cenário muitas vezes tem como resultante um transporte público de baixa qualidade, caro e penoso, especialmente para as pessoas de baixa renda, que levam horas para chegar nos seus locais de trabalho.

Nesse contexto, é consenso que um moderno SBE metropolitano é uma ferramenta valiosa para as autoridades metropolitanas e para o sucesso da gestão da mobilidade urbana. Seja pela centralização da arrecadação dos transportes e viabilização de investimentos e projetos metropolitanos; seja pela disponibilização de dados confiáveis e em tempo real para melhor planejamento das frotas e atendimento das demandas dos passageiros; ou por otimizar o potencial das plataformas de mobilidade como serviço. Por esses motivos, um SBE metropolitano também pode ser visto como uma semente para criação e operação de uma autoridade metropolitana de transporte.

Novamente, ao observar metrópoles internacionais como Cidade do México, Lisboa, Londres, Madri, Hong Kong e Cingapura, destacamos que muitas cidades realizam uma gestão pública do SBE e, portanto, possuem um controle mais direto das bases de dados e da centralização da arrecadação financeira. No Brasil, do mesmo modo, a situação se inverte. A gestão dos SBE nos aspectos de controle das informações e de fluxos financeiros são, geralmente, realizadas por operadores privados. O SBE de Curitiba é um dos poucos casos no Brasil com gestão por entidade pública.

Além disso, conforme citado, os modelos de SBE controlados por operadores privados no Brasil enfrentam críticas de órgãos de controle, em relação à falta de acesso das autoridades e sociedade civil aos dados e controles financeiros. Cabe destacar que esses órgãos de controle vêm desempenhando papel importante para mobilizar a atenção das autoridades em prol de evoluções e melhorias nos modelos de auditoria e de governança dos SBE brasileiros.

A partir desses diagnósticos da realidade dos SBE no Brasil, mostra-se importante a repactuação de responsabilidades, governanças, modelos de custeio e mecanismos de controle e disponibilização de informações entre todos os stakeholders. A falta de padronização tecnológica e a obsolescência de tecnologias nos SBE são barreiras técnicas para o planejamento, a integração e a interoperabilidade dos modos de transporte. Além disso, essas questões sujeitam os sistemas à possibilidade de fraude operacional e tecnológica.

Além do mais, podemos observar que a cada dia fica mais notória no debate público a importância de tarifas com preços acessíveis como alavanca de inclusão social. Mais de 50 cidades brasileiras já praticam tarifa zero e São Paulo, maior metrópole da América, iniciou estudos para avaliar a viabilidade da medida. Os benefícios gerados pela proposta, que permite a ampliação do acesso ao transporte, combate à exclusão social e dinamiza a economia local, vão além, pois contribuem para redução do trânsito, dos acidentes, da poluição e das emissões que aceleram as mudanças do clima.

Mesmo sem tarifa zero, as tarifas pagas pelos usuários normalmente são insuficientes para custear um transporte público de qualidade. Em Paris e Londres as tarifas pagas pelos cidadãos equivalem a cerca de 30% e 50% do custo de operação, respectivamente. O restante é formado por um conjunto de receitas como as provenientes de subsídio estatal. Portugal criou um programa de apoio à redução tarifária, apoiado com recursos oriundos dos combustíveis poluentes. Ela ainda pode exigir a adoção de boas práticas de mobilidade e contrapartidas dos atores locais.

Nesse contexto, a confiança gerada por um SBE pode contribuir para oferecer segurança jurídica aos tomadores de decisão para viabilizar o aporte de subsídios no transporte público e a justa remuneração dos operadores. Tal iniciativa melhora o ambiente de negócios com garantias, estabilidade e previsibilidade, atraindo novos investimentos e atores do mercado, tanto para investir na infraestrutura, quanto para operar os modos de transportes com mais qualidade. A melhoria da mobilidade urbana deve buscar todas as alavancas de valor possíveis e, sem dúvida, um SBE confiável e moderno é base para esses avanços.

Portanto, um SBE é uma ferramenta chave para melhora do transporte público e evitar o desperdício irracional do nosso apreciado tempo. Esse é o caminho da gestão pública com transparência, que transforma um cenário de conflito e desconfiança do setor de transportes em cooperação e relações de ganha-ganha para toda sociedade. Como bem alertou Saint-Exupéry, o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos construindo e um SBE pode ser entendido como um dos pilares básicos ou a porta de entrada para a construção bem-sucedida de uma série de outras estratégias de melhoria da mobilidade urbana e seus benefícios na qualidade de vida das pessoas e para o meio ambiente.

 

João Picanço é mestre em políticas públicas e engenheiro do BNDES*.

*a opinião do autor não reflete necessariamente as opiniões do BNDES.