06/06/2025 07:00 -
Já imaginou se na Constituição fosse determinado que o direito à mobilidade urbana pública fosse pelo uso de automóveis em vez de coletivos públicos? E só esses veículos individuais devidamente regulamentados, como os ônibus hoje, poderiam ser usados? Como seria?
Haveria uma estrutura pública para organizar essa frota. Os carros seriam especificados e fabricados apenas em alguns modelos simples para que o serviço fosse economicamente viável. Seriam comprados em grande número pelos concessionários municipais ou metropolitanos, especificados pelas equipes técnicas dos governos sempre pressionados pelos fabricantes para incorporar novidades, mas que teriam que caber no orçamento e no bolso dos usuários. Nem todos os carros teriam ar-condicionado e outros confortos por causa dessa mesma limitação econômica. A renovação da frota também seria determinada “tecnicamente”, embora nem sempre fosse cumprida. A pintura e acessórios estariam uniformizados de acordo com o município ou estado provedor do serviço. A manutenção e limpeza seriam de responsabilidade das garagens das concessionárias, como hoje com os ônibus
As frotas estariam estacionadas em grandes garagens ou terminais a uma certa distância de cada residência, faculdade ou local de trabalho. Os condutores embarcariam nos seus veículos pela ordem de chegada e no pico haveria uma fila de espera semelhante aos pontos e estações do transporte público de hoje. Teriam que devolver os carros depois do uso diurno e se dirigir para casa a pé. No período da noite, a menos que a sua cidade tivesse uma frota reduzida noturna, não teriam mais acesso a um automóvel e teriam que usar taxis ou outros meios semelhantes caros.
O pagamento seria por tarifa única, podendo ser também quilométrica. Mas, para que todos pudessem utilizar desse meio de mobilidade, teria que haver subsídios públicos por tarifa cruzada, gratuidades, e certamente haveria propostas de “tarifa zero” consideradas inviáveis inclusive pelo aumento do uso da frota limitada!
Esse sistema indispensável para os usuários populares não seria considerado satisfatório, pela falta de conforto e de manutenção, e seria totalmente rejeitado pela população de maior renda, que procuraria utilizar outros meios.
Para eles haveria uma oferta de veículos de luxo coletivos cobrando tarifas livres e certamente inaccessíveis a grande parte dos usuários da frota pública de carros. Seriam fretados e exclusivos e poderiam ser com rotas fixas ou variáveis por demanda.
Os congestionamentos seriam ainda piores que hoje, pois a frota circulante de carros seria semelhante ou maior, enquanto os coletivos luxuosos, pagos para serem confortáveis e abundantes com poucos passageiros e todos sentados, teriam que ser em número muito maior do que os coletivos de hoje! Mas muitos corredores exclusivos seriam construídos para atender melhor essa demanda qualificada, enquanto vagas na rua e estacionamentos seriam combatidos pelo comércio por estarem atrapalhando as faixas exclusivas que representariam então mais compras pelos que viriam nos ônibus!
Outro aspecto: como o poder aquisitivo maior agora estaria usando veículos coletivos, a cidade da renda alta e média não teria garagens e nem o povo dos veículos individuais, que seriam entregues nos destinos e recebidos na origem de cada viagem, como carros de aluguel rápido. Os shoppings não teriam mais estacionamentos e sim terminais de ônibus e os pontos de embarque e desembarque dos carros seriam empurrados para longe, como hoje o são os pontos de coletivos.
O transporte público enfrenta as mesmas dificuldades de todos os outros serviços COLETIVOS PÚBLICOS em uma sociedade muito desigual. Os produtos individuais que fazem parte do mercado não precisam atender a todos, aliás, a maior rentabilidade está nos produtos mais caros, que são divulgados como desejáveis, mas EXCLUSIVOS. A exclusividade ou exclusão de muitos é atributo enfatizado. Incorpora sempre mais e mais sofisticações e modernidades que encarecem o produto e restringem o seu mercado para manter a escassez e aumentar preços que geram mais exclusividade.
Os demais ainda “remediados” seguem a demanda da individualização e compram produtos compensatórios de menor custo que servem para atender uma parte do desejo de serem diferenciados e geram uma “vontade” política solidária com a classe alta que exige os meios para usufruir do que comprou, como estradas, estacionamentos, viadutos e túneis. São a classe média que rejeita o coletivo, mas não alcança o exclusivo.
Moral da história: qualquer solução coletiva perderá no enfrentamento com soluções de mercado que sempre são seletivas e exclusivas em sociedades com forte desigualdade. O que puxa para baixo o transporte coletivo não é seu modo, carro ou ônibus, e sim o poder político de quem o utiliza.
Claudio de Senna Frederico - consultor e Vice-Presidente da ANTP