A saga do ônibus: Discutindo a relação – o operador excluído (3º Capítulo)

04/03/2018 19:00 - Claudio de Senna Frederico

O que querem? Como se sentem e por quê?


Após o segundo capítulo – A limonada suíça – que apontou as consequências da falta de precisão na especificação do serviço de ônibus quando é contratado e, pior ainda, da ausência neste contrato das obrigações da parte responsável pelos mais importantes componentes de um bom serviço – o poder público, vamos aqui discutir a relação do serviço com o passageiro. Afinal, gostem ou não, eles participam com sua presença e suas finanças e também precisam realizar os atos colaborativos necessários e se comportar adequadamente para que o serviço possa ser prestado. Dão também seus votos para eleger aqueles que esperam que resolvam os problemas do serviço de transporte por ônibus em suas cidades.

Para uma boa discussão sobre relações, é sempre importante começar procurando saber o que querem esses passageiros, como se sentem e o que percebem de errado em sua relação com os ônibus. Para responder a essas perguntas precisaremos de dois capítulos de nossa saga, pois a experiência que o serviço proporciona tem duas lógicas. A primeira, que normalmente é mais reconhecida e levada a sério, é o que podemos chamar de parte básica ou essencial da relação, o que se percebe quase que materialmente e pode ser quantificado – e de que trataremos aqui hoje. A segunda parte, objeto do próximo capítulo, é a parte subjetiva e de grande importância na relação a longo prazo e na sobrevivência de qualquer produto ou serviço.

O mais difícil dessa primeira parte não é compreender o conteúdo e a qualidade de cada ingrediente necessário e sim quem é responsável em cada caso para seus decepcionantes resultados. Se não identificarmos com clareza a responsabilidade de cada um, torna-se difícil encontrar uma solução que os estimule a resultados melhores. Podemos adiantar que existem responsabilidades de agentes públicos e privados e até mesmo de indivíduos que utilizam ou não o serviço.

Na linguagem dos usuários do ônibus, a das consequências para eles, podemos começar pela importância da RAPIDEZ DA VIAGEM que, se for atendida, perdoa muitos dos demais defeitos de personalidade na relação. O exemplo disso é o que ocorre no metrô quando a superlotação e outros inconvenientes são trocados pelo pouco tempo necessário a permanecer dentro dele. Esse tempo deve ser dividido entre a parte em que o passageiro já está dentro do ônibus e o tempo em que tem que esperar pelo seu ônibus passar, que seria então a parte da rapidez de NÃO FICAR ESPERANDO MUITO TEMPO NO PONTO. As duas partes dependem quase que exclusivamente da ação pública, que é a única com poderes para segregar espaço nas ruas para o transporte público através de faixas, corredores ou BRT, assegurando uma velocidade média mais alta e uma viagem mais curta, como faz quando constrói um viário próprio para os trens e metrô. O intervalo entre os ônibus de uma linha passando nos pontos também é uma determinação do poder público concedente e começa pelo planejamento da rede para evitar sobreposições e da disposição de arcar com subsídios para que as demandas mais baixas não sejam atendidas com frequências muito baixas mesmo que com ônibus vazios. Novamente lembrando que, antes do início da operação do metrô, o seu Regulamento de Transporte determinou que não poderia haver um intervalo maior do que 15 minutos em suas linhas. Outro aspecto, este não planejado, mas previsível – o desejo de não ficar esperando no ponto tempo demais e nem com grandes variações – decorre da má operação das linhas pelas empresas operadoras somada à mesma falta de vias segregadas e da indisciplina do trânsito com acidentes e estacionamentos irregulares, o que tem de ser controlado pela administração pública. Outro grande responsável por essa irregularidade nas linhas é a superlotação dos ônibus e os embarques e desembarques difíceis que serão abordados depois, ambos novamente de responsabilidade majoritária do poder público.

Mas, para muitos, parte das faltas acima poderia ser tolerada se o CONFORTO fosse respeitado. Começando pelo conforto nos pontos de embarque que, quando muito utilizados, não possuem instalações com capacidade para isso. Muitas linhas param em fila dupla ou passam direto pelo ponto e a multidão se acumula em calçadas insuficientes, quando existem, e lutam para embarcar retardando a viagem e ocasionando mais irregularidade nos intervalos. No outro extremo, pontos de baixo movimento tornam-se simples marcos em locais muitas vezes sem iluminação, drenagem, limpeza e segurança aonde, para piorar, a espera é mais longa e os intervalos os mais incertos.

O conforto da viagem embarcada tem como única característica razoável o número maior de lugares sentados do que os trens, por exemplo. Há mais lugares sentados, mas nas viagens por ônibus isso é essencial pelos solavancos das nossas vias de baixa qualidade, valetas, lombadas, freadas e acelerações. Não me consta que existam modelos de automóvel, primos-irmãos dos ônibus, autorizados a viagens em pé, justamente por estas características de uma viagem rodoviária em vias de tráfego misto. Uma menor lotação dos ônibus, mesmo nas configurações atuais, proporcionaria esse conforto da maioria sentada.

A necessidade de SEGURANÇA, dentro e fora do veículo, se confunde com a importância geral desse tema hoje em todos os locais da cidade e deveria ser prioridade dos órgãos de segurança em função da alta densidade de pessoas que precisam utilizar os serviços de transporte público e que, se não forem especialmente protegidas, se tornarão presas prioritárias das ações criminosas que também têm pensamento de “mercado”. O metrô, que opera em espaço exclusivo, conta com um corpo de segurança que não tem a função de captura ou investigação da polícia e sim de dissuasão, testemunho e de expulsão dos agentes indesejáveis. Mas o transporte por ônibus opera em espaços abertos e públicos e precisa contar com polícia e guarda civil concentrados nas áreas imediatas de suas linhas e nos principais caminhos de acesso dos pedestres. Os ônibus devem utilizar os inúmeros recursos de segurança proporcionados pela nova tecnologia integrados aos seus sistemas operacionais e aos da polícia, bombeiros e saúde. Os passageiros devem ser incluídos em uma malha virtual que os apoie, proteja e encaminhe. O patrimônio representado por suas instalações precisa ser protegido de ações como os incêndios de ônibus, que precisam ser tratados com a importância merecida e não como hoje superficialmente como direito político de manifestação e prejuízo privado. É preciso atentar que cada ônibus pode transportar 400 passageiros por dia, o que equivale a 300 carros de passeio. Tenho certeza de que, se algumas centenas de carros fossem incendiadas todas as semanas no país, a notícia e a ação pública seriam bastante diferentes, sem contar o preço dos seguros.

Como a maioria das viagens ocorre rotineiramente utilizando os mesmos pontos e as mesmas linhas, a falta completa de INFORMAÇÃO com que o usuário convive hoje se torna superável para muitos, e os outros se valem da solidariedade dos que “sabem” e que ensinam. Felizmente os aplicativos em celulares que esclarecem linhas e estimam tempos de espera estão se difundindo e sendo utilizados, e já se tornaram muito importantes. Mas não são suficientes, e é indispensável uma comunicação visual mínima que identifique os pontos e as linhas que passam por eles com, pelo menos, a frequência e os horários limites em que operam. Isto se torna especialmente importante quando, para racionalizar a rede e permitir maiores frequências, muitas viagens não forem mais diretas e os passageiros precisarem trocar de linha em pontos intermediários. Novas soluções serão indispensáveis para que saibam aonde estará o ponto para o qual precisam se dirigir, que dificilmente será ao lado do local de desembarque.

Chegamos ao item final, mas nem por isso o menos importante, que é a chamada “dolorosa”, o PREÇO, quem paga a conta. Não existe transporte de qualidade que seja economicamente viável por receita das tarifas pagas por seus passageiros. Isso precisa ficar claro e ser tratado abertamente para que as soluções que pretendemos para um serviço de ônibus de qualidade sejam viáveis. O transporte mais admirado e desejado, o automóvel particular, é o mais subsidiado de todos e isso é reconhecido internacionalmente. Só que esse subsídio está inteligentemente oculto no espaço viário publicamente pago, mas ocupado para uso de poucos tanto para trafegar quanto para estacionar. Continua nos serviços de segurança necessários para atender roubos e acidentes, nos recursos destinados na saúde pública para atender suas vítimas, muitas delas sequer usuários de carro, e nas consequências nefastas à saúde pública em função da poluição tanto de seus escapamentos quanto do ruído provocado. Mas o maior prejuízo acarretado e não indenizado é a indução da forma que as cidades assumem para serem mais convenientes à sua forma de mobilidade, com a dispersão de baixa densidade, o aumento dos percursos e a segregação econômica que acarreta a perda de solidariedade e agrava a violência. Parte do custo adicional necessário a proporcionar as qualidades aqui apontadas ao serviço de ônibus deve vir do aumento da eficiência que só o poder público pode providenciar pela reorganização do serviço e a adequação do espaço separado nas vias para maiores velocidades, mas isso não será suficiente e fontes alternativas de receita precisam ser providenciadas que sejam estáveis e confiáveis para serem adicionadas à receita paga pelos passageiros a preços adequados a sua renda e à atração de novos.

O que fica claro na nossa proposta que chamamos de SOPA – Serviço de Ônibus Padrão – é que as exigências contratuais técnicas precisam existir, mas o que permite ao tal Operador Oculto, o passageiro, participar com suas experiências, atitudes e comportamentos é um código de qualidade palpável e compreensível que fale a sua linguagem. Não adianta que os ônibus realizem as partidas previstas no contrato lá nos terminais, se os passageiros ficam esperando nos milhares de pontos por tempo demais e intervalos variáveis. Todos os responsáveis precisam estar com suas contribuições à qualidade do serviço incluídas e especificadas.

Quando todos esses defeitos forem corrigidos, teremos automaticamente uma “boa relação”, voltará a “família” a uma vida “doméstica” atraente? As relações e as satisfações não funcionam com essa simplicidade. Como veremos no próximo capítulo que encerra a discussão da relação nenhum produto vitorioso e desejado foi criado apenas atendendo necessidades e resolvendo problemas já identificados. Mas, sem essas qualidades básicas aqui explicitadas e que devem ser reconhecidas pelos passageiros não há boa relação possível e o primeiro “rabo de saia, ou de calça, ou de pneu” que passar provocará o desequilíbrio que hoje vivemos na nossa saga. A última pergunta “Qual a estratégia correta: atender ou se antecipar e surpreender?” também ficará para o capitulo 4.


No próximo capítulo:

Utilidade e Desejo

Somos úteis, mas por que não somos desejados? Estereótipos, Discriminação e Preconceito. O que são? Como consertar a relação? O que está faltando? Qual a estratégia correta: atender ou se antecipar e surpreender?


Claudio de Senna Frederico - consultor e membro do conselho diretor da ANTP, além de Vice-presidente.