Automóvel e cidade

08/12/2016 16:30 - ANTP





“... Em meio ao movimento intenso da Interlagos, com sete prédios de um lado e um centro de compras do outro, as situações de risco se repetem - desta vez, com um senhor de bengala e uma criança que faziam a travessia na tarde desta quarta em meio ao semáforo aberto para carros”.

Matéria da Folha de SP desta quinta-feira (8), com base em dados do Infomapa, descreve o que seria, segundo o jornal, os principais motivos para que a Avenida Interlagos , no extremo sul da capital paulista, despontasse como a líder em mortes no trânsito nos últimos meses. O título da matéria já sugere quais seriam as explicações que teriam motivado os altos índices de acidentalidade: “Sinalização, condutores e pedestres falham em via líder em acidentes fatais”.

Matérias dessa natureza buscam desde sempre explicações no inexplicável. É reducionismo avaliar o problema da insegurança viária apenas buscando explicações nos fatores afetos à engenharia de tráfego e ao comportamento de condutores e pedestres. Há algo anterior que condiciona e delimita análises dessa natureza: a maneira como a cidade está disposta e como ela foi planejada (não ter planejamento é uma forma de des-construir cidades).

No mesmo jornal, poucas páginas adiante, a Folha conta um pouco a história da Avenida Paulista, e de como essa artéria sofreu radicais transformações ao longo de seus 125 anos. Enquanto em 1891 a avenida era ocupada por bondes a tração animal, charretes e cavalos, 85 anos depois (1976) ela era “alargada para dar mais espaço para os automóveis”, descreve a matéria assinada pelo jornalista Raul Juste Lores. 

Uma cidade que se adequa ao modo de transporte individual motorizado produz, como consequência natural e óbvia, uma série de efeitos colaterais, sendo os mais visíveis os que hoje engrossam as graves estatísticas de mortos e feridos, descritos de maneira pueril pelo nome de “acidente”. Os “acidentes” de trânsito seriam, portanto, algo casual, fortuito, imprevisto, como ensina qualquer dicionário da língua portuguesa; e desta forma foram sempre justificados (e pior, aceitos) como danos colaterais do “progresso”, outra palavra que remete ao inevitável, ao irrefreável, algo determinado e impossível de ser detido (afinal toda cidade precisa progredir).

Foram necessários anos de tragédias no trânsito, somados a outros graves danos colaterais provocados pelo automóvel nas cidades, como a questão ambiental e a saúde pública, para que um movimento de questionamento desse modelo de cidade começasse a ganhar corpo. Hoje o automóvel tornou-se um grave problema urbano, bem diferente da forma como sua imagem foi construída em décadas, como solução ideal e moderna para a mobilidade nas cidades. Esse discurso não apenas sustentou sua imposição, como, por incrível que possa parecer, até hoje é usado para justificar sua prioridade no planejamento urbano das cidades brasileiras.

O questionamento do uso do automóvel como modo de transporte ganhou nos últimos anos uma faceta mais visível e, por que não dizer, mais humana: a destruição de espaços públicos de convivência. Como já apontava Jane Jacobs no livro “Morte e vida de grandes cidades”, a hegemonia dos automóveis provoca erosão urbana. A expansão do viário urbano para permitir a introdução contínua de mais e mais automóveis destruiu árvores, rios, calçadas, praças e parques. No caso da Avenida Paulista a matéria da Folha conta que jardins e marquises de prédios foram  destruídos...

Foi preciso o apocalipse anunciado do aquecimento global para que as pessoas finalmente se dessem conta do suicídio que todos estávamos patrocinando sob o falso argumento da “mobilidade e progresso”. Graças ao excesso de carros temos hoje cidades economicamente inviáveis e com baixíssima mobilidade. Temos cidades doentes, inóspitas, segregadas.

Numa cidade torta, onde o automóvel é o rei, cenas de violência e exclusão serão comuns, por mais trágicas que sejam. O que não se pode admitir como comum e natural é a imputação da culpa do atropelamento ao pedestre, nem a aceitação do “acidente” de trânsito como algo casual e imprevisto.

Para refletir:

Pesquisa realizada pela Liberty Seguros com mais de mil pessoas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Curitiba e Belo Horizonte, observou que:

O TRANSPORTE PÚBLICO é o modelo ideal para 2/3 dos entrevistados.

Os principais motivos são: causa menos trânsito, é mais rápido e menos poluente..

75% das pessoas, acima de 31 anos, acreditam no transporte público como ideal para sua cidade.

O uso de bicicletas cresceu entre as classes B e C1.

63% dos ciclistas já acreditam usar o meio de transporte ideal para as futuras gerações.

A conclusão é óbvia: um novo modelo de cidade já existe na percepção dos brasileiros. Cabe agora ao gestor público transformar isso em realidade. A primeira, urgente e necessária definição é trocar a prioridade do automóvel pela primazia do direito do cidadão de se encontrar em sua cidade.