Cuidado com os humanos

13/11/2017 10:30 - ANTP


Steve Choi, um jovem e sorridente engenheiro responsável pelos projetos de carros autônomos na Uber, garante com segurança que estas engenhocas se tornarão realidade muito em breve.

Entrevistado pelo jornal Folha de SP na edição de sábado (11), ele, no entanto, sai do campo da tecnologia para o campo da realidade dos humanos quando se vê diante da incômoda pergunta da repórter: “Qual é o grande desafio para os carros autônomos operarem nas cidades?”

Choi responde: “Pessoas que não seguem as leis de trânsito”, para completar candidamente: “se as pessoas seguissem as regras, então só precisaria ensinar as regras à máquina”.

Eis o busílis: as pessoas! Quem poderia imaginar que toda a tecnologia, voltada para melhorar a vida dos seres humanos, teria que enfrentar como principal obstáculo justamente... os próprios seres humanos?

Jornalistas do The New York Times haviam detectado esse problema quando escreveram há alguns anos que um dos maiores desafios que os carros automatizados enfrentariam seria “como integrá-los a um mundo no qual os seres humanos não seguem as regras”.

O carro dito autônomo foi programado para seguir em detalhe as leis do trânsito. Chegou-se então a uma encruzilhada: como circular pela cidade se você (a máquina) respeita minuciosamente as regras enquanto os demais (“eles”,os humanos) não o fazem?

Nesta semana um micro-ônibus autônomo, em seu primeiro dia de operação em Las Vegas, sofreu uma colisão frontal logo em suas primeiras horas de estreia. Por culpa de um erro de um motorista humano, que não viu por onde trafegava, segundo testemunhas.

O comunicado da Prefeitura esclareceu o ocorrido, ao afirmar que o veículo autônomo “fez o que deveria fazer e parou, mas infelizmente o elemento humano, o motorista do caminhão, não parou e se chocou contra a parte frontal do ônibus”. O comunicado completa: “Se o caminhão estivesse equipado com os sensores do ônibus, o acidente teria sido evitado”.

Os humanos vêm não só provocando milhares de mortes e acidentes no trânsito das cidades e estradas, como vêm poluindo o planeta. Como o alegre engenheiro do Uber, Steve Choi, podemos sonhar com veículos autônomos que zerem os acidentes, ao eliminar os humanos da direção; e também podemos, como ele, imaginar que as indústrias irão, a partir de hoje, desenvolver diferentes plataformas de carros, com hidrogênio, eletricidade e até energia solar, que sejam.

Na verdade, o Uber pode eliminar os motoristas de seus carros, e desta forma deixar de ter problemas como o que enfrenta atualmente com a Justiça do Reino Unido, onde esta semana uma decisão de um Tribunal londrino reafirmou um veredito dado no ano passado que garantiu salário mínimo e férias remuneradas a motoristas do aplicativo. Ou seja, a corte rejeitou os argumentos da empresa americana de que os motoristas que dirigem pelo aplicativo de transporte individual são autônomos.

Ora, se os veículos serão todos autoguiados no futuro, o Uber deixará de ter problemas com a Justiça, de Londres e alhures, além de reduzir enormemente seus custos operacionais. Portanto, antes de tecnologia, a ausência de motorista é um grande negócio. No caso inglês resta ao Uber, no entanto, resolver outra questão: convencer a Transport  for London a renovar sua licença de operação na cidade, caçada no mês passado.

Mas voltemos aos autônomos, os veículos. Mesmo que tudo isso se torne realidade num horizonte de décadas, restará ainda um detalhe complexo: por onde rodarão estas máquinas, afinal carros precisam de ruas para se locomover. E ainda não inventaram o carro autônomo elástico, tampouco o carro autônomo invisível.

Deixemos então as máquinas, e retornemos aos humanos.

Nesta semana um levantamento feito pela Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes (SMMT) de São Paulo constatou que apenas 5,5% dos mais de 8,5 milhões de veículos que compõem a frota da cidade de São Paulo receberam 60,3% das 6,5 milhões de multas de trânsito aplicadas em 2017. E que 75% dos veículos licenciados na cidade não receberam sequer uma multa neste ano.

Ailton Brasiliense, atual presidente da ANTP, e que em 1991 presidiu a CET, fez o mesmo levantamento na época. E chegou praticamente aos mesmos percentuais: 75% não havia cometido infração alguma; 15% cometeram apenas uma infração; 5% cometeram entre 2 e 5 multas. Daí em diante, ele conta, tinha-se uma curva exponencial, onde cada vez menos condutores acumulavam mais infrações. Exatamente como visto no levantamento feito agora, quase 26 anos depois.

Resumo da ópera: os infratores no trânsito estão concentrados em pequenos grupos, justamente os responsáveis por alimentar a famigerada indústria da infração. Punição, muito mais que educação, teria um efeito muito maior e com resultados muito mais diretos do que se poderia imaginar.

Voltemos agora aos futurólogos.

Toda tecnologia é vibrante, e sonhar com o futuro emociona. Mas a mobilidade de uma cidade é composta de vários fatores, e os modos individuais de locomoção, convenhamos, contribuem com uma parcela muito pequena para a solução do transporte de todas as pessoas.



Outra questão que é preciso ser observada: em todas as grandes cidades onde se experimentam experiências com veículos autônomos há grandes sistemas de transportes coletivos instalados e em expansão. O caso de Londres é exemplar: em breve (no fim de 2018) será inaugurada a Elizabeth Line, com trens com 200 metros de comprimento e conexão gratuita de Wi-Fi, com capacidade de transportar até 1.500 pessoas. Os trens da Elizabeth Line irão parar em 40 estações, sendo que dessas, 10 serão novas, e 30 serão aprimoradas.

Curiosamente, Londres é o segundo maior mercado do Uber no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Um bom exemplo de veículo automatizado está nos trens da Linha 4-Amarela. Transportam milhares de pessoas por dia, e sem “motorista”. Com a enorme vantagem de depender muito pouco (ou quase nada) de erros humanos.

Precisamos, por fim, menos da futurologia e mais da “presentologia”.

Se não nos preocupamos em resolver nosso enorme déficit de mobilidade – o que depende de enormes investimentos em transporte de massa - temos tudo para continuar a justificar o velho aforismo de Millôr Fernandes: “Brasil, país do futuro. Sempre”.