De que cidade queremos para qual trânsito é necessário

17/01/2017 12:00 - ANTP


No momento em que o Projeto de Lei 8085/14, em discussão na Câmara dos Deputados, abre o debate para a sociedade sobre alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a ANTP dá mais uma vez sua contribuição começando por ponderar algumas questões que julgamos importantes. Antes disso, no mês de dezembro, já tínhamos participado ativamente da organização em São Paulo da audiência pública sobre a revisão do CTB, que reuniu perto de 200 pessoas, e 25 entidades de diversas áreas.

O Código de Trânsito Brasileiro significou um grande avanço nas questões atinentes ao uso das vias públicas. Mais que isso, o CTB humanizou o tema do trânsito, ao definir a segurança do cidadão como um direito de todos e um dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito. A preservação da vida como centro das atenções do código traz um significado vital ao CTB, na medida em que abriu as portas (e definiu a exigência) para que as autoridades do setor tomassem medidas para alcançar tal fim.

Passados quase vinte anos de sua promulgação o CTB, como qualquer conjunto de normas e regras que trata de questões humanas, precisa refletir os novos tempos, os novos avanços sociais, as novas visões de cidade. E as novas realidades quanto a sua eficácia.

Evidente que não se pode esperar que um conjunto de normas, por si só, consiga atingir resultados importantes sem a obrigatória participação da sociedade. Como qualquer regramento, ele depende de uma série de complementos, dentre os quais a fiscalização e a educação. E a participação.

Um código, de per si, não consegue mudar comportamentos. Nem é disso que dele se espera. Antes, porém, ele deve pressupor que ações para tal fim serão realizadas em outras frentes, com o objetivo de produzir uma absorção social que diminua a necessidade da fiscalização punitiva como único fator de convencimento humano.

Passados 20 anos algumas questões nos indicam que o CTB precisa ser revisto. Em primeiro lugar quando verificamos que o objetivo maior da preservação da vida – a segurança do cidadão como um direito da sociedade – não foi alcançado. Passadas duas décadas o que presenciamos foi um crescimento exponencial da frota de automóveis e de motocicletas seguido por um aumento significativo nas mortes e sequelas provocadas pela desobediência aos mais comezinhos artigos do CTB. No caso das motocicletas, e eis a novidade que reclama ação, o índice de mortes cresceu numa dimensão muito maior em relação a outros tipos de ocorrências.

Se em sua elaboração o CTB refletiu o caráter da nova Constituição de 1988 (conhecida como Constituição Cidadã), qual ideário ele deveria refletir hoje?

Nesses 20 anos muitas questões ganharam proeminência, e deveriam colorir um novo CTB, como a questão ambiental e de segurança veicular; o trânsito como uma grave questão de saúde pública; o direito ao uso da cidade, as novas tecnologias que auxiliam na locomoção e na compreensão da cidade.

Se falhamos em garantir o direito à vida, quais complementos deveriam se vincular ao Código para torná-lo mais realista e menos uma peça de ficção?

Como garantir que os cidadãos o incorporem como uma ampla regra de conduta, ao invés de enxergá-lo como um instrumento criado principalmente para aumentar as receitas públicas através do que se convencionou chamar de maneira popularesca como uma “indústria de multas”? Só este fato demonstra a rejeição dos cidadãos que dirigem pelas ruas e estradas a regras que coíbam ações temerárias ao volante. Logo, se não é aceito, menos ainda respeitado, cabe ao Estado o absurdo papel de funcionar 24 horas como uma babá do comportamento humano. O que, bem o sabemos, inexiste até mesmo nas sociedades mais ricas.

Parece-nos claro que é importante que a revisão do CTB consiga espelhar essas duas realidades: de um lado produzir normas que reflitam uma maior segurança para as pessoas, preservando a vida e integrando assim o dia-a-dia de uma cidade humanizada; e de outro permitindo uma ampla participação social que lhe garanta uma coloração de lei necessária à vida, jamais de uma lei contrária ao cidadão.

É comum ouvirmos que falta comunicação, ou até mesmo que é preciso educação. Na verdade toda e qualquer ação em defesa da vida deveria partir do meio social como uma exigência ao poder público: os direitos do cidadão devem pautar e exigir deveres do Estado, e não o contrário. Do jeito que está hoje o CTB se mostra como um direito unilateral do Estado em punir, contra o direito do cidadão de trafegar, se defender, até mesmo de questionar.

Enfrentar essa dubiedade é essencial. Sem isso, qualquer revisão do CTB, por mais profunda e antenada aos novos tempos que seja, será um furo n’água. Assim, fica evidente que duas questões se somam numa tarefa única: de um lado a revisão do CTB em si – respondendo a muitas questões que nestes 20 anos surgiram como desafio à segurança do cidadão e à vida em comunidade; e de outro uma ação permanente de advocacy, um lobby cívico em prol do interesse social, para que sua revisão seja entendida e compreendida pela maioria da sociedade como algo necessário e essencial à vida.

Para tanto será sempre necessário reunir não apenas técnicos e especialistas no tema, mas principalmente lideranças sociais que reforcem as principais linhas de ação de qualquer mudança no trânsito no país. Os técnicos pensam de dentro para fora. As lideranças fazem o caminho inverso: pensam de fora para dentro, de qual cidade queremos para qual trânsito é necessário.