Efemérides do trânsito: como ir além?

18/09/2017 14:40 - ANTP


Estamos nos acostumando às efemérides do trânsito. A Semana Nacional de Trânsito (prevista na Lei 9503, de setembro de 1997) é um momento em que se promovem ações que, com a elogiosa intenção de alertar a sociedade para os graves problemas de (in)segurança viária, acaba de outra forma produzindo um forte contraste com nossa baixa capacidade de produzir bons resultados.

Mais que alertar a sociedade, missão fundamental, as campanhas oficiais acabam desnudando nossa incapacidade atávica de produzir ações duradouras e profundas.

Os dados estão aí para demonstrar esta dura realidade.

Se antes estas ações guardavam um leve sabor de rebeldia social, promovidas muitas vezes por organizações sem vínculos com o poder executivo, de uns tempos para cá elas vêm sendo assumidas por prefeituras e governos com o mesmo ardor e afinco.

Isso é bom, afinal o discurso oficial obtém um maior alcance, não só pela facilidade de aceso aos cidadãos e aos meios de comunicação, como pela capacidade que o setor público tem de atrair capital privado de apoio.

No entanto, muitas das campanhas têm corrido o risco de se tornar apenas campanhas. Duram o período das comemorações, dão um recado correto e saem de cena da mesma maneira que entraram.

Basta um olhar crítico para o restante do ano para perceber a distância abissal entre a prática e as ações deflagradas em momentos específicos. Entre os dados e as estatísticas de mortes e feridos no trânsito antes e depois. Os ônibus continuam rodando sem prioridade nas ruas, os automóveis de passeio continuam poluindo, os congestionamentos seguem sendo tratados apenas e tão somente como um problema de tráfego, e os atropelamentos de pedestres são aceitos como tragédias cotidianas, efeito colateral do progresso humano.

O jornalista Leão Serva, em artigo na edição online da Folha de SP desta segunda-feira, cita nossa incapacidade de produzir ações relevantes quanto aos efeitos negativos causados pelo trânsito, e afirma que nossas autoridades da área são incapazes de impor soluções: “ou são coniventes com a mortandade ou não têm peso político para abrir os olhos da sociedade e dos administradores eleitos. Basta ver que em São Paulo, na última eleição, três dos candidatos mais fortes a prefeito atacavam a "indústria da multa" (uma ficção histérica criada por quem não quer ver a indústria de cadáveres) e defendiam o aumento dos limites de velocidade nas ruas”.

Usando como gancho a recente presença do especialista espanhol Pere Navarro no Brasil, o jornalista mostra o exemplo da Espanha: “Nossos hermanos europeus tinham metade das vítimas fatais de nosso trânsito há cerca de dez anos, aproximadamente 4,6 mil mortos/ano para 46 milhões de habitantes; nós temos 40 mil vítimas fatais para 200 milhões de habitantes. São 2 mortos para cada 10 mil habitantes (lá era a metade). Depois de assumir que isso era inaceitável, o país reduziu esse número em 60% em uma década, e agora estão com 1,6 mil/ano (3 para cada 100 mil habitantes). E nós, como na divertida publicidade do rúgbi, estamos estáveis, disputando a rabeira do mundo em segurança viária (ou a liderança em carnificina)”.

O curioso é que esta não é a primeira vez que Pere Navarro vem ao Brasil contar sua experiência, seja presencialmente, seja através de entrevista feita por telefone. Em junho de 2011, ainda na condição de diretor-geral de trânsito da Espanha, Pere foi entrevistado pelo jornalista Alencar Izidoro, da Folha de SP, e disse essencialmente as mesmas coisas que repisou nesta sua recente visita.

Em outubro de 2015 ele veio ao Brasil para participar de seminário promovido pela ANTP, “Cidades a Pé”, onde, novamente, repetiu as mesmas coisas que, bem o sabemos, nossos técnicos conhecem de cor e salteado. Pere inclusive contribuiu para o Caderno Técnico que resultou do evento, realizado com apoio do Banco Mundial, com o artigo “Por mobilidade urbana sustentável e segura”. Neste artigo (que pode ser lido aqui) Pere vai além da segurança viária e cita outro fator essencial que, como sabemos, vem sendo ignorado por nossas autoridades, a questão ambiental:

“A maior sensibilidade ao meio ambiente e a constatação de que 40% das emissões de CO2 são ocasionadas por circulação motorizada, nos tem permitido escalonar um conjunto de práticas relativas a estas mudanças, denominado de ‘mobilidade sustentável’”.

Nossos eventos e seminários sobre o grave problema do mau uso do automóvel nas cidades continuam restritos a quem já conhece a fundo não apenas o diagnóstico, como suas soluções. Estamos girando em círculos, repetindo os mesmos discursos para quem não precisa mais ouvi-los.

Ao contrário do que Leão Serva ironicamente sugere, a solução não está em trazer um espanhol para ser nosso ministro de trânsito. Nem convidar especialistas estrangeiros, a intervalos regulares, para repetir o que já ouvimos e já sabemos. O desafio está em permitir que a sociedade conheça não apenas as principais causas da violência do trânsito, mas principalmente apoie de maneira participativa no equacionamento e implementação das medidas necessárias para reduzi-la a índices civilizados.

Como disse Pere Navarro em sua última vinda ao Brasil, em entrevista ao jornalista Fabricio Lobel, da Folha de SP:

“Há de se ter um discurso compreensível, razoável, que os cidadãos entendam, mostrando que os acidentes de trânsito são evitáveis. Ou dizendo: vamos priorizar a segurança viária, sobre qualquer outra questão do trânsito. Ou ainda que não há soluções milagrosas. O que devemos fazer são medidas coerentes ao longo do tempo. Mas insisto, não se pode politizar. Esse é um problema de Estado, não de esquerda nem de direita. As soluções técnicas, as estratégias, ou seja, o que tem que ser feito está claro. Mas para viabilizar essas medidas, deve-se buscar um consenso político”.