O futuro das cidades

18/06/2018 20:30 - Maria da Glória Gohn


Este artigo é fruto de minha participação em uma conferência ocorrida em Julho de 1999 em Xangai, China, sobre o "O Futuro das Cidades". Ele tem um duplo objetivo: delinear o cenário das cidades num futuro próximo e sistematizar algumas propostas de encaminhamento de seus problemas via a participação da sociedade civil.

Uma primeira indagação a ser feita é: o século XXI significa o fim das cidades ou o século das cidades? Segundo projeção da ONU, em 2025 teremos 61% da população mundial vivendo em cidades. Em 1975 este índice era de 37%. Das 21 maiores metrópoles do mundo 14 estão em países subdesenvolvidos. Esse percentual deverá aumentar 89% em 2025. Ou seja, as projeções indicam uma multiplicação das grandes cidades nas regiões pobres, num cenário radicalmente diferente de 50 anos atrás quando apenas 100 aglomerações urbanas tinham mais de 1 milhão de habitantes, e a maioria delas localizava-se em países ricos. Ainda segundo a ONU, em 2025 haverá 527 grandes cidades sendo 2/3 delas localizadas nos países menos desenvolvidos.

Os dados e projeções indicam, portanto, que o ritmo de urbanização continuará forte no início do milênio. A urbanização acelerada dos países pobres fará a população das cidades superar a do campo pela primeira vez na história por volta de 2006. A China tem hoje 1 bilhão e 270 milhões. Em 2025 deverá ter 1 bilhão e 600 milhões de habitantes. A Índia já deverá atingir a cifra de 1 bilhão no ano 2000.

Na América Latina, Ásia e África o número de moradores usuários vivendo em pobreza absoluta cresceu nos anos 80 e 90. A conferência promovida pela ONU em 1996 – Habitat – demostrou o contínuo agravamento da situação dada a globalização, o desemprego, a desigualdade e a exclusão social. A desigualdade entre as próprias cidades é outro ponto enfocado A renda média domiciliar das cidades dos países industrializados é 38 vezes maior do que a cidades africanas. Há mais telefones em Tóquio que em toda a África (que tem 749 milhões de habitantes). A situação torna-se mais dramática quando olhamos para a crise dos Estados e o reordenamento de suas políticas. Ele perdeu ou transferiu o poder de investimento em infra-estrutura de serviços sociais. Como resultado, para uma parcela crescente da população a vida urbana passou a ser sinônimo de desemprego, miséria, violência, favelas, congestionamento, poluição, etc. O processo de urbanização acelerada no mundo está fazendo surgir arquipélagos formado pelas ilhas de modernidade e bem-estar, cercados por um oceano de exclusão, cidades onde impera a miséria. São as cidades globais.

Cidades Globais são aquelas que concentram perícia e conhecimento em serviços ligados a globalização, independentemente do tamanho de sua população. Para avaliar se uma cidade é global, considera-se: o número de escritórios das principais empresas (em contabilidade, consultoria, publicidade e banco e consultorias) a sua rede financeira/bancária, de telecomunicações etc. As cidades globais são vetores importantes da globalização. Elas são sede de poder e por meio delas que a economia global é administrada, coordenada e planejada. Elas formam uma rede onde transitam os trilhões que alimentam os mercados financeiros internacionais. Elas formam também uma teia que dissemina serviços especializados para a indústria e para o comércio, concentram as estruturas de comando das 37 mil empresas transnacionais atualmente existentes.

Estudos recentes registram 55 cidades globais no mundo. O tamanho tem um pouco a ver com o nível de desenvolvimento da cidade. Zurique, na Suíça, é uma cidade global, enquanto Lagos, na Nigéria, com uma população 10 vezes maior não é. As projeções indicam que Lagos deverá ser a terceira maior cidade do mundo em 2015, mas atualmente sua renda per capita é de apenas 68 dólares. Nas cidades globais desenvolvem-se dois tipos de grupos sociais opostos: um composto por mão de obra extremamente qualificado para executar serviços financeiros, legais, técnicos, de consultoria; e outro, composto por trabalhadores pouco qualificados, para os serviços de limpeza e manutenção. Com renda salarial baixa, estes últimos vão morar nas periferias e subúrbios, num contexto de enormes desigualdades sociais.

Megacidade é outra categoria dos estudos urbanos. As megacidades são áreas urbanas com mais de 10 milhões de habitantes. Elas diferem das cidades globais porque não concentram poder (que é o que caracteriza as cidades globais). Ao contrário, a maioria das megacidades concentram pobreza e problemas. Com renda pequena essas cidades arrecadam pouco em impostos, investem pouco em infra-estrutura e saneamento; aumentando os problemas ambientais e as questões sociais, principalmente saúde, educação e segurança. Os índices de violência tendem a ser crescentes.

Algumas cidades são megacidades e cidades globais, simultaneamente. Nova York, por exemplo, uma das três principais cidades globais na atualidade tem uma renda per capita de 12mil e 420 dólares. São Paulo também é uma cidade global e uma megacidade. Segundo a ONU, as megacidades vão mudar de endereço. Em 1996 elas totalizavam 16 cidades e em 2025 serão 25.

As cidades médias são outra categoria de classificação das cidades, com população entre 50 mil a 800 mil habitantes. Abaixo de 50 mil são as pequenas cidades, ideal utópico de moradia feliz no imaginário de milhares de pessoas. Além de cidades globais, megalópoles, metrópoles, cidades médias e pequenas cidades temos também a categoria dos pólos regionais de aglomerações urbanas. Eles se caracterizam pela aglomeração de pessoas e atividades econômicas numa mesma área, composta de várias cidades que formam uma malha com fluxo de trocas intensas entre si. Pessoas moram num local, trabalham ou estudam em outro etc.

No Brasil ocorreu um dos mais rápidos processos de urbanização do mundo: em 1940 as cidades abrigavam 46% da população do país; em 1975 esse índice já era de 61%; e em 1991 era 75%! Atualmente o índice estimado é de 80% e em 20225 deverá ser de 88%. São Paulo é hoje a 3ª cidade no mundo em termo de população. 90% de tudo o que é produzido no país vêm das industrias concentradas nas cidades. 35,4% da população brasileira vive em 15 metrópoles (abrangendo 204 municípios). Dos 42 milhões de pobres do país, 29% vivem nessas metrópoles. Existe ainda 400 cidades de porte médio onde vivem 29% da população do país. Pesquisas recentes indicam que a urbanização tomou novos rumos nos anos 90. Houve uma interiorização do crescimento: a população das cidades médias tem crescido muito mais rapidamente, em termos absolutos, do que as grandes metrópoles. As pequenas cidades apresentam saldos migratórios negativos, expulsam mais do que recebem novos moradores. A explicação mais plausível para o fenômeno da interiorização é a crise econômica e a terceirização da economia das metrópoles. São Paulo, por exemplo, registrou um crescimento de apenas 2% entre 1991 e 1996, mas Guarulhos cresceu 23,4% no mesmo período. A tendência nos próximos anos será a continuidade do processo de interiorização e espraiamento da população.

OS PROBLEMAS NO PLANEJAMENTO E GESTÃO DAS CIDADES NO FUTURO

A formação de consórcios tem sido uma saída para administrar cidades que polarizam a vida econômica de uma região, com vários municípios gravitando ao seu redor. A região de Campinas-ESP, por exemplo, composta por 87 cidades ou núcleos, tem tido taxas de crescimento superiores à média do país: ela recebeu 173 mil imigrantes entre 1991-96. Ela é um dos pólos preferidos para os investimentos econômicos, mas essa importância gera também a perda da qualidade de vida com mais: trânsito, poluição, problemas de segurança etc. Ela atrai migrantes que não conseguem colocação devido a crise econômica e a alta tecnologia necessária em seu parque industrial. A grande inter-relação com Sumaré, Monte Mor, Indaiatuba, Hortolândia, Mogi Mirim etc. gera outro problema- a diluição entre áreas urbanas e rurais. Várias áreas rurais e semiurbanas da região de Campinas têm sido objeto de ocupação por acampamentos do MST, gerando-se inúmeros conflitos sociais.

Segundo os planejadores urbanos, num futuro breve as cidades globais desenvolvidas continuarão a concentrar as sedes das multinacionais e grande parte do dinheiro que gira pelo mundo. Mas continuarão a sofrer com: poluição, congestionamento e violência- ponto comum nos prognósticos dos urbanistas: o aumento da tensão urbana nas cidades provocada pela crescente desigualdade entre seus habitantes. Eles recomendam o planejamento como antídoto para o caos. Apostam em parcerias entre a sociedade civil e o governo. Preconizavam que será necessário coordenar ações locais e iniciativas conjuntas entre cidades de uma mesma região.

Descentralização, parcerias do governo com a iniciativa privada e participação popular são palavras de ordem e diretrizes preconizadas como solução para os atuais dilemas das cidades. Uma revolução na administração também é proposta: menos burocratas, menor burocracia nos procedimentos de gestão, e maior participação dos cidadãos. Essa é a fórmula recomendada nos quatro cantos do universo, em congressos e relatórios de diferentes instituições. Mas a tese atual mais importante entre os planejadores urbanos é- a necessidade de se pensar na sustentabilidade do desenvolvimento urbano porque a cidade pode até estar limpa, sem poluição, com belos parques etc. mas se não tiver empregos ela estará com seu desenvolvimento estagnado. No cenário de desemprego atual é preciso criar políticas públicas solidárias que valorize a res- pública

Outros problemas relevantes além da pobreza e desemprego é a própria situação ambiental das cidades: lixo, água, esgoto e poluição atmosférica. Para alguns urbanistas, a mudança do combustível e a mudança no motor dos automóveis e dos ônibus é algo que se impõe. É preciso cuidar não apenas do Zoneamento (que divide as cidades em diferentes áreas de uso, mas se refere usualmente, aos espaços privados); temos que estar atentos para os Planos Diretores das cidades, aqueles que definem o que será feito com as cidades, e que dizem respeito também aos seus espaços públicos. O Fórum Nacional de Reforma Urbana defende que haja sanções nos municípios que Não elaborarem seus planos diretores num determinado prazo.

Uma agenda de pesquisa sobre o desenvolvimento das cidades deve incluir alguns tópicos como: elaboração de planos estratégicos contendo operações urbanas que implicam em alterar a distribuição e uso do solo; revisão/criação das legislações; e intensificação do modelo de gestão via parcerias- que significa a construção de redes para que grupos trabalhem juntos.

A cidade do futuro deverá contar cada vez mais com redes de articulação entre o poder público e o chamado Terceiro Setor (sem fins lucrativos, voltado para questões sociais, composto por ONGs, entidades, associações, movimentos e até algumas pequenas empresas ou cooperativas denominadas cidadãs). Em São Paulo, por exemplo, a ONG "Associação Viva Centro" coordenou o trabalho que envolveu pintura, ajardinamento, recuperações de fontes e operação de limpeza no piso da Vale do Anhangabaú. O Banco de Boston deu apoio financeiro e a Procter Gamble, uma gigante da indústria química, doou os produtos para a limpeza.

Nos estudos sobre as cidades e os processos de urbanização, um novo indicador foi criado e ele se constitui categoria importante, dentro dos parâmetros das pesquisas sobre o associativismo e o terceiro setor. Trata-se do "Capital social" uma medida qualitativa que abrange as relações que um indivíduo tem. Estas relações podem ajudá-lo a prosperar, a se integrar em certos meios e círculos, ou simplesmente ajudá-lo a sobreviver. Várias instituições dão o suporte para o capital social de um indivíduo como a Igreja, a escola, a associação do bairro, o sindicato, uma seita religiosa, um clube, e seitas religiosas, os centros comunitários, centros de saúde, esporte, lazer etc. São forças sociais locais, da comunidade. Várias pesquisas realizadas nos USA mostraram o papel do esporte para aumentar o capital social de uma comunidade.

Em São Paulo, por exemplo, o Jardim Ângela, na periferia do sul da cidade, é o bairro com maior índice de violência da capital; lá não há centros de lazer, mas há um bar a cada dez casas. Por outro lado, a favela Monte Azul, na mesma região sul, os índices de criminalidade são praticamente inexistentes. Lá existe uma serie de ONGs e Associações comunitárias que criaram um denso tecido associativo desde os anos 70.A migração, muitas vezes, destrói os laços familiares e comunitários estabelecidos nas pequenas cidades. Num ambiente de desemprego, baixo salário, falta de justiça e de polícia, ou seja, de baixo capital social, os índices de violência tendem a ser mais altos.

Portanto, diminuir os índices de violência, melhorar a qualidade de vida e de relacionamento entre as pessoas, etc. são fatos que dependem não apenas da melhoria da situação econômica, mas também da capacidade da sociedade aumentar seu capital social. Apenas se estiver ligado a uma vida associativa o indivíduo aprende a discutir, a tomar decisões, e assumir responsabilidades. Não adianta esperar que o Estado crie ou desenvolva este associativismo. É a própria sociedade civil que deve impulsioná-lo. Várias pesquisas têm demonstrado que escolas administradas por pais e mestres, cooperativas de compras ou construção de casa própria, incentivos locais para limpeza pública e prevenção de crimes, programas criados pela sociedade civil para a preservação da natureza, têm sido mais eficientes que os programas públicos também destinados àquelas questões, administrados por burocratas distantes, insensíveis, quando não corruptos. A dificuldade existente na organização social civil diz respeito às verbas para dar continuidade aos programas.

Retomar o crescimento econômico com melhor distribuição de renda é a primeira grande e vital válvula de segurança para as tensões sociais Mas outra providência é ampliar a abrangência e a eficiência das políticas sociais que incentivam a sociedade civil a resgatar sua cidadania decidindo prioridades e envolvendo-se na operação de programas públicos.

Maria da Glória Gohn – Professora do Grupo de Estudos, Movimentos Sociais, Demandas Educativas e Cidadania da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (GEMDEC/FE/UNICAMP).

Possui graduação em Sociologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1970), mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1979), doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1983) e Pós Doutorado pela New School University, N.York(1997). Bolsista I A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), foi bolsista da Fundação Rockfeller em Belágio, Itália (2000) e da UNESCO em Santiago do Chile (1989). Professora titular aposentado da Fac. Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)e Profa Visitante Senior da Universidade Federal do ABC (UFABC). Foi .Profa visitante da Universidade de Madri (2010), e da Universidade de Córdoba/Argentina (2010). É membro do Nominations Committee da LASA- Latin America Studies Association (2015-2017) e do board de coordenação do Comite "Social Movements and Social Classes" da Associação Internacional de Sociologia (ISA)

GEMDEC/FE/UNICAMP – mgohn@obelix.unicamp.br