O que vem antes, o trânsito ou a cidade?

15/12/2016 15:00 - ANTP

É impossível dizer

em quantas velocidades diferentes

se move uma cidade

a cada instante (Ferreira Gullar)




O que move uma cidade são as pessoas, que se movem nas cidades. Quanto mais as pessoas se movem, mais a cidade se humaniza. Essa verdade quase pueril acaba esquecida na azáfama diária. No corre-corre dos compromissos rotineiros o individual acaba ocupando um espaço (físico e mental) que, por natureza, deveria ser pensado como uma conquista coletiva: as pessoas estão nas cidades para ficarem juntas, estreitar oportunidades, permitir trocas, gerar riquezas, permitir a convivência e a civilidade. O ser humano é gregário por natureza.

O poeta Ferreira Gullar, na elogiada obra “Poema Sujo”, escreveu: ”O homem está na cidade como uma coisa está em outra, e a cidade está no homem que está em outra cidade (...)”. Homens, mulheres, crianças, todos carregam a cidade dentro de si. Uma cidade violenta, desumana, excludente, produz pessoas estressadas, individualistas. Se quisermos mudar as pessoas é preciso mudar a forma como elas convivem nas cidades; como compartem os espaços; como vivenciam de forma comum seus sonhos e suas expectativas. Pessoas melhores farão cidades melhores.

O comportamento no trânsito é um exemplo emblemático de como as pessoas reproduzem o modelo de cidade em que vivem. O trânsito define de saída que o individual deve prevalecer sobre o coletivo quando exige regras para que algumas pessoas tenham direito ao uso de mais espaço público que outras. É quando o pedestre – curiosamente outro nome dado à pessoa, ao ser humano – é visto como uma interferência no fluxo de veículos (seres inumanos). Essa inversão de valores pressupõe uma construção de cidade que já nasce contaminada, predisposta a destruir espaços comuns em benefício de um uso seletivo, com mais direitos aos que possuem automóveis, e menos direitos aos que se utilizam (por livre opção ou necessidade) de modos ativos de locomoção.

Uma cidade que é moldada em função do uso intensivo do transporte individual motorizado produz, como consequência, uma série de efeitos colaterais. Dentre muitos, os mais visíveis são aqueles que vemos contabilizados nas graves estatísticas de mortos e feridos. Esta é a face visível ao que se convencionou chamar de “trânsito”. Mas o trânsito é um reflexo do modelo de cidade que adotamos, onde cabe preguntar: mas esta é a cidade que queremos?

A forma de se abordar o tema da segurança viária depende assim de como situamos a questão do trânsito nas cidades: ele deve ser visto como decorrência natural num modelo urbano aceito como o único possível, ou delimitado e dependente dentro de um modelo de cidade voltado para as pessoas? Ou sendo mais direto: o trânsito, ao invés de impor regras à cidade não deveria seguir as regras que a cidade lhe impõe? E assim permitir melhor qualidade de vida, maior democratização e qualidade no uso dos espaços públicos, menos emissão de poluentes, uma verdadeira vida em sociedade? Menos letalidade e menos custos para o sistema de saúde, ou em resumo, mais segurança nas ruas?

Desde que o uso do automóvel foi nos vendido como um imperativo necessário ao desenvolvimento e crescimento das cidades, o que temos visto desde então tem sido uma rápida degradação de vários indicadores de qualificação da vida urbana. Há alguns anos, ao provar do próprio veneno, muitas cidades perceberam que o automóvel tornou-se, ao invés de solução, um fator determinante de destruição dos tecidos urbanos.

Ailton Brasiliense, presidente da ANTP, lembra sempre que o transporte coletivo deve ser visto como um qualificador das cidades. Em outras palavras, o melhor antídoto aos malefícios causados ao meio urbano pelo abuso no uso do automóvel é a sua substituição por modos mais sustentáveis de locomoção, onde se somam, ao lado dos modos tradicionais de transporte coletivo, os modos ativos e sustentáveis, como o andar a pé e o uso da bicicleta dentro de um sentido de rede de transporte que preserva a essência maior de qualquer adensamento urbano: a vida em comum.

As regras de trânsito, ao invés de se pautarem pela prevalência do reinado do automóvel, devem se submeter aos novos tempos de humanização das cidades, onde o pedestre deixou de ser a "vítima" para se tornar um cidadão com plenos direitos.