Poluição e acidente de trânsito: o carro como o maior vilão

16/08/2017 12:00 - ANTP


Pergunte à pessoa que se acostumou a andar apenas de carro em São Paulo se ela conhece um meio mais econômico de se locomover na cidade. Antes de pensar em economia, outros fatores pesarão na formulação de sua resposta, como o conforto e a privacidade que o carro particular propicia. Esse tipo de argumentação “econômica”, que não leva em conta o efeito danoso causado pelo automóvel nas grandes cidades, continua sendo a preferida dos defensores do carro, sempre à cata de argumentos que racionalmente possam reforçar sua opção.

Como no caso do fumante, que não se rende aos prejuízos largamente demonstrados à sociedade, afora aqueles causados à sua própria saúde, o amante do automóvel ainda raciocina que possui um direito exclusivo de escolher a maneira que melhor lhe convém para movimentar na cidade, ignorando os danos que tal decisão possa causar direta e indiretamente aos demais. Quando se trata de lançar mão de argumentos sociais, a lengalenga preferida é de que a indústria automotiva gera milhares de empregos, além de engordar os cofres públicos com os impostos que recolhe.

Enquanto isso, e como se fossem fatos descolados, mensalmente os jornais publicam notícias recorrentes sobre os danos provocados pelo uso intensivo do automóvel. Muitas delas, é bom que se diga, carregadas com tons apocalípticos.

Esta semana, pegando carona na efeméride do Dia Mundial da Poluição, a manchete que frequentou timidamente alguns portais de notícias foi: “novo estudo revela que a poluição mata duas vezes mais que o trânsito em São Paulo”.

Apesar de o problema e a gravidade serem os mesmos desde o começo desta década, o tratamento que a imprensa dá à questão ambiental é como se este fosse uma eterna novidade. Não à toa o termo “novo” abrir o título do texto.

Senão, vejamos... Em maio deste ano um relatório científico já informava que os índices de poluição em São Paulo eram duas vezes superiores ao teto estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que medem a qualidade do ar aceitável. O estudo havia sido feito pela própria OMS, e o brasileiro Carlos Dória, um dos responsáveis pelo trabalho, apontava que a capital paulista não tinha conseguido melhorar sua situação em comparação aos dados do informe de… 2012!

Ou seja: há pelo menos cinco anos a “novidade” da má notícia da qualidade do ar vem frequentando as colunas de “sustentabilidade e meio ambiente” dos jornais.

A manchete desta semana – a de que a poluição mata duas vezes mais que o trânsito em SP - foi produzida pelo respeitado Instituto Saúde e Sustentabilidade – ISS, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) cujo objetivo é contribuir para o viver saudável em cidades. Trazendo a público mais uma vez um problema que continua “invisível” para nossas autoridades públicas, o trabalho do ISS traz novidades interessantes, apesar de repisar um problema grave que continua sendo ignorado pela sociedade brasileira.

O título da matéria, escolhido pelas redações dos portais que publicaram o estudo (a grande imprensa não deu importância), diz que o número de mortes causadas pela poluição é o dobro daquelas ocorridas no trânsito de São Paulo.

A mania de buscar títulos bombásticos geralmente trai o jornalista. O mais correto seria afirmar que a poluição provocada pelo trânsito de São Paulo mata duas vezes mais que os acidentes na capital…

Em maio de 2014, portanto há mais de 3 anos, quando o mesmo Instituto Saúde e Sustentabilidade soltou manchete similar a esta, um integrante da organização ambiental afirmou: “Uma das principais causas da poluição está relacionada com a quantidade de veículos”. Logo, carros matam não apenas provocando acidentes, como matam também envenenando o ar. Sem contar os danosos efeitos que causam à economia, provocados pelos congestionamentos que diminuem a produtividade, aumentam o estresse urbano, retiram horas preciosas de convívio familiar.

A novidade do estudo do ISS está em outro ponto que só vem agravar ainda mais o que já era muito grave: as concentrações de poluição do ar aceitas como seguras por nossas autoridades ambientais estão acima do aceitável em outros países, ou seja, são superiores aos níveis críticos de atenção e emergência determinados internacionalmente.

Logo, o que seria normal para um paulistano respirar, seria impensável para os narizes de pessoas residentes em outras cidades.

O estudo do ISS fez uma releitura do Relatório de Qualidade do Ar 2015 da CETESB, “Qualidade do Ar no Estado de São Paulo Sob a Visão da Saúde”. Foi uma análise inédita dos dados segundo os padrões de qualidade de ar recomendados pelo Air Quality Guidelines, da Organização Mundial da Saúde.

Resumo da ópera: somos levados a aceitar como normal o que em outras partes do mundo é um absurdo, tanto que requer medidas emergenciais das autoridades públicas para evitar danos à saúde. A pressão por indicadores ambientais que permitam um ar mais saudável levou recentemente a França e o Reino Unido a anunciarem a intenção de banir em 2040 a venda de automóveis com motores de combustão interna.

Por aqui, como se sabe, a questão ambiental passa ao largo, além de ser vista pelo setor automotivo como economicamente inviável...

O resultado da poluição na saúde pode ser verificado em doenças cardio e cerebrovasculares, tais como arritmia, infarto do coração e derrame cerebral, que representam 80% dos efeitos causados por ela.  Outra causa comprovada são os cânceres de pulmão (o mais letal dos tumores) e de bexiga, sem contar a metade dos casos de pneumonia em crianças.

Ao mesmo tempo em que somos um dois países que mais estuda o fenômeno da poluição do ar, somos também o país em que os políticos menos se importam com o assunto. Segundo a Dra. Evangelina Vormittag, autora do relatório, “o Brasil é um dos países que mais publica sobre o tema no mundo, entre os seis primeiros, entretanto, não conseguiu estabelecer políticas públicas suficientes, que venham controlar os malefícios ambientais para a saúde humana e a diminuição dos gastos públicos em saúde decorrentes”.

Outro exemplo de nosso descaso pela questão ambiental remete à famigerada inspeção veicular, praticada no mundo todo com seriedade e sucesso. É obrigatória por lei no Brasil, mas não está sendo realizada por pura e simples omissão dos governantes do Município de São Paulo e no âmbito do Estado.

O Dr. Paulo Saldiva, diretor do Instituto de Ensinos Avançados da USP, e um dos autores do estudo, alerta: “É inaceitável que um problema de saúde pública desta dimensão continue invisível”, diz.  “O Instituto Saúde e Sustentabilidade propõe a atualização dos padrões de qualidade do ar preconizados pela OMS dentro do menor prazo possível. Embora não altere a situação do ar, mudar o padrão permitirá entender a real situação para que possamos agir para sanar o problema – como agora, por exemplo, com a revisão dos padrões de qualidade do ar que acontece no CONAMA e com o edital do transporte público e projetos sobre combustíveis limpos para o transporte público de São Paulo, por exemplo. Nessas horas, dados corretos podem fazer a diferença em prol de projetos de lei e políticas públicas eficientes”, completa.

Especialistas reagem afirmando os organismos governamentais estão falseando a informação do risco à saúde pública com padrões oficiais de qualidade do ar totalmente descolados da ciência médica. O cúmulo, eles alegam, é que os órgãos estaduais e federais resistem a atualizar os padrões nacionais de qualidade do ar antes de 2030.

Até lá, se nada for feito, o trânsito continuará matando de diversas e variadas maneiras: seja através dos acidentes que provoca, seja silenciosamente pelos gases tóxicos que a maioria dos carros emite.