Precisamos conversar com o passageiro

12/12/2018 12:00 -

Fala-se muito em caixa preta quando o assunto é transporte coletivo. O termo está atrelado significativamente à questão da tarifa, especificamente seu valor e de como ele é constituído, apesar de isso ser apenas parte do bolo maior. Daí a necessidade de passarmos a integrar ao nosso vocabulário diário o exercício da transparência, missão necessária e obrigatória tanto para o gestor público, quanto para o operador privado.

Como toda ação contratual, que envolve uma série de parâmetros, fica difícil explicar, de forma didática e límpida para quem usa ônibus diariamente e até mesmo para os formadores de opinião, como ela, tarifa, é formulada; que elementos entram na composição de seu preço final; e, mais importante ainda, como é que se estabelece a relação entre o empresário que oferece o serviço e o poder público que o concede, regula e fiscaliza.

Mal sabe o cidadão que boa parte de muitos dos problemas que impactam nos custos e na qualidade do transporte que utiliza advém da negligência do poder público na gestão das cidades.

Eis aí o início da incapacidade que todos têm, seja o setor público, seja o lado privado, de explicar uma operação que interfere diariamente na vida do cidadão, que condiciona a que lugares ele pode chegar, que define parte de sua qualidade de vida, em que condições ele pode usufruir sua cidade.

Tudo começa pela transparência.

Por morar longe, o passageiro tradicional do transporte público passa horas dentro de ônibus e trens, muitas vezes usando mais de um veículo para chegar/voltar a seu destino. E muita gente mora longe nas cidades brasileiras de hoje graças à incapacidade histórica do estado brasileiro de planejar o uso dos espaços públicos e de definir prioridades para o crescimento urbano.

Sim, porque a palavra “longe” pressupõe distância casa-emprego, casa-escola, casa-serviços... Cidades planejadas encurtam distâncias, e o “longe” deixa de ser não só uma característica do transporte, como um problema para as cidades e a maioria de seus habitantes.

Mas se há dificuldades em explicar como tudo funciona, mais dificuldades terão ainda os passageiros de entender questões que deveriam ser corriqueiras e naturais. E, no entanto, todos – o setor público e o empresário privado – são incapazes de elucidar questões comezinhas, como o fato de os ônibus demorarem tanto a chegar no ponto; de estarem sempre lotados quando são tão necessários, e vazios quando não; de não terem mecanismos básicos de informação do tipo mais simples, como “em que ponto passo” e “para que lugares vou”...

Sem conseguir explicar ao passageiro e ao formador de opinião, de maneira didática e convincente, como funciona um sistema de mobilidade por ônibus, dificilmente o transporte coletivo terá nele um aliado. Ou ao menos alguém com quem possa estabelecer um diálogo mínimo e construtivo.

Entre o setor público e o privado historicamente se estabeleceu uma relação contratual, onde o primeiro concede o serviço e o segundo o executa. Para que isso pudesse se manter e prosseguir, ambos os lados investiram em estratégias de fiscalização e controle, desenvolveram todo um repertório jurídico e negocial que evoluiu ao longo do tempo, calibraram tecnologias modernas e confiáveis. O poder público, no entanto, não foi além de seu papel fiscalizatório, enquanto o passageiro, como sempre, ficou à margem. Resgatá-lo agora tem mais que um preço, tem-se um enorme desafio.

Por muitas vezes as empresas de ônibus buscaram trazer o passageiro para seu lado, utilizando de estratégias de marketing comercial vitoriosas no mercado, mas desastrosas para o convencimento e a cumplicidade. Falharam em demonstrar que seu principal produto é um serviço essencial à vida, das pessoas e das cidades.

Usou-se de muita coisa, desde a linguagem da prevalência do coletivo sobre o individual (correta, mas intangível), até uma pretensa qualidade que poucos conseguiam visualizar ou entender.

O marketing social, cuja função máxima é vender uma ideia (no sentido do convencimento), esse foi pouco utilizado, e quando o foi passou longe do alvo. E aqui nos referimos na mesma medida tanto ao setor público, quanto ao concessionário privado.

Alguns motivos podem ser citados para mensurar o grau de distanciamento de gestores e operadores daqueles que se utilizam do ônibus como veículo para se locomover na cidade. Seguem os mais relevantes:

Não os conhecemos – não sabemos com quem estamos falando. Pesquisas de mercado, ou até mesmo as de origem e destino, trazem informações importantes e necessárias para entender o funcionamento do serviço, onde estão as pessoas e para onde desejam ir, mas não são suficientes para justificar sua importância e necessidade, apenas sua magnitude enquanto oferta diante de uma demanda observada; fala-se muito na maçaroca de informações produzidas por aplicativos de transporte, que sugerem roteiros, identificam linhas e apontam horários de chegada, mas são dados brutos, e sua análise carece de interpretação sociológica. Enquanto os sistemas compartilhados por aplicativo inovaram justamente por conhecer seu público, graças à montagem de um rico banco de dados, o setor de ônibus continua na era analógica;

Não os levamos a sério – nosso discurso é unilateral. Damos respostas como se já soubéssemos as perguntas. Não questionamos nunca, afirmamos o tempo todo, nos comportamos como os senhores da razão. Para quem está em busca de cumplicidade, essa é a forma mais rápida e bem-sucedida de afastar quem é essencial para a existência do serviço de ônibus – o passageiro;

Não os sentimos – pode parecer ilusório, mas é concreto: a significância do transporte público, onde muitos cidadãos passam boa parte de suas vidas, precisa ser entendida não só como um espaço em movimento, mas também como um local (estático) de convivência. Muitas coisas acontecem dentro de um ônibus – relacionamentos e amizades, discussões e rupturas; é preciso conhecer esse ambiente, e mais ainda a capacidade que ele possui de estabelecer canais de diálogo. Ao invés de vê-lo como local onde podemos informá-lo, precisamos antes entender este espaço como propício para o diálogo. Afinal, quem disse que ele está disposto a nos ouvir?

Não os consideramos – todo técnico/estudioso sabe de cor e salteado quais as principais necessidades do passageiro do transporte por ônibus. Mas parece claro que somos incapazes de oferecer o que acreditamos ser o ideal, pelo menos a parte mais importante, como regularidade, tempo de viagem, custo módico da tarifa. Como construir uma relação de fidelidade entre veículo e passageiro, onde este saiba o que é preciso alcançar, e se torne um aliado nesta luta?

Esta última pergunta nos leva de volta ao início: sem explicar ao passageiro qual seu papel nessa equação, fica estéril pensar em tê-lo como aliado de uma batalha na qual ele não se vê como soldado, menos ainda como aliado, e a mais das vezes se sente como a maior vítima.

I - Precisamos conversar com o passageiro...

Como fazê-lo e por onde começar?

Vamos começar pelo início, reconhecendo de saída os limites da comunicação.

Comunicação não faz milagres. Ela precisa partir de constatações que beiram a obviedade, apesar de muitas campanhas insistirem em esmurrar contra a parede. Delimitada sua capacidade de intervenção, é preciso que ela guarde uma distância respeitosa e verdadeira dos fatos, de coisas feitas e realizadas, de conquistas percebidas e sedimentadas.

Para o transporte público por ônibus, o verbo “comunicar” tem ainda o sentido de convencer alguém de um fato que julgamos verdadeiro, mas que é percebido de forma inversa pela maioria das pessoas. Partimos de um ponto negativo na escala, e para passar ao positivo (obter alianças e cumplicidades), precisamos antes zerar o jogo.

Isso significa reconhecer algumas questões que estão sedimentadas no imaginário popular:

1º: Jamais seremos ‘melhores’ que carros ou outros modais, afinal não se trata disso... é preciso mostrar que somos necessários, e podemos, sim, ter qualidade naquilo que oferecemos;

2º: não basta se comprometer em oferecer um serviço pontual, limpo e eficiente; o carro particular (propriedade individual, ou mesmo o de aplicativo) continuará no imaginário do cidadão como a solução ideal, mesmo que todos saibam ser impossível realizar tudo aquilo que oferece;

3º: não adianta prometer o futuro; é preciso ater-se ao presente, apontar fatos e realizações que passam despercebidas justamente porque não nos preocupamos em conversar com o passageiro; soluções tecnológicas mirabolantes servem para revistas especializadas e vendedores de traquitanas. Na escala de prioridades do passageiro elas vêm muito depois de itens como regularidade, pontualidade, preço realista;

4º: é preciso falar do aqui e agora, do que temos e para onde podemos ir (e até do quanto já evoluímos), e do que necessitamos para atingir determinadas metas factíveis. Não se trata de dinheiro, mas de ações e políticas públicas, escolhas que governantes fazem após aferir o efeito de seus atos diante da opinião pública – lembremo-nos de que o carro particular detém um domínio gigantesco da comunicação, a ponto de uma minoria conseguir produzir mais compromissos com governos e governantes do que a maioria que usa ônibus (aumento de velocidade para carros e redução da prioridade nas ruas para os ônibus são alguns exemplos recentes e emblemáticos).

Resumo: se não dá para brigar pelo “lógico”, é preciso atuar pelo lúdico.

II – O veículo “ônibus”

Para alcançar um aumento na demanda, além de atender os critérios objetivos de conforto e qualidade - limpeza, eficiência e pontualidade -, é preciso intervir em parâmetros subjetivos do veículo ônibus: torná-lo, mais que necessário e útil, atraente e sedutor aos olhos dos potenciais utilizadores.

Fica claro que não será possível resolver os itens acima em uma campanha publicitária, nem em duas, quiçá várias. São ações que precisam perpetuar-se como processo de comunicação do sistema, seu modo de informar e conversar com seu passageiro. 

É preciso reforçar a importância do sistema de transporte, o que só se consegue se as pessoas entenderem seu funcionamento e, mais ainda, os principais motivos que o condenam a ser o eterno vilão das cidades.

É preciso explicar ao passageiro como funciona o transporte coletivo, repartir e ponderar as responsabilidades, definir canais de conversa e avaliação. Ele precisa saber por que determinados serviços não funcionam, a quem deve responsabilizar (no sentido de cobrar, demandar, solicitar), e começar a perceber, mesmo que de maneira incipiente, que cidadania deriva de cidade.

Em resumo: para entender o ônibus é preciso saber como funciona a cidade.

III – O usuário e o “governo”

O transporte público é essencial para a economia da cidade. Toda a atividade econômica e geradora de viagens precisa contribuir para a qualidade da mobilidade das pessoas, para sua produtividade econômica, para a geração de riquezas. Quanto mais difícil for se locomover no espaço urbano, quanto maiores forem os tempos de viagem e mais desgastantes os deslocamentos das pessoas, menos competitiva e produtiva será uma cidade, pior será sua qualidade de vida, e maiores serão os efeitos colaterais produzidos. Cidades que não garantem prioridade ao transporte coletivo convivem com problemas recorrentes como a poluição sonora e ambiental, os acidentes de tráfego, as doenças respiratórias, impactando em gastos diretos e indiretos à sociedade. O usuário sabe disso? Pois é, pois o governo sabe. E o que tem feito? A divisão modal nas grandes cidades brasileiras, grosso modo, tem-se mantido intacta nos últimos anos, numa persistência que demonstra a ausência de prioridade ao transporte coletivo por ônibus.

Reverter essa situação, ou torná-la menos dramática, depende essencialmente das condições que a administração pública oferece para os ônibus circularem nas ruas. Há prioridade? Ou eles são tratados como um veículo como qualquer outro? Não adianta exigir regularidade e eficiência, menores tempos de viagem, se os ônibus ficam presos entre carros, ou retidos em longas filas. O poder público precisa se equipar para gerir o espaço viário, garantir o controle das ruas e avenidas, oferecer condições reais para que os ônibus cumpram com sua missão, que é a de levar e trazer passageiros. O usuário sabe disso?