Precisamos falar de cidade

27/01/2017 14:30 - ANTP


(Foto: Irene Quintáns, Red Ocara - Largo do Paissandu, São Paulo)

"É consenso entre os urbanistas que uma cidade segura é aquela que tem as ruas ocupadas por pessoas, fortalecendo o senso de comunidade." (João Wainer, jornalista e cineasta)

“Na linguagem da vida cotidiana, o estresse anda pesando mais que a convivência, a leveza e a alegria." (Marco Aurélio Nogueira, professor Unesp, O Estado de SP)

O ano começou com debates importantes em torno de temas específicos. Por isso mesmo é preciso resgatar o pano de fundo que qualquer debate deve preservar quando o assunto é a mobilidade em nossas cidades: onde queremos viver? Qual a qualidade da vida que pretendemos para nossos espaços urbanos?

Não parece claro para muita gente que uma cidade precisa estar aberta não apenas para que possamos nos locomover através de suas ruas e calçadas (seja de que jeito ou modo for), como também deve estar disponível para ser apropriada pelos que nela vivem. O desenho de uma cidade não pode ser moldado apenas sob uma ótica, seja a dos que trafegam por automóveis, seja por outros modelos de transporte. Mas deve haver uma prevalência de uso, já determinada inclusive pela Lei de Mobilidade Urbana. Isso deveria ser claro desde que todos optamos por viver sob a égide da democracia.

Moldar uma cidade apenas ao uso do automóvel já está superado; mesmo sem o querer, é uma maneira de condenar muitos espaços públicos ao abandono – seja pelas obras que o intenso fluxo de automóveis requer, seja pelo impedimento que isso causa a outras formas de mobilidade, como caminhar e pedalar, seja pelos graves problemas (efeitos colaterais) causados à saúde pública, que vão desde danos ambientais, até atropelamentos.

A pergunta que nos parece que deve ser feita o tempo todo é: privilegiar um modo de transporte vai melhorar ou piorar minha cidade? Afinal, é o carro ou a pessoa quem deve definir nossos roteiros? Nossos pés ou os pneus de nossos carros? A velocidade do caminhar, do pedalar ou a pressa motorizada, o que deve nortear nossas decisões? As principais vias da cidade não deveriam ser usadas para transportar com conforto e qualidade o maior número de cidadãos?

O direito ao uso do espaço público urbano é hoje o grande foco das grandes cidades do planeta, inspirado pela crescente e intensa urbanização. A discussão apaixonada sobre a quem cabe maior direito de uso dos espaços está mal posta, e não vai produzir bom resultado. Uma cidade que é vista apenas como um território que precisa ser transposto ao invés de apreciado e vivenciado é uma cidade em avançado estado de desumanização.

Todos sofremos quando temos de escolher caminhos alternativos para nos locomovermos em nossas cidades. E este é seguramente um dos grandes problemas para os trabalhadores nas metrópoles, que convivem com raras alternativas de locomoção. O que torna mais complexo o problema é a imensa distância entre os locais de moradia e os empregos, o que determina um maior tempo de percurso, e por consequência uma baixa taxa de renovação nos ônibus, trens e metrôs. Entre o ponto "A" e o "B" tem-se uma enorme distância, e uma baixíssima oferta de trabalho. Esses espaços, que não são usufruídos nem apropriados pelo cidadão viajante, tornam-se desertos de concreto, paisagem que passa pela janela de ônibus, trens, automóveis.

O desafio hoje nas grandes cidades deve ser a introdução e o estímulo a modais como caminhada e bicicleta; assumir não apenas sua importância para curtas distâncias, como sua necessária composição com outros modos. Mais que isso: é preciso se apropriar de espaços abandonados, dar-lhes vida e inteireza, torná-los locais de descanso, lazer e convivência.

Uma cidade inteligente (e não estamos falando de tecnologia) é aquela que permite a seus cidadãos um amplo espectro de escolhas. A questão da saúde pública, geralmente ignorada quando se trata do tema da mobilidade urbana, parece eternamente fora da pauta de muitos gestores públicos, sempre encoberta por temas de natureza econômica ou de foro individual (onde os interesses privados prevalecem sobre os interesses coletivos).

Inverter o debate significa generalizar e priorizar nossas preocupações. Significa pensar no outro. A má qualidade das calçadas é um exemplo disso. O mesmo vale em relação às crianças, à população mais vulnerável. Como é ser pedestre nas cidades brasileiras? Como é ser criança e não ter locais públicos para brincar? Como é ser jovem, e não ter locais de encontro que sejam seguros e agradáveis? Bibliotecas, quadras de jogos, centros culturais abertos o maior tempo possível?

Em nosso site a arquiteta e urbanista Irene Quintáns relata a experiência das superquadras de Barcelona, onde um dos objetivos é reconquistar mais espaço de asfalto para atividades comunitárias, para que crianças possam brincar e se socializar com outras crianças, adultos possam conviver e falar sobre problemas comuns, possam discutir e compreender sua cidade. Retomar espaços públicos para atividades comunitárias é uma maneira não só de retomar a cidade para seus habitantes, como produzir vida em comunidade.

Tirar o cidadão da bolha em que vive deveria ser o mote de qualquer gestão pública preocupada em criar uma cidade com menos conflitos. Uma cidade com mais convivência é uma cidade naturalmente mais humana e resiliente. Está faltando esse debate, como lembra o professor Marco Aurélio Nogueira em artigo para o Estadão: “a quantidade de problemas que a cidade enfrenta é tão grande que só se poderá chegar a uma equação razoável se Estado e sociedade civil cooperarem entre si, sem prejuízo de diferenças de opinião, responsabilidades institucionais e choques de interesses”.

Uma cidade só será para todos se for feita e construída em benefício de todos.