Torto e capenga

23/11/2016 21:30 - ANTP


Torto e capenga

É comum perceber como muitas pessoas dão um valor exacerbado às regras e às leis. Parece que a lei, por si só, já basta para coibir erros 

e malfeitos da sociedade. Algo está errado? Uma lei resolve. Isso vale para situações que vão desde a segurança pública, até questões de trânsito. O que muitos se esquecem, porém, é que leis exigem fiscalização. Se as pessoas não cometessem delitos, as leis não seriam necessárias. Mas para que as leis possam atingir seu propósito máximo, que é o de coibir ações que prejudicam a sociedade, é preciso garantir uma fiscalização eficiente. 

O curioso é que a mesma sociedade que clama por leis diante de problemas que a afetam é a mesma que reclama da fiscalização que penaliza parte de seus membros, justamente aqueles que motivaram a necessidade de sanções e punições. 

O mesmo raciocínio vale para projetos de governo que miram em obras, e não se preocupam com a manutenção. A obra por si só resolve... Mas qualquer projeto de transporte, por exemplo – metrô, BRT, VLT – exige não só um aporte financeiro razoável para sua implantação como para a permanência da qualidade do atendimento ao cidadão.

O Metrô de SP é um exemplo clássico de obra bem sucedida, que se preocupou desde o seu lançamento não só com os aspectos essenciais de engenharia e construção, como também em implantar um padrão de qualidade em seu funcionamento que fosse aprendido, adotado e assumido por seus usuários.

A participação da sociedade é essencial para a manutenção da qualidade de qualquer serviço público. E o sucesso do Metrô deveria ser o padrão de qualidade a ser adotado por outros sistemas de transporte. Por que não é assim?

O Metrô, desde seu lançamento, adotou o usuário como o centro das atenções. Desse conceito basilar derivaram rígidos processos que exigiram de todos os seus funcionários uma série de regras e comportamentos, fazendo o Metrô operar sempre dentro de controles e tecnologias os mais avançados. Como garantir que isso não se perca, e mais ainda, contamine positivamente outros sistemas de transporte – trens, ônibus – que, afinal, atendem ao mesmo cidadão/usuário?

Garantir uma unicidade na forma como se deve tratar quem usa o sistema de transporte na cidade é o mesmo que permitir que o cidadão seja tratado com padrões similares de qualidade por qualquer segmento da máquina pública. O pedestre que acessa uma estação do metrô estará tão ou mais irritado e prejudicado quanto mais dificultado for seu acesso ao sistema. Logo, calçadas são fundamentais na constituição de uma rede que permita e garanta a permeabilidade de qualquer sistema. Calçadas estão na ponta de toda e qualquer viagem que utilize, além da caminhada, outros modos de transporte: as pessoas saem, ou voltam para casa... 

Quando se fala em “metronização” dos ônibus, antes de se olhar para o aspecto tecnológico, se deve pensar no foco de qualquer política pública: o cidadão, o usuário do sistema de transporte – aquele que caminha, que anda de bicicleta, que faz integração com outros sistemas que, enfim, deveria se locomover na cidade numa rede permeável, sem obstáculos, sem interrupções nem barreiras.

Coletivos organizados auxiliam muito as gestões públicas, as estimulam e cobram a agir, mas não as substituem. Um caso evidente são os inúmeros aplicativos para celular desenvolvidos para permitir informações melhores ao cidadão sobre os sistemas de transporte. Dois problemas são evidentes: a inexistência de uma rede pública de Wi-fi, gratuita e veloz, torna esse esforço e seu alcance limitado. É o mesmo que distribuir lanternas sem pilhas (o usuário que pague por elas). E em segundo lugar desobriga (mesmo sem ser sua intenção) que a informação esteja disponível não somente na nuvem, como no local físico. E muitas pessoas ainda precisam da informação no local, afixada em pontos e abrigos. Os coletivos fazem sua parte, resta ao poder público fazer a sua.

A forma de começar a resolver problemas dessa natureza é assumir, de fato, que o cidadão é o centro das atenções no sistema de transporte. E começar a tratar, de forma integrada e sistêmica, todos os modos de transporte como partes de uma mesma e única rede. Enquanto as gestões públicas não aprenderem a pensar de fora para dentro, com o olhar de quem precisa se locomover na cidade, toda e qualquer solução será torta e capenga.