Um olhar pela cidade

14/03/2017 14:30 - ANTP


Uma empresa automotiva global realizou uma pesquisa para descobrir algo que não sabíamos, mas desconfiávamos: somos um povo que passa boa parte de nossas vidas dentro de um carro. A conta ‘exata’ chega aos quatro anos e 11 meses, tempo que dura a prisão automotiva a que muitos estão acostumados, como uma penitência natural decorrente dos custos do progresso.  O mais grave nos é revelado quando comparados a outros países, e descobrimos que lideramos esse indigesto ranking do desperdício de tempo. Estamos ‘à frente’ dos argentinos (que queimam quatro anos e três meses de seu tempo) e dos europeus (quatro anos). 

A pesquisa, encomendada pela empresa automotiva à francesa CSA Research, analisou vários países, á cata de pessoas que usam o carro como meio de transporte – foram sete países europeus, China, Japão, Argentina e Brasil.

O curioso é a conclusão a que chegou a empresa fabricante de automóveis: “Se é para passar tanto tempo dentro de um carro, que seja em um que se preocupa com o conforto e o bem-estar do cliente, ou seja, um modelo da nossa empresa”.

Levando ao extremo, pode-se inferir que as empresas fabricantes de veículos, diante da inexorabilidade dos congestionamentos, estão preocupadas agora em fazer do automóvel uma extensão de nossas casas e de nossos locais de trabalho. Ao invés de Home Office, estamos caminhando para o status do Car Office. Todo o conforto a bordo, com direito a traquitanas que cobrem desde o ar-condicionado, até conexão com a internet, com direito a música ambiente e canais variados de TV a cabo. Somando a todo esse cardápio de itens de conforto a realidade próxima do carro autônomo, teremos não mais congestionamentos, mas estações de trabalho e lazer estacionadas em plenas ruas e avenidas das grandes metrópoles. Sem custo de IPTU, por suposto...

Se os fabricantes automotivos estão olhando para dentro dos veículos que fabricam, falta alguém que olhe com cuidado para o lado de fora: esta ocupação sem limites de espaço urbano, que deteriora nossas cidades e as desumaniza ao extremo, tem um custo social abusivo. Se a questão do ar tóxico emitido por automóveis ainda é muito grave (mesmo em cidades como Londres e Paris), o problema da ocupação desordenada de ruas e avenidas é um abuso cometido por uma minoria, que penaliza uma imensa massa de trabalhadores que despende horas de sua vida em condições sub-humanas: sem conexão à internet, sem ar-condicionado, e geralmente sem sequer se sentar num banco minimamente confortável.

O tempo que muitos cidadãos precisam esperar para conseguir entrar na condução que os levará ao local de trabalho chega a ser massacrante, sem computar ai o tempo gasto até o destino final.

Juntando uma história com outra não é difícil perceber que se entupimos as ruas de carros, os ônibus perdem velocidade e tempo. O serviço de ônibus depende essencialmente de um insumo: o sistema viário das cidades. “Dê-me ruas livres e eu trafegarei na velocidade possível e segura”, dirá qualquer operador.  No entanto, o grande problema da velocidade de qualquer sistema de ônibus tradicional está justamente na ausência dessa exclusividade: ao ter que dividir espaço com carros, motocicletas e ainda por cima depender do tempo semafórico para atravessar cruzamentos, o sistema passa a sofrer de variáveis as mais diversas, que tornam a velocidade média um exercício de complexo ajuste fino.

Olhar para dentro de nosso próprio carro nos impede de olhar (e viver) a cidade. É um gesto egoísta. Olhar para fora, e ver a dura e triste realidade do transporte coletivo, pode ser libertador.

A prioridade ao transporte coletivo precisa ser assumida o quanto antes como uma importante saída para resolver boa parte dos graves problemas de mobilidade dos moradores mais pobres, condenados a viver cada vez mais longe. O alongado tempo de espera pela condução, o desconforto e o excessivo e incerto tempo da viagem, a falta de condições mínimas de conforto e comunicação, tudo se soma para infernizar a vida nas grandes cidades.

Enquanto não se reduz a distância entre o emprego e a moradia, pedra de toque de qualquer política urbana responsável, há que se buscar maneiras eficazes para diminuir o sacrifício imposto a milhões de brasileiros que diariamente se locomovem em longas viagens pelas cidades do país.

que fazer, muitos já sabem. O como fazer, este parece ser o grande desafio de prefeitos e gestores públicos há muitos anos.