A calçada, o principal elemento da rede da mobilidade a pé e o seu uso pelas novas formas de mobilidade em rodas com motorização elétrica

12/12/2018 18:00 - Meli Malatesta

A calçada, infraestrutura principal que compõe a Rede da Mobilidade a Pé, atualmente reflete uma situação de precariedade decorrente da não priorização do modo “caminhar” nas políticas públicas de mobilidade praticadas nas cidades brasileiras. 

O primeiro aspecto que aponta este descaso é a injusta divisão do espaço público de mobilidade que tem sua maior fatia devorada pelos modos motorizados, mesmo sendo de representatividade bem menor que o modo a pé (41% contra 25%, de acordo com o relatório do Perfil da Mobilidade Urbana emitido pela ANTP). 

Também é sabido à exaustão que a regulação da implantação e manutenção da rede de calçadas na legislação urbana na maioria de nossas cidades  segue a prática do falido modelo de parceria público privada: proprietário do lote  responsável pela implantação e manutenção e o poder público, prefeituras, pela definição dos padrões construtivos e fiscalização.  Na prática ninguém faz nada.  Pior ainda, o proprietário do lote se apossa da calçada frente à sua propriedade e nelas faz o que bem quer, sempre para benefício próprio, sendo a mais comum as malfadadas rampas de acesso às garagens.  É difícil, senão impossível, caminhar em calçadas assim.

Não bastando tudo isso, uma rede de calçadas, que mal dá conta de acomodar com conforto, segurança e dignidade a maior parte das pessoas que escolhem seus próprios pés e cadeiras de rodas para se deslocar diariamente, também acolhe ciclista quando há falta de infraestrutura cicloviária e o tráfego motorizado oferece uma convivência altamente arriscada.  Motoristas insistem em ignorar o papel garantido por lei que ciclistas tem prioridade. A prática mostra uma intimidação por motoristas irresponsáveis, que obriga ciclistas, com frequência, utilizarem as calçadas para sobreviverem.  Principalmente aqueles que não têm ainda muita familiaridade em pedalar. 

Patinetes nas calçadas

Foto: Folha de SP

O Código de Trânsito Brasileiro determina o desmonte de ciclistas na calçada.  Mas este procedimento é de difícil aplicação: impossível empurrá-la por longos trechos.  O desmonte só é praticado espontaneamente quando o fluxo de pessoas caminhando é tão alto que torna impossível o equilíbrio ao pedalar.  Assim a convivência com o ciclista montado na calçada tem ocorrido na maioria das vezes sem muitos problemas. 

Entretanto, ultimamente têm surgido novas formas de mobilidade que não são propriamente ativas porque usam motorização elétrica de baixa potência.  Salvo bicicletas elétricas, as outras ainda não são regulamentadas por lei.  São patinetes e monociclos, dentre outros, explorados por startups através de aplicativos.

As bicicletas elétricas estão contempladas por resolução do CONTRAN 465/2013. que lhes concede o direito de utilizar a infraestrutura cicloviária no máximo a 20 Km/h e  calçadas, nos padrões de uso liberado para bicicletas pelo CTB, a 6 Km/h  (Art. 59 -
Desde que autorizado e devidamente sinalizado pelo órgão ou entidade com circunscrição sobre a via, será permitida a circulação de bicicletas nos passeios).

Já  patinetes,  monociclos e outros veículos elétricos  ainda não regulamentados  pegaram  carona nos procedimentos estabelecidos para bicicletas elétricas pela portaria já mencionada. Entretanto os usuários de patinetes normalmente acabam optando majoritariamente por usar a calçada na total extensão do seu trajeto, transformando-se em mais uma classe de usuários das calçadas.  Mas com um padrão de  velocidade muito mais alto em relação à velocidade do caminhar.    Aplicativos recomendam que os usuários de patinetes antem a 6 Km/h ao utilizar calçadas enquanto a velocidade média do pedestre está em torno de 4,5 Km/h e a do idoso 3 Km/h.

Assim “fatia” de menor tamanho do espaço público de mobilidade destinada à mobilidade com maior situação de vulnerabilidade, o modo a pé,  acaba ficando cada vez mais ocupada por novas formas de mobilidade, promovendo a intensificação de soluções para a convivência entre si no território da calçada .

Muitas cidades, como Los Angeles, San Francisco  já passaram por esta experiência e a situação de descontrole no compartilhamento da calçada propiciou a ocorrência de incidentes, muitos deles com alguma gravidade, fazendo com que o poder público tomasse a solução mais rápida e radical:  a suspensão do uso destes veículos que tem como missão tirar carros das ruas.

Com certeza não se quer haja reprodução deste quadro por aqui e muito menos que aplicativos para oferta de mobilidade alternativa deixem de existir.  Eles  são importantíssimos porque, além de conseguirem tirar carros das ruas, fazem com que motoristas deixem de sê-lo e se  tornem cativos destes sistemas.

Por outro lado não pode ser ignorado  o grau de responsabilidade que cabe a essas novas empresas que exploram  este tipo de serviços.  Elas têm sim um inquestionável papel de co-participação neste revolucionário processo de mudança de hábitos e comportamentos assim como os impactos deles decorrentes.  Portanto cabe a elas colaborar junto com o poder público e a sociedade na importante tarefa de desenvolver estratégias para que seus clientes, muitos deles  antigos motoristas,  se adaptem às novas formas de compartilhar espaços de pedestres e ciclistas com harmonia, respeito e segurança.  E neste processo fazer com que seus usuários antigos motoristas  abandonem, definitivamente,  indesejados comportamentos  de intimidação e falta de empatia que tanto os caracterizam.

Estas empresas também tem a missão de se engajar, juntamente com a sociedade civil, nos processos reivindicatórios relativos à revisão das injustiças no uso dos espaços públicos de mobilidade, de forma a conquistar  mais espaços para as rede da mobilidade que acolhem seus clientes:  a Rede da Mobilidade a Pé e a Rede da Mobilidade por Bicicleta.  Certamente o poder de pressão política por elas exercido em muito irá contribuir ao processo de mudança dos atuais paradigmas.

Juntamente com esta pressão política, as empresas poderão contribuir, através do potencial de recursos gerados pelos seus serviços, para estabelecer parcerias com o poder público e apoiar a expansão e manutenção das infraestruturas que compõem as redes de mobilidade utilizada pelos seus clientes.  Esta ação é boa como marketing pela adoção dos trechos da rede de calçadas, ciclovias ou ciclofaixas mais utilizadas nos percursos de seus veículos.

E tudo isso sem esquecer de orientar os usuários dos veículos dos aplicativos que, ao deixarem a bike ou o patinete estacionado, respeitarem sempre a Faixa Livre destinada à caminhada. O veículo pode ser deixado junto às edificações, na Faixa de Acesso.  Também pode ficar alinhado ao posteamento e arborização, na Faixa de Serviço.

Meli Malatesta (Maria Ermelina Brosch Malatesta) – Arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Transporte a Pé na FAUUSP e doutorado em Transporte Cicloviário pela FAUUSP; presidente da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Mobilidade da ANTP. Escreve também para o Blog “Pé de Igualdade”, do site Mobilize.