Da realidade para o mundo das caixinhas: o que mudou o cotidiano dos deslocamentos?

01/05/2018 21:00 - Meli Malatesta


Outro dia me deparei com a divulgação de uma atividade realizada pelo Instituto Corrida Amiga, uma ONG que estimula as pessoas a assumirem a caminhada e a corrida como deslocamento cotidiano ou “trocar o carro pelo tênis”, como eles definem o maravilhoso trabalho que realizam.

Esta atividade, com crianças das regiões centrais da cidade de São Paulo, consistiu em fazê-las caminhar até a estação de metrô mais próxima e utilizar o metrô. Na atividade seria estimulado o olhar para a cidade e a conscientização sobre a importância do andar a pé e usar o transporte público. Ou seja, mostrar que há vida fora da “caixinha”.

Atualmente nestas regiões você vê pouca criança andando nas ruas, ainda mais desacompanhadas.  Brincando então nem se fala.  Hoje a vida se processa dentro de caixinhas: a caixinha de morar, a caixinha de estudar, a caixinha de passear e para conectar todas elas, a caixinha de se deslocar, o carro.  Assim andar a pé e depois pegar metrô virou um programão para a criançada que vive nesse mundo de caixinhas. 

Isso remete à época quando ainda não se vivia em caixinhas.  Crianças iam sozinhas à escola e se precisassem pegar condução faziam isso também sozinhas, ensinadas e estimuladas pela família.   Era comum ter amiguinhos no bonde e no ônibus.  Claro que já havia ônibus e perua escolares, mas a maioria ia de transporte comum mesmo.

O processo de descoberta da cidade no caminho para a escola era o melhor, mesmo repetido todos os dias:  conversar com o pipoqueiro, provocar o cachorro da casa de portão alto, ver as estações do ano na copa das árvores, até se chegar ao destino tinha muita coisa para ver e fazer. 

Anos mais tarde, já mãe, achei que valia a pena repetir a experiência com meu filho de 11 anos.  Iria para a escola no ônibus de linha.  De cara descartamos o transporte escolar, porque além de caro passaria muito cedo para pegá-lo e o deixaria muito tarde.   A “aventura” do ônibus seria só na ida, no início da tarde, com o ônibus vazio que passava perto de casa. Era um percurso longo, mas tranqüilo e seria uma boa oportunidade para o aprendizado da autonomia e da vida em cidade. 

Assim que colocada em prática, minha atitude foi taxada de louca e leviana.  Achavam absurdo criança em ônibus comum.  Também fui chamada pela direção da escola e “convidada” a repensar a forma escolhida para meu filho se deslocar, pelo “perigo” que representava. 

Para meu filho foi ótimo, adquiriu desembaraço e independência.  Nasférias conseguia sair da área de lazer do prédio onde morávamos porque pegava ônibus.  E animava a criançada de lá a ir junto com ele, para desespero das mães.  Essa experiência certamente o ajudou muito a ser a pessoa independente que é hoje, se vira muito bem sem carro. 

Para terminar esta história se pergunta:

Como o cotidiano das pessoas passou a transcorrer em caixinhas e a depender delas?

Quando e por que, exatamente, se achou que espaço e transporte públicos não podiam ser utilizados fora de caixinhas?   

Porque não se buscou solucionar isso ao invés de se recorrer à vida de caixinhas? 

Será que um dia as pessoas conseguirão sair das caixinhas?

E, finalmente, será que caixinhas sairão das pessoas? 

Meli Malatesta (Maria Ermelina Brosch Malatesta) - Arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Transporte a Pé na FAUUSP e doutorado em Transporte Cicloviário pela FAUUSP; presidente da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Mobilidade da ANTP. Escreve também para o Blog "Pé de Igualdade", do site Mobilize